O Legado Bourne (The Bourne Legacy),
de Tony Gillroy (EUA, 2012)

por Thiago Brito

Ingenuidade

O momento mais doloroso do rito de passagem é a volta para a casa. Após o rompimento inicial, depois de propagada toda a trajetória do herói e sua consequente renovação, a necessidade de voltar para casa e acertar as contas é primordial - e, naturalmente, tarefas das mais difíceis e complicadas. Protagonista dos três filmes anteriores da franquia, Jason Bourne realizou, a princípio, todo o círculo heróico: em Identidade Bourne, ouviu e perseguiu o chamado da Aventura, e sentiu no corpo a dor do limiar do renascimento; na Supremacia Bourne, retraçou seus próprios passos e carregou nas costas o passado negro de toda uma nação (o momento-chave em que, talvez pela primeira vez, vemos um personagem norte-americano pedindo desculpas pelos excessos da Guerra Fria); e, finalmente, com Ultimato Bourne, Jason volta para casa e acerta as contas com a Treadstone, terminando sua saga com uma questão necessária e inquietante: "Você sabe por que tem que me matar"?

A grande peripécia de Jason Bourne é daquele que se reconstrói, renasce ao ir atrás de si próprio. Em um eterno abalo sísmico narrativo e de imagem, a trilogia Bourne é repleta de retorções que remetem, continuamente, à ação fundamental do protagonista: contorcer-se pelos quatro cantos do mundo, reencontrar-se, relembrar-se de si mesmo para então ter a consciência de que já é um outro, renovado. Submerso em pleno mar, Bourne encontrou a liberdade para se reformular, nadando para um novo desconhecido, um novo chamado da Aventura. O interessante é que isso se dá a partir do movimento rompimento/clarão/dor e se complementa com o chamado da consciência, ou mesmo com um chamado para o fim da inocência/ingenuidade. A frase final ao homem eleito para mata-lo é seu legado e sua arma principal.

Em tempos como o nosso, a consciência, o clarão, é de primeira ordem. Existem extrapolações, existem corrupções, exploração a torto e a direito. Como lidar com isso? Qual a postura necessária quando se está diante de um Estado falido, ou que perdeu seus laços com a sociedade, um Estado que caminha sem prestar contas a ninguém a não ser a si mesmo? O clarão veio, o chamado se apresentou e Jason Bourne puxou o gatilho. Com isso, se torna um rebelde, na medida em que se reintegra consigo mesmo – renovado. Um supersoldado às avessas, um projeto que saiu de controle, uma máquina que retém consciência e decide caminhar com as próprias pernas: o legado de Jason Bourne (parecido com o de Lisbeth Salander, aliás).

Daí o grande acerto a partir do título. O Legado Bourne se propõe, exatamente, olhar adiante, repensar o que é, em si, essa trajetória e como dar continuidade sem ter que se prender demasiadamente à trajetória original. Aaron Cross (Jeremy Renner) principia como terminara Jason: imerso nas águas do desconhecido. De inicio, temos o desafio posto: onde para Bourne foi um fim e um novo começo, Cross já parte de lá – pois Cross, ao contrário de Bourne, tem um passado, tem uma dor e está, em realidade, já em processo de transformação. A questão da identidade não é abandonada por completo, mas volta de forma um tanto mais fluida, menos “intempestiva”. Cross não possui o dado da inconsciência do protagonista anterior, não precisa retraçar sua vida. A consciência está dentro de Aaron Cross, o rompimento é anterior ao próprio filme. O mote principal da narrativa finalmente se desvela no interior da imagem inicial: após o renascimento da trilogia, vem a ação. Ou melhor, após o rito de passagem completo, a vida.

A conjugação destas ideias é bastante complicada, pois eleva o filme a uma posição extremamente delicada atualmente. Os filmes que relatam transformações, renovações, reformações, enfim, que narram ritos de passagem são inúmeros. Poucos, no entanto, são aqueles que decidem ir além do rito de passagem, ou melhor, que vão além das metamorfoses subjetivas e encontram, no mundo, um espaço para transformação concreta. Isto é, após a transformação e consequente consagração do herói, a volta para a casa, o bom e o velho “colocar o dedo na ferida”. O que é importante no trabalho anterior da Trilogia Bourne é saber, como nenhuma outra, conjugar essas duas instâncias: enquanto existe o rito de passagem de Bourne, existe, em cada um dos filmes, o conflito concreto no mundo também, o dedo na ferida, o que significava reenquadrar e expandir a narrativa para uma instância maior.

É aqui que as coisas começam a se diferenciar. O mote da consciência, do acordar, em Aaron Cross aparece no momento em que decide abandonar sua carreira militar anterior (em completa referência a seu papel em Guerra ao Terror, o que aguça ainda mais as escolhas políticas do filme) para o projeto de supersoldado. A dor na perda do amigo e a escolha de se transformar não veio a partir de um fanatismo ideológico de Estado. Cético, crítico, Aaron Cross aproveitou-se do projeto para fortalecer-se e, então, buscou a liberdade. Desconfiado, notou o momento em que o governo começou a matar os agentes do projeto Outcome. Sua peripécia para tornar-se abstinente dos remédios do programa, sua escrita no espelho, é como o canto central da franquia (“Não mais”): o fim do pacto com um determinado estado de coisas no mundo contemporâneo.

Se o ato parece mais mecânico no filme do que se espera, é porque ele se tornou o único recurso para a série. Cross é simples: levante-se, liberte-se e siga adiante. Ao contrário de Bourne, ele não aparenta ter uma vontade maior de destruir ou ir a público sobre os corruptos projetos sigilosos do governo. Seu combate é o do guerreiro que sobrevive e que se apaixona. E assim entra a personagem de Rachel Weisz, Martha Shearing, a doutora que trabalhou para a Outcome, mas que não se questionava, não se envolvia. Só que ninguém é mais inocente neste mundo interligad, e logo o governo vem bater em sua porta. Assim, Aaron Cross aparece para salvá-la. E então ela aparece para salvá-lo, também renovada e redescoberta para si mesma.  E a história é recontada, aquela que todos sabemos: aquela em que Jason Bourne nunca teve a oportunidade de amar e em que Cross e Martha jogam o mapa às favas.

Outubro de 2012

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