Borat, por dois leitores da Cinética

Uma brincadeira (quase) sem graça
Marcos A. Felipe*

O que pensar de um filme que, ao disfarçar-se de documentário, depende de uma informação externa às suas imagens para poder continuar existindo como espaço ético de reflexão cinematográfica (e, conseqüentemente, até mesmo enquanto filme, politicamente, contundente e não filme-abjeto, fascista e infame)? Em Borat, o comediante britânico Sacha Baron Cohen apresenta o personagem Borat Sagdiyev – um jornalista do Cazaquistão contratado pelo seu governo para rodar um documentário sobre os costumes e o modo de vida dos americanos (o famoso american way of life). Com tal intento, Borat viaja de uma ponta a outra dos Estados Unidos da América, percorre suas cidades e estradas, visita grupos feministas e canais de televisão, conhece pessoas e famílias, jovens e instituições locais. De sua jornada, o que fica mais evidente é o choque entre civilizações, hábitos e costumes muito diferentes, constituídos por processos culturais distintos e constitutivos do outro como possibilidade histórica. Em suma, uma discussão sobre a alteridade.

No entanto, a questão, em Borat, não está em seu disfarce, tantas vezes e nas mais variadas épocas destes mais de cem anos de História do Cinema circunstanciado pelos filmes em suas verdades e mentiras. Nem tampouco em ter emulado e vendido ao outro uma forma que não é a sua de fato: disfarça-se de documentário, quando, de fato, tudo não passa de atos ficcionais pensados e criados pela instancia realizadora – o que também não pode ser o problema, já que, aos olhos do público, este é um entrecruzamento de gêneros tantas vezes utilizado por diretores que sabem da inevitabilidade da realidade diegetizada.

O problema levantado, inicialmente, persiste porque o outro, que, diretamente, se envolve com o disfarce, são os personagens que estão dentro do espaço da imagem – e não o espectador, espacialmente, fora do campo fílmico, mas, mesmo assim, a ele, cultural e umbilicalmente, relacionado. A questão não é porque, em Borat, o outro-personagem esteja dentro da farsa, mas, sim, porque a ele não é dado o direito do conhecimento da fraude que o envolve e o ridiculariza. Fundado em uma mentira, Borat, a cada seqüência, tem sua verdade reduzida no outro como objeto de manipulação. De modo que, ao longo do filme, o que poderia ser uma crítica ácida e contundente ao cinismo americano, a hipocrisia ética e a parcelas significativas de discriminação racial, social e cultural da América, perde-se, significativamente, diante de dois grandes problemas enfrentados pelo cinema documentário no decorrer dos tempos: a forma como o filme trata os personagens (campo ético) e a maneira como apresenta suas questões (campo epistemológico) – basicamente, o choque de civilizações, a alteridade, hoje, no mundo e o outro como possibilidade histórica.

Em suma e de fato, como coloca João Moreira Salles no prefácio do livro Espelho Partido (2004, de Silvio Da-Rin), são estes os dois grandes problemas que, verdadeiramente, importam ao documentarista. Sobretudo, porque os personagens reais de um documentário continuarão a existir após as filmagens e, sendo uma representação do mundo, um filme precisa justificar suas opções e soluções adotadas.

O problema é que, em Borat, é possível encontrar diversos filmes – dois ou, no mínimo, três filmes: aos olhos dos personagens reais inseridos na trama, um documentário sendo realizado pelo outro (o jornalista Borat do Cazaquistão) em busca da alteridade; e, aos nossos olhos, uma ficção disfarçada de documentário ainda que com seus problemas éticos – atrelados, vários gêneros cômicos deslizando sobre a imagem a partir do humor-negro e do preconceito em sua inversão, semântica e conscientemente, trabalhada sobre as minorias étnicas e raciais.

Ao longo das seqüências, onde a comédia rasgada provoca gargalhadas a cada dois minutos, o tempo todo um terceiro filme parecia emergir da superfície dos gêneros em confluência: o filme, duplamente, disfarçado que, aos nossos olhos, a princípio, trabalhava com personagens reais – sendo que, na verdade, as situações eram fakes não para os personagens (todos, fictícios), mas para nós espectadores que, ao final, nos descobriríamos diante de um outro filme que, eticamente, validava sua crítica rasgada a cultura norte-americana.

