história(s) do cinema brasileiro
Cinema brasileiro para quem?
por Leonardo Mecchi e Eduardo Valente

Parte 2: Leis da selva

Além da grande concentração de documentários entre os filmes nacionais lançados nesta primeira metade de 2006 (assunto tratado na primeira parte deste artigo), outro fator que chama a atenção no ranking de público deste ano é o aumento considerável do total de estréias brasileiras: comparando-se os números deste primeiro semestre de 2006 com o mesmo período do ano anterior, temos um crescimento de nada menos que 72% na quantidade de lançamentos nacionais.

Segundo dados compilados pelo Filme B, de 1995 (ano tido como marco do início da retomada) até 2003, estrearam uma média de 23 títulos nacionais por ano. Em 2004 esse número pulou para 47 filmes. Se em 2005 houve um leve recuo para 39 estréias, apenas neste primeiro semestre de 2006 já foram lançados 31 filmes nacionais. Com mais 27 estréias previstas até o final do ano totalizaríamos um recorde no período: 58 estréias brasileiras em salas de cinema. Este dado parece particularmente curioso se nos lembrarmos que o ano passado viu números alarmantes de queda de público nos cinemas de todo mundo. Não por acaso, como vimos na última cerimônia do Oscar, a própria matriz do cinema dominante do mercado mundial acusou o golpe e o medo de que esta crise seja mais do que apenas o resultado de um ano fraco, e represente uma tendência de queda semelhante à que sofreu nos últimos anos a indústria fonográfica mundial.

Assim sendo, tal crescimento repentino dos lançamentos brasileiros em plena crise mundial sinalizaria, por si só, um estranho descompasso. Porém, se começamos a qualificar mais estes dados absolutos, percebemos algo um pouco mais sério, que parece juntar uma absoluta falta de planejamento nacional conjunto (um Plano de Cinema ou algo do tipo), com algumas particularidades do capitalismo monopolista à brasileira. Senão, vejamos: entre 1995 e 2003, 58% do total dos filmes brasileiros que estrearam nos cinemas ficaram abaixo de 50 mil espectadores. Se nos dois anos seguintes esse percentual cresceu para 62% (2004) e 64% (2005), no primeiro semestre de 2006 ele atingiu um número impressionante: 83%. Isso significa dizer que, dos 5,8 milhões de espectadores acumulados pelo cinema brasileiro em 2006, 5,2 milhões estiveram concentrados em apenas 3 filmes (Se Eu Fosse Você, Didi – O Caçados de Tesouros e Xuxinha e Guto Contra os Monstros do Espaço).

Se lembramos que, no ano passado, Dois filhos de Francisco foi, sozinho, responsável por 56% do público anual total do cinema brasileiro, nos damos conta de que a (falta de) estratégia nacional de chegada dos filmes ao público tem sido marcada por um resultado constante: a mesma concentração desigual de acesso ao mercado que historicamente caracteriza o Brasil como um todo – tendo como exemplo inevitável a nossa televisão. Nada surpreendentemente, aliás, nos cinemas há uma repetição dos "suspeitos usuais" quando o assunto chega em monopólios: o mesmo grupo brasileiro envolvido no mercado televisivo (Globo), sendo que a sua "filial cinematográfica" se alia ainda aos escritórios locais dos donos mundiais do mercado do cinema (as majors americanas).

Oferta e procura

Mais do que questionar o contexto histórico que faz do Brasil um paraíso dos monopólios (historiadores têm gasto livros e livros com isso), ou mesmo entender o fenômeno Globo em particular (cuja formação de seu braço cinematográfico é devidamente dissecada na dissertação de mestrado de Pedro Butcher), o que cabe perguntar aqui é algo bem mais simples: a quem está servindo, no final das contas, esse arremesso em profusão de filmes brasileiros em cartaz, sem que se encontre público algum interessado em estabelecer um real diálogo com eles? 

