in
loco - stan brakhage: a aventura da percepção Templo
de cinema por Fernando Veríssimo *
Já
não sei ao certo há quanto tempo vinha perseguindo a ideia de realizar uma mostra
dedicada ao cinema do norte-americano Stan Brakhage. Sei que o projeto ganhou
forma há aproximadamente cinco anos, quando conheci o crítico americano Fred Camper,
que estava de passagem pelo Brasil para apresentar uma série de quatro programas
com filmes de Brakhage no Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.
Nestes cinco anos, o projeto Stan Brakhage – A aventura da percepção, uma
ambiciosa retrospectiva de mais de cinquenta filmes do papa do cinema de vanguarda,
teve uma trajetória atribulada, chegando muito perto de acontecer de fato por
duas vezes. As tentativas frustradas pareciam apontar para um destino comum de
projetos do gênero: a gaveta. As negociações eram difíceis, as exigências técnicas
e de logística eram muitas, o custo era proibitivo.Já
não tínhamos muita esperança em levar o projeto adiante e mesmo quando, no fim
de 2008, a mostra foi selecionada no edital de ocupação da Caixa Cultural, imaginávamos
que problemas com os quais já estávamos bastante familiarizados surgiriam novamente
mais cedo ou mais tarde, jogando mais uma vez a mostra para escanteio. Em seis
meses, a cotação do dólar havia aumentado em mais de 50% e não dava sinais de
queda; os fornecedores das cópias insistiam em desconfiar da iniciativa, fazendo
exigências que colocavam a mostra constantemente em risco; e, por fim, na era
da transição para o cinema digital, uma mostra inteira de filmes num formato praticamente
obsoleto, o 16mm, apresentava desafios de ordem técnica que não podiam ser ignorados.
Quis o destino que tudo se encaixasse daquele jeito misterioso e imprevisível,
e que a mostra finalmente estivesse em vias de acontecer – reduzida a um formato
mais compacto ou mais “realista”. No entanto, uma outra preocupação, muito mais
profunda e grave, batia à nossa porta. Haveria no Rio de Janeiro de 2009 um número
razoável de pessoas interessadas em assistir a esses filmes, a ponto de terem
que se deslocar até o centro da cidade em pleno feriado da Semana Santa? E essas
pessoas interessadas, em grande medida movidas pela curiosidade (uma vez que exibições
de filmes experimentais em geral, e de Brakhage em particular são raríssimas por
aqui), teriam paciência para aturar os exigentes exercícios de olhar propostos
pelo cineasta? A
resposta foi surpreendente. A mostra, composta de seis programas com uma reprise
cada (para um total de doze sessões), registrou um total de quase 800 espectadores.
Para a aprazível sala da Caixa Cultural, que tem lotação para 85 pessoas, a média
de ocupação foi de aproximadamente 75% - com sessões esgotadas em plena Sexta-feira
da Paixão e também no Domingo de Páscoa. Um público não apenas interessado ou
curioso, mas verdadeiramente participativo e disposto a realizar e celebrar uma
legítima comunhão cinematográfica. As exibições reuniram pessoas que vieram de
longe com o propósito único de assistir aos filmes de Brakhage na presença de
Camper, guardião e discípulo da obra do cineasta, que atuou como curador e marcou
presença em todas as sessões. Houve quem viesse de Recife, São Paulo, Curitiba
e Porto Alegre apenas para testemunhar o evento – apesar da divulgação pontual,
tímida. O fascínio provocado pela mítica figura de Brakhage
– o homem da montanha, sempre buscando novas formas de ver e buscando também,
nessas formas, um modo de organizar sua própria existência – tem uma força que
jamais imaginávamos. Com sua proposta radical de um cinema que expresse a subjetividade
por meio de um repertório inigualável de técnicas e recursos formais, Brakhage
criou uma obra capaz de transmitir ao espectador, através de um complexo e exigente
sistema de signos e ritmos particulares, uma sensação real, quase palpável, de
sua presença. Assistindo aos 28 filmes exibidos na mostra, é impossível negar
a impressão de se estar diante dessa presença fantasmagórica. Embora
muitos tenham se incomodado com isso no início, é inegável que as intervenções
de Fred Camper tenham contribuído em alguma medida para a compreensão do rebuscado
universo brakhagiano. Menos que uma “autoridade” em exercício, Camper forneceu
algumas chaves preciosas para essa tarefa – não nas possíveis “interpretações”
ou “leituras” sugeridas ao público menos acostumado ao cinema não-narrativo em
geral, mas na visão global de quem dedicou uma vida inteira à tentativa de preservar,
mais que esclarecer, os mistérios profundos que a obra de Brakhage encerra. A
presença de Camper, que se permitia por vezes alguns arroubos de retórica à moda
dos pastores protestantes, evidenciou ainda mais o aspecto religioso de se assistir
a esses filmes. É evidente que há, em Brakhage, elementos de religiosidade latentes
e um intenso questionamento sobre a natureza de Deus, da vida e da morte, que
perpassa toda sua obra como uma constante. No entanto, a temática espiritual é
apenas uma das muitas que se acumulam em múltiplas camadas em seus filmes – e
que pode surgir como um constante embate entre luz e escuridão, entre o particular
e o universal, e no deslumbrante imaginário natural, cósmico de uma obra-prima
como Dog Star Man. Não é, portanto, aos questionamentos
presentes nos filmes de Brakhage que me refiro quando menciono o aspecto religioso,
mas à própria experiência de assisti-los. O que testemunhamos no decorrer da mostra
foi uma espécie de culto prestado às potências do olhar, uma revelação do cinema
testemunhada por uma plateia que manteve respeitosamente o silêncio expressivo,
típico de um ritual de transcendência. Quem esteve ali e assistiu aos filmes sabe
do que estou falando. Não há nada mais gratificante para um organizador de uma
mostra que essa resposta entusiasmada do público, especialmente diante de um projeto
que trazia tantos desafios e provocava tantas dúvidas. Se saímos dessa experiência
transformados, isso não se deve apenas aos filmes desse gigante chamado Stan Brakhage,
mas da experiência coletiva inesquecível proporcionada por todos que se uniram
para celebrar o ato de ver – com os próprios olhos.
* Colaborador da Cinética
desde a sua criação, Fernando Veríssimo também foi
o idealizador e curador da mostra Stan Brakhage - A Aventura da Percepção.
N.
do Editor: As duas fotos da mostra no Rio de Janeiro foram cedidas por cortesia
de Lis Kogan, tendo sido tiradas por Fernanda Taddei. A série completa
pode ser vista aqui. Maio
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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