história(s) do cinema brasileiro
Cinema brasileiro para quem?
por Felipe Bragança

Parte 3: Um pequeno desvio de conduta

Uma lenda comum que se ouve da boca de alguns produtores (que se dizem "entendedores" do "grande público") é a de que a produção autoral ou de pesquisa de linguagem não é viável como objeto cultural, para além de alguns nichos especializados. E mais: pesquisa de linguagem e sentidos autorais seriam contrários à emoção dramatúrgica e à comunicabilidade não-intelectual. Pois esse artigo aqui é, antes de tudo, um desabafo e uma coletânea de testemunhos de observações: não falta público para cinema e o audiovisual independente no Brasil - há, em verdade, mais público do que imagens. Esse é o problema. O que não se tem no Brasil hoje é uma articulação entre a produção e a difusão que faça com que outros públicos surjam.

Porque as pessoas querem ver filmes. E não só os filmes que reproduzem a TV - ainda que pareça óbvio que os simulacros de TV, num primeiro momento, representam uma identificação mais fácil em um país educado pelas telenovelas. Mas, as pessoas se interessam e querem ver mais filmes, mais formas de audiovisual. Isso é uma crença sim, mas também uma observação concreta. Se queremos falar de "público", temos que pensar no pormenor de quem consome e nas formas desse consumo. A identidade artística circula e se dá também em forma de coleção de fetiches, vontades coletivas de compartilhar e interagir com um certo caldo cultural que se deixe circular.

Hoje fica cada vez mais claro que, se os festivais de cinema têm cumprido uma função de demarcação de território cultural e de interação entre cineastas e produtores, por outro lado, é cada vez mais claro o seu estatuto de eventos pontuais. Anuais, são quase sempre eventos "da classe", que não suprem as necessidades dos filmes se tornaram objetos culturais incisivamente presentes junto ao público comum. É claro que há público ao longo dos festivais, e que seu caráter festivo funciona também de trampolim para que os filmes ganhem uma chegada mais glamourizada às telas, com direito a prêmios virtuais e concretos; ou, nos momentos mais felizes, para o encontro criativo entre cineastas de diferentes partes do Brasil. A questão é que, se os festivais de cinema se pretendem (e se sustentam conceitualmente) como trampolins festivos dessa cinematografia, ou como magnetismo de público para os filmes, há algo de errado nessa equação: afinal, assim a porta da casa é erguida antes da casa. Ou, por outra: construímos os trampolins antes de construir as piscinas.

Hoje

A realização da mostra Raízes do Século XXI - cinema brasileiro contemporâneo na Caixa Cultural, Centro do Rio de Janeiro é um exemplo recente: uma reunião de 17 longas e 12 curtas-metragens brasileiros escolhidos entre aqueles que mais representavam a pesquisa de linguagem e investigação temática no Brasil. Com sessões gratuitas, teve uma ocupação média de 70% dos 100 lugares da sala. Um total de cerca de 3.000 espectadores em 15 dias - um público que, pela localização no centro da capital fluminense e a gratuidade dos ingressos, representou uma verdadeira renovação de público para a cinematografia brasileira dentro do pequeno circuito destes filmes na cidade. Fugindo da cinefilia mais usual dos cinemas-bistrô da Zona Sul carioca, podemos afirmar que há algo de muito relevante numa experiência simples como esta, que consegue lotar duas sessões de Filme de Amor, de Julio Bressane e três sessões de Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, dialogando com um público que estava longe de ser o do tal "perfil especializado". Fica gritantemente evidente que a presença do público ali se dava por uma questão simples: a possibilidade de se assistir filmes brasileiros sem precisar pagar caro por isso.

É claro que a idéia da arte gratuita, ou da impossibilidade de sua comercialização sustentável me incomoda. Por outro lado, me emociona muito mais ver as duas sessões de Filme de Amor lotadas, com o publico off-bistrô se confrontando com o filme, tentando lidar com aquele objeto artístico, rindo em horas certas e erradas, se revirando na cadeira - não mais do que o outro público de alta-classe o faz diante da maioria dos filmes de Bressane. E ainda ficando até o fim...