Depois que se tornou consenso que um dos principais problemas da fase da "retomada" do cinema brasileiro era a falta de atenção que esta dava para a distribuição dos filmes produzidos, de 2003 pra cá editais da Petrobras, do Governo do Estado de São Paulo e da Agência Nacional de Cinema injetaram recursos públicos (com valores superiores a R$ 14 milhões) especificamente na comercialização e distribuição de filmes nacionais. Juntemos isso à nova regulamentação da cota de tela em 2004 (dispositivo que garante uma janela compulsória para o cinema nacional na grade dos exibidores), e temos um resumo das principais ações tomadas pelo poder público para atacar a dificuldade de se fazer que a produção chegasse aos cinemas.

Só que o aumento no número de filmes brasileiros disponíveis claramente não levou a um crescimento relevante de seu público. Ao contrário: num país marcado pela enorme elitização do acesso ao cinema (uma sala de cinema para cada 91 mil habitantes; menos de 5% dos municípios brasileiros com salas de cinema; relação do preço médio do ingresso com o salário mínimo, etc), esses filmes passaram a disputar entre si um determinado público já existente, repetindo dessa forma o que já acontecia entre eles na busca autofágica pelos recursos públicos para a produção.

Assim, políticas públicas que visavam, em teoria, tornar o cinema brasileiro uma indústria auto-sustentável acabaram por ignorar um princípio básico que rege qualquer mercado: a lei da oferta e da procura. Investindo no aumento da oferta de filmes nacionais nos cinemas, sem estimular a procura por tais filmes, mais uma vez alocou-se mal os já escassos recursos do cinema nacional.

Formação de público e alternativas de difusão

Num país empobrecido e com uma penetrante e consolidada indústria audiovisual de acesso "gratuito", no formato da telenovela (sendo que a TV está presente em 96% dos lares brasileiros), a ausência de um projeto estrutural de formação de público para o cinema brasileiro parece tornar missão impossível a quebra da imposição desta linguagem televisiva (que, não por acaso, se repete de diferentes maneiras em vários dos grandes sucessos de público recentes do cinema brasileiro). Esse fator apriorístico limita muito o contato do público com uma produção mais diversificada, o que se comprova ainda mais verdadeiro quando saímos das grandes metrópoles. Dentro deste contexto, parece claro e urgente a necessidade de investimento em formas alternativas à exibição em salas de cinema comerciais (território ocupado e infértil) para fazer com que os filmes nacionais cheguem a um novo público (é importante notar que, nesse sentido, até há iniciativas isoladas – sendo algumas, muito bem-sucedidas –, mas longe de terem um alcance realmente relevante a nível nacional).

Enquanto isso, cada vez fica mais claro, em todo o mundo, que mercados como o do homevideo (DVD/VHS), TV a cabo e TV aberta aumentam sua importância na difusão e, por que não dizer, nos lucros de um filme. Neste sentido, num país como o Brasil (onde o acesso geral ao homevideo e TV a cabo ainda é insipiente – mesmo que em aumento no primeiro caso) a exibição em TV aberta seria um primeiro e fundamental passo para a divulgação do cinema nacional. O Homem que Copiava, por exemplo, teve em recente exibição na Rede Globo uma medição de 41 pontos no Ibope – o que significa um público aproximadamente cinco vezes maior do que aquele que atingiu nos cinemas. No entanto, o espaço dado pela Globo (e outras redes abertas) ao cinema nacional ainda é ínfimo e sazonal dentro de sua grade, amplamente tomada pela sua própria produção – e ousar mencionar qualquer coisa parecida com uma cota de telas na TV, como se sabe, costuma terminar em briga midiática e lobby político.

