in loco - stan brakhage: a aventura da percepção

Cachorro Estrela Homem
por Eduardo Valente

Poucas obras desafiam tão frontalmente o temor sempre presente na percepção e desejo do exercício crítico quanto a de Stan Brakhage: afinal, o que exatamente se pode fazer com algumas palavras numa página branca (ou cinza, no nosso caso) que tenha alguma coisa a ver com a experiência de assistir a um filme dele? Alguém já igualou esse tipo de experiência a tentar “dançar sobre arquitetura”, mas o fato é que o impulso artístico em si, aquilo que leva qualquer artista a tentar expressar algum sentimento através das suas ferramentas (como Brakhage, com seus filmes em 16mm), não é lá muito diferente. E por isso mesmo, me parece que se Brakhage teve a coragem de tentar, tão seguida e compulsivamente, expressar a sua vivência no mundo através de filmes em 16mm, por que não poderíamos nós tentar dizer algo sobre a experiência de ver seus filmes? O medo (ou a certeza) da impossibilidade (ou do ridículo) não deveriam ser maiores que o desejo de expressar essa tentativa de contato – inútil, sempre, mas por isso mesmo essencial.

Entre todos os filmes de Brakhage que assisti (e, pelo bem da honestidade mínima, é preciso dizer que ainda não consegui ver muitos – bem menos do que gostaria, deveria e até bem menos do que os cerca de 30 que esta mostra nos trouxe), o filme que mais me move ainda é Dog Star Man, seu longa-metragem de 1969 (que tem uma versão de mais de 4 horas, mas é mais comumente visto/comentado – como foi o caso no Rio de Janeiro – numa versão de 1 hora e 20 minutos). Claro que Dog Star Man é produto de um momento específico da carreira de Brakhage, bem diferente por exemplo de seus filmes de final de carreira, que tendiam para a abstração de forma bem mais radical. Mas, não é só essa relação que ele ainda estabelece com o mundo fora da película que faz com que ele ecoe de forma bem forte para mim, a questão da sua duração também é muito importante. Porque, embora a maior parte dos filmes de Brakhage seja de curta duração (o mais curto dura 9 segundos), me parece que esse formato de 80 minutos cria uma situação sensorial quase perfeita para a apreciação do seu trabalho. Ao contrário do que alguns poderiam esperar, me parece que a obra de Brakhage, com o passar dos minutos, não se torna mais cansativa e sim mais e mais absorvente, multiplicando um certo efeito de transe que é parte integrante essencial da experiência frente a seus filmes.

Uma das coisas que eu gosto nessa longa duração é que, pelo vício de anos e mais anos de experiência com o cinema narrativo, a minha percepção pelo menos entra num certo misto de entrega e busca de sentidos (muitas vezes no sentido estrito mesmo, no caso de Brakhage – “o que foi que eu acabei de ver?”), e por mais que a racionalidade pura esteja longe de ser guia confiável para um filme dele, me parece bem claro que, pelo menos na altura de Dog Star Man, ainda havia muito no cinema de Brakhage que coteja (e ironiza, claro) o cinema narrativo e sua apreensão. A própria divisão do filme em um prelúdio e quatro partes (tendo a primeira e o prelúdio perto de 30 minutos cada, e as últimas três, em torno de 6 cada) já nos coloca nesse caminho, com o prelúdio efetivamente servindo como uma introdução geral, uma peça que elabora os vários temas (e por temas eu falo de imagens recorrentes) que o filme vai explorar de forma quase separada ao longo das próximas partes.

Tanto neste prelúdio como especialmente na Parte 1, parece bem claro que Brakhage brinca de forma bem consciente com os esforços “racionais” de aproximação com o filme. No prelúdio, por exemplo, ele usa suas fusões (e se há algo que ninguém soube fazer como ele é usar as fusões – estas sim, insondáveis no seu efeito e processo) para relacionar imagens (vagina/sol; espaço sideral/veias do corpo) de uma certa forma a que somos levados a pensar de maneira até óbvia numa certa “interpretação” – no entanto, os ritmos, a constante interrupção das “imagens fáceis” por flashes de outras imagens não esperadas, tudo parece trabalhar para interromper a possibilidade de uma conclusão a partir dessa superposição de signos, e nos levar para o campo da beleza quase abstrata, da constatação muito mais do que do entendimento. Ali, se uma certa cosmogonia se manifesta de forma inegável, o mais fascinante dela é justamente que não a percebemos de fato, apenas intuímos – ou como Brakhage preferiria, “temos visões”.

Da mesma forma, na Parte 1 ele brinca com o ritmo de um “filme de ação”, ao manipular o tempo da imagem do homem (ele mesmo) que sobe uma montanha de neve, seguidamente alternando clímaxes e dilatações temporais até o ponto em que perdemos completamente qualquer sentido real de conseqüência nas ações que ele parece construir. Nesta parte específica, vemos o quanto o Brakhage “cineasta” (ator, fotógrafo, montador) compreendia bem o jogo do cinema narrativo e era capaz de usá-lo a seu favor. Mais lúdica ainda é a Parte 2, com sua curta duração marcada pela onipresença de um bebê que nos joga constantemente para trás e para a frente com interpretações cruzadas (face à sua morte, o homem relembra suas memórias primeiras; um bebê “sonha” o seu futuro; enquanto um homem morre, um bebê nasce), como se ao exercício mesmo de “será que eu vi mesmo o que eu penso que eu vi?” que é tão típico dos filmes de Brakhage deste período se juntasse um “será que eu entendi mesmo o que eu acho que entendi?” Como resultado das duas perguntas, o espectador a cada visão terá uma resposta, e muito mais provavelmente não vai ter resposta nenhuma que o satisfaça – o que, nem precisaria ser dito, é exatamente aquilo de que trata o filme.

Porque é fato que, independente das “pistas falsas” e dos desejos de abstração e êxtase da visão que caracterizam o filme (e Brakhage), também me parece tolo não admitir o que é claro para qualquer um que queira ver: que Dog Star Man lida de forma frontal com a questão do humano frente à natureza, frente ao “divino” (seja ele entendido como o maior – o espaço sideral; seja no sentido religioso mesmo), frente à morte e frente à vida (nascimento, sexo). Só que Brakhage não propõe com o filme nos “tranqüilizar” quanto a nada disso, mas sim nos desafiar a entrarmos nesse transe causado por sóis e sangue e suor e corpos e luzes e riscos e árvores e montanhas e um homem que luta contra o universo todo. A luta desse homem, claro, é a nossa: não apenas sobreviver quando isso não parece tão importante assim (pelo menos para as estrelas, as montanhas ou as árvores), mas se debater para compreender algo disso tudo. E saber que a luta está perdida de saída não invalida a necessidade de empreendê-la.

Maio de 2009

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