Pode parecer piegas, mas eu ainda me encanto ao ouvir a história de um rapaz que nunca, repito, NUNCA tinha visto um filme brasileiro no cinema, por falta de interesse e dinheiro, e veio nos dizer que tinha assistido 10 filmes na mostra - e que, por conta daquilo, estava impressionado e empolgado para ver mais. A arte de graça, arte como esmola-social, como eu disse, não é útil como política social porque não dá aos espectadores o sentido de protagonistas e colaboradores daquele universo - mas a verdade é que é fácil imaginar que ingressos entre 2 e 3 reais, em um sistema onde o lucro não é da ordem do grande marketing, seriam relevantes para a construção de um publico diferenciado para os filmes.

Porque aquele público, ali, não estava indo ver outros filmes além do fenômeno sub-televisivo do Se eu fosse você - aquele publico ali era o que não vai ao cinema nem ver Se eu fosse você porque não freqüenta os palácios cinematográficos. Dizer, supor, que não há interesse por filmes diferenciados ou que o publico não está preparado ou interessado em nada diferente - que só se busca o mesmo - é o cinismo que perpetua o somente o óbvio, o "fácil". Sim: eu vi gente voltando, voltando, reclamando, discutindo, um rapaz perguntando para o ator Fernando Eiras porque ele não tinha se emocionado com o Filme de Amor. Vi um grupo de senhoras aplaudindo espontaneamente Madame Satã, muita gente vendo Tudo é Brasil, estranhando, mas ficando para ver Nelson Freire, em seguida...

O choque estético não foi motivo para desistir dos filmes ou não voltar mais à mostra. Pode-se até descobrir que esses frequentadores off-bistrô gostam mais do 2 Filhos de Francisco do que de algumas obras-primas que eu, cineasta, via na programação -  mas o ânimo na sala nunca me pareceu contrário ou pouco entusiasmado pelo fato de estar vendo os outros filmes, as outras formas de se fazer filmes. O estranhamento nunca me pareceu suprimir o encantamento, o interesse. Repito: foram 3.000 pessoas em 15 dias em 1 sala só.

Utopia?

E se um evento como esse acontecesse três vezes, quatro por ano em 300, 400 salas brasileiras articuladas como um sistema paralelo? Marketeiros do grande capital adoram projetar público - então eu vou brincar disso também, assim de supetão: um potencial de 1,5 milhões de pessoas em 15 dias em possíveis 500 salas, ou, para ser mais flexível, em 1 mês. O que daria algo em torno de, se considerarmos 15 filmes, 100.000,00 espectadores por filme em 1 mês. Isso é mais que 80% dos filmes têm feito hoje, para começar. E se pensarmos em 90 dias por filme nesse sistema? 300.000,00 espectadores? Por filme? Mais que 90% dos filmes brasileiros hoje. Se forem cobrados ingressos de 2 reais - R$ 600.000,00 por filme. Com o sistema sendo subsidiado pelo Estado e controlado por uma agencia paralela, 70% desse dinheiro poderia ser recolhido pelos produtores para fazer outro filme - algo em torno de R$ 400.000,00. R$ 400.000,00 representa pouco menos de um terço do valor ideal para se fazer uma produção de um filme de pequeno porte (B.O.) no Brasil hoje. Dessa forma, os realizadores conseguiriam sempre com o filme anterior um aporte inicial para o filme seguinte - com vantagem, sim, porque não (arte é também capacidade de comover) para aqueles que lotassem suas salas: um filme, com salas de 100 lugares lotadas,teria potencialmente a possibilidade de recolher para uma nova realização algo em torno de R$ 600.000,00. E segue o sistema. E isso sem falar na distribuição digital via web e na difusão televisiva após dois anos de lançamento dos filmes nas salas de projeção, podendo fechar a engrenagem multiplicando o acesso, agora gratuito, a milhões de pessoas.

Soa complicado? Mas é melhor complicar mesmo - para quem realmente se importa, esta é a hora de complicar. Porque, do jeito que estão as coisas hoje, está tudo muito simples... Simples demais.