Dados como esse só reforçam uma tese há muito defendida por vários colegas (como, por exemplo, Daniel Caetano na Contracampo): a necessidade de se exigir, como contrapartida ao financiamento de filmes através das leis de incentivo, os direitos de exibição destes filmes na rede pública de televisão. Não seria necessária exclusividade ou prioridade nesta cessão de direitos, mas uma vez que parte considerável dos recursos para a produção vieram do Estado (seja por investimento direto ou renúncia fiscal), nada mais justo do que, após um período de exploração comercial por parte dos produtores e distribuidores, eles sejam exibidos em canais da Rede Brasil – alcançando assim um público que, de outra forma, jamais teria acesso a vários desses filmes (e mais do que justificando socialmente o tão questionado investimento do Estado neste "produto para poucos").

Outro suporte fundamental atualmente para a difusão de obras audiovisuais é o DVD. Como exemplo, este mercado já movimenta algo em torno de US$ 28 bilhões por ano nos EUA (aproximadamente três vezes mais do que o arrecadado nas bilheterias de cinema), e representa praticamente 40% da receita de um filme. Enquanto isso, embora o Brasil esteja entre os cinco maiores mercados de homevideo do mundo, para a maioria dos filmes nacionais essa ainda é uma alternativa subutilizada, devido em parte ao desconhecimento dos seus mecanismos por vários produtores, mas também à reprodução do gargalo da dominação norte-americana dos investimentos nesta área. De novo, é curioso pensar porque nunca se discutiu a sério uma reprodução da "cota de tela" dos cinemas – uma "cota de fitas" nas locadoras.

Por fim, há toda uma nova gama de tecnologias – como a internet, TV digital, celulares, entre outros em desenvolvimento ou ainda a serem inventados – que abrem possibilidades impensáveis até agora para a difusão de conteúdos audiovisuais. É urgente a reflexão e o estudo sobre a difusão nesses meios, para que possam ser usados para ampliar o alcance do cinema nacional. O cinema brasileiro, afinal, pode ser beneficiário dessas novas tecnologias, e de políticas públicas que as irão regulamentar, quebrando dessa forma um triste destino histórico que o tem acometido desde o seu início (como foi na história da implantação do parque exibidor de cinema, das concessões de TVs – abertas e a cabo – e do mercado de homevideo – todos eles, afinal, dariam mais assunto, se levados a sério, para a crônica policial do que para a história cultural ou das comunicações no país).

A necessidade de tais ações não isentam, de forma alguma, produtores e diretores nacionais da parcela de culpa por, na maioria das vezes, não refletirem melhor sobre a relação de seus filmes com a realidade dos mercados audiovisuais de hoje. É claro que cada filme busca um público determinado, e que não se trata aqui de pregar que todo filme nacional deva ter como objetivo ser um grande sucesso de público – ou que este sucesso só possa ser medido baseado em números frios de bilheteria. Mas o fato é que a atual estrutura de produção cinematográfica brasileira – onde os filmes não necessitam do retorno de bilheteria para se viabilizarem – tem feito com que essa relação do filme com o público passe longe de ser uma das principais preocupações na cabeça de muitos dos produtores e diretores brasileiros (e, agora, também dos distribuidores, que lançam filmes de maneira subsidiada). Como resultado, não só vemos inúmeros filmes que não têm qualquer possibilidade de relação com o público de hoje (e não por uma opção estética-dramatúrgica), como vemos um estranho silêncio no meio cinematográfico sobre os números de público que estamos vivendo (em parte pelo medo de chamar a atenção da opinião pública para os resultados, por medo que sejam manipulados pelos suspeitos de sempre como forma de denegrir a noção mesma de “cinema brasileiro”, como já foi feito no passado; mas também, de novo, porque os produtores não parecem muito afetados, pelo fato de que a produção “continua andando” – ainda que um tanto aos trancos e barrancos).

Para nós, que nos interessamos por um cinema brasileiro realmente forte (o que implica não só números absolutos de produção/lançamento, mas também sua efetiva presença junto ao espectador brasileiro), fica a pergunta: até quando agir-se-á como se estes números tão díspares fossem algo normal – e que o "cinema brasileiro vai bem"?


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