Sucesso de público em todo o mundo (e, pasmem, nos próprios EUA), Borat resvala nas opções de um dispositivo impreciso e, politicamente, sem justificativas éticas. O que talvez tenha sido sua intenção desde o princípio (e absolutamente questionável), quando também resolveu atacar os politicamente corretos (vide a seqüência em que o personagem Borat entrevista as feministas – crítica ou inversão de conceito?). Se, desde o início, ora, temos a impressão de vermos situações reais do cotidiano que nascem do encontro do jornalista-personagem com os americanos, ora, situações, diegeticamente, encenadas, ficamos o tempo todo sem saber se estamos diante de personagens reais ou fictícios (?) e, conseqüentemente, do falso documentário e da falsa ficção aos nossos olhos de espectadores. Portanto, o que pensar de um filme cuja abordagem e tratamento dos personagens dependem de uma informação externa ao seu dispositivo para validar-se como espaço ético de reflexão e, por extensão, enquanto filme, politicamente, contundente e não uma abjeção cinematográfica?

* Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e editor do blog Sela de Prata.

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Um novo humor
Bruno Carmelo

De um modo geral, os EUA acabaram se consolidando como inventores (e até hoje, únicos mestres) da "comédia romântica", produto de fórmulas fáceis e retorno garantido. Há muito humor físico (prova disso é a estréia surpreendentemente bem-sucedida do filme Norbit, pastelão com Eddie Murphy), mas pouca sátira. Os programas de ficção satíricos sempre foram poucos na no cinema e na TV americana (Saturday Night Live é um bom representante deste grupo restrito). Borat foi um fenômeno de bilheteria nos EUA, mas a surpresa maior foi a aceitação quase unânime também da crítica – que parecia ávida por um produto cômico novo. E na terra de um cinema comercial tão solidificado, qualquer inovação mexe com o sistema.

Talvez a maior dificuldade da sátira seja justamente viabilizá-la, porque exige um senso de humor afiado e amplo conhecimento de todas esferas públicas ao redor: a política, economia, cultura... e ainda fazer disso algo palatável ao grande público. Neste mesmo ano uma comédia também surpreendeu, Pequena Miss Sunshine, em que se usa o absurdo mais do que o exagero ou o humor cômico. Mas Borat é uma Sunshine ao cubo, e aqui o humor politicamente incorreto, delicioso em Saturday Night Live, Os Simpsons, South Park, é elevado à enésima potência.

O humor que se atinge é uma fusão grande de todos: o absurdo, o exagero, a escatologia, o humor físico, a crítica política, o nonsense. E o foco é também múltiplo, com quase todos os aspectos da vida americana sendo criticados de um modo ou de outro. A política de George Bush, a religião conservadora, a lógica do consumo, a escravidão, os judeus, tudo é atacado.
Curiosamente, nada é construído no lugar. Um filme crítico geralmente propõe algo, sugere o que deveria substituir o objeto de insatisfação, o que o faz uma obra política. Os programas citados acima são assim, propondo novos olhares para as esferas sociais (Simpsons, South Park) e para os produtos audiovisuais (SNL), principalmente. Borat, no entanto, não se preocupa em construir. A lógica é inteiramente destrutiva.

Acredito fazer sentido pensar neste filme como exemplar da pós-modernidade. O "novo" feito do sincretismo e da fusão (nunca a inovação inédita, sem referenciais), o pastiche geral (todas as esferas são tidas como uma só, critica-se os vídeos da Pamela Anderson e a direita norte-americana com mesma ferocidade), o niilismo (nada é bom ou correto, tudo está corrompido e não há soluções, logo, vamos gozar a vida). Borat satisfaz nossa ânsia depreciativa e nossa descrença. Tudo é passível de sátira pois nada mais é sagrado, não se confia em mais nada. Borat é, a seu modo, um hino a uma alienação individual.

Não são todos que respondem bem ao filme. A polêmica atrai muitas pessoas, com reações diversas. Algumas riram até não poder mais (nervosismo? identificação?), enquanto outras (nas quais me encaixo) passaram a maior parte do filme chocadas. Ora rindo, ora estupefatas. É difícil encarar (aceitar?) o pós-moderno, é difícil assimilar o novo.


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