O cinema de pequeno e médio porte no Brasil tem que parar de apenas negar ou recalcar o grande circuito - tem que saber afirmar outro circuito. A partir do momento em que se perceber que a luta não é entre ser comercial ou não, mas entre modelos totalmente divergentes de sustentação econômica, criativa e comercial, aí teremos um desdobramento efetivo do que pode vir a ser um SISTEMA BRASILEIRO DE CINEMA.

Cineclubes, Sescs, universidades públicas e privadas, escolas públicas e privadas, projetos itinerantes - fazendo de todos não formas submetidas a um sistema, mas sustentadas sobre um sistema que funcione como uma grande memória audiovisual, um banco de filmes, um fórum híbrido de promoção que faria a ligação direta entre produtores e difusores brasileiros - pulando a cerca dos distribuidores tradicionais e seus parâmetros desajustados à nossa realidade. É urgente um mapeamento consistente das salas ditas "alternativas", "culturais", e um convite para a integração de um circuito de exibição que, em alguns anos, poderia chegar a algumas centenas de salas.

Em parceria com esse processo de organização mista, viria, naturalmente, a criação de um programa de implantação e sustentação inicial de pequenos difusores culturais locais (o programa Revelando os Brasis me parece uma boa inspiração de pesquisa neste sentido) que poderiam gerar um circuito de difusão digital do cinema - com padrão de qualidade pensado junto e implantado de maneira regionalizada. Esse sistema, através de ingressos tabelados abaixo do mercado convencional, funcionaria como uma teia de pequenos pontos de cinema - articulados de forma a se ter um controle convencionado dos números de público de cada filme - o que serviria para acabar com a ditadura dos números do grande mercado que ignoram os números de público de festivais, cineclubes, mostras, etc.

Se não nos faltar coragem, toda uma produção de pequenas obras cinematográficas de menor investimento e menor margem de lucro (ou de capital a ser recuperado e reinvestido) pode se tornar viva e sustentável, se dando de forma mais orgânica e animada, no sentido da criação de novas formas de linguagem periférica, inventiva, criativa e aberta a dialogar com um caldo cultural pop, videográfico e imagético que hoje está muito além do que dita o telenovelismo, que hoje é empregado como padrão de qualidade para a ocupação de mercado.

É preciso revigorar e renovar as formas de atuação e intervenção dessas imagens junto ao público. Não estou falando para deixarmos de lado as salas de cinema - longe disso. Só que o cinema brasileiro em salas de cinema precisa saber ser o que o cinema de salas é hoje no mundo - uma emergência de um caldo cultural audiovisual muito mais amplo. Querer fazer cinema sem intervir nesse caldo, me parece, será tentar começar um castelo de cartas apenas pela carta de cima (estética e economicamente falando).

Na indústria fonográfica esse paralelismo entre núcleos majoritários e redes de pequenos produtores já começa a se tornar possível - o cinema/audiovisual independente brasileiro precisa entrar na dança. O publico consumidor de audiovisual hoje é mais rápido, mais inteligente e muito maior do que o alcance do engessamento dramatúrgico e reprodução do já-corrente conseguem alcançar. Toda uma nova geração entre 15 e 30 anos está hoje entre os maiores consumidores de audiovisual no Brasil e não são o publico alvo dessas mumificações melodramáticas e comédias sem açúcar que viraram a grife de nosso dito "cinemão". A questão é saber ocupar espaço e saber criar o espaço a ser ocupado.

Resta aos realizadores interessados se organizar junto aos protagonistas dessa saudável multiplicação de janelas alternativas de difusão e, com um mínimo de esforço e coragem do poder público (iniciativa certamente mais barata e mais rentável socialmente do que patrocinar apenas festivais de grande porte e superproduções inócuas), construir uma outra rota a ser seguida. Um atalho com interlocutores de outra ordem, que nenhum elefante branco saberá seguir.

Obs: recebi e-mail de alguns colegas e amigos interessados em discutir formatos de difusão alternativa já em funcionamento no Brasil e em alguns países europeus. Vamos tentar levar a pesquisa adiante e apresentar algumas estatísticas e resultados em breve.


editoria@revistacinetica.com.br


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