história(s) do cinema brasileiro
Cinema brasileiro para quem? - O Retorno
por Eduardo Valente e Felipe Bragança
A volta das (questões) que não
foram
Há
pouco mais de três meses, lançamos aqui na Cinética uma série
de três artigos entitulada Cinema brasileiro, para quem?
Nesta, buscamos analisar, a partir de três temas distintos, porém
conectados (O Documentário e O Público; As Leis da Selva; e Um
Pequeno Desvio de Conduta), assuntos que nos pareciam questões
urgentes (e muitas vezes escamoteadas) do panorama do cinema brasileiro
e do mercado cinematográfico. Pois é justamente por sabermos que
nenhuma destas questões está sendo ainda realmente discutida (até
porque, em ano eleitoral, pouco se discute de prático), que não
nos parece surpresa alguma ver que temas diretamente relacionados
com os que tratamos voltam à baila no momento.
Primeiro, foi a matéria de capa da Ilustrada,
da Folha de S. Paulo, que, durante a Mostra de SP falou da dificuldade
de muitos dos filmes exibidos no evento paulistano em chegar ao
mercado das salas posteriormente. Nesta matéria, soou especialmente
“alta” a voz do sempre ativo Rodrigo Saturnino Braga, principal
executivo da Columbia no Brasil, que chegou a propor que filmes
sem acordos de distribuição prévios não deveriam ser realizados
com dinheiro público, por não terem a garantia de chegar depois
ao espectador. Embora o raciocínio de Saturnino Braga não deva
ser desprezado de saída, o que ele precisava era ser evoluído,
e adaptado às diferentes realidades que o cinema permite pensar:
primeiro, porque nem todo filme é feito por conta de seu DNA comercial,
e por isso mesmo a idéia de Saturnino Braga não pode se aplicar
a todo cinema. Segundo, porque ele parece dar importância demais
ao tradicionalíssimo circuito exibidor comercial de cinemas, ignorando
as realidades de retração deste no mundo (e no Brasil), e principalmente
o quanto ele não dá conta da realidade social do nosso país. Por
isso, nem tanto ao céu nem tanto à terra.
Logo depois, foi o BNDES que de certa forma encampou as idéias
de Saturnino ao anunciar seus premiados do ano (num dos dois concursos
que hoje são quase totalmente responsáveis pelo cinema brasileiro
– junto com o da Petrobras), numa lista assumidamente mais “comercial”
(basta dizer que entre os ganhadores estavam Wolf Maya e Miguel
Falabella) – ainda que não totalmente restritiva. De novo, vamos
pedir “parcimônia” nas análises de lado a lado. Por um lado, faz
sentido a percepção do banco de que o mercado de cinema para os
documentários está hiperativo, sem resultados a contendo (como
tratávamos de discutir na parte 1 dos artigos); mas, também há
que se colocar em pauta de novo o tema de que cinema o Governo
deve incentivar diretamente. Afinal, curiosamente são empresas
que constantemente pedem a distância do Governo das regulações
de mercados (majors, Rede Globo) que vão depois concorrer
(e ganhar) dinheiro do mesmo Governo em concursos. Há que se manter
algum tipo de coerência entre discurso e prática, afinal. Ou não?
* * *
Um prêmio do público, para o público, pelo
privado
Um caso recente desta confusão público-privada se deu na entrega
recente do auto-propagado "maior prêmio em dinheiro dado
num festival brasileiro", oferecido pela Petrobras na Mostra
de SP deste ano. O prêmio de 400 mil reais, para ajudar a distribuição
de filmes, foi dividido em dois entre Antonia e O Ano
em que Meus Pais Saíram de Férias. O primeiro será lançado
no começo do ano que vem, com apoio da Globo Filmes, pela distribuidora
independente Downtown Filmes, enquanto o segundo já está em cartaz,
lançado pela major americana Buena Vista.
A pergunta que vem imediatamente é: que faz algum
sentido esta passagem de recursos diretos da estatal para uma
major? Ainda mais em se tratando de um filme que entrou
em cartaz antes de ganhar o prêmio (e, pelo que conheço do serviço
público, acho incrível pensar que o dinheiro vá ser liberado ainda
para o lançamento do filme). Mesmo que seja, porém, como entra
na campanha de marketing já montada e em execução um dinheiro
que não estava planejado, quando ela já está no ar? Será que este
dinheiro era necessário, ou será um extra para quem já tinha bastante
dinheiro?
No caso do outro filme, Antonia, minha pergunta é de outra
ordem: mesmo sendo a distribuidora independente, o filme em questão
se configura num caso curioso. Daqui a menos de 10 dias entra
no ar uma série de TV na Rede Globo com as mesmas personagens
e com história que segue a do filme. Para além de eu não compreender
bem como o lançamento do filme daqui a mais ou menos quatro meses
pode se relacionar com esta série anteriormente exibida, o que
fica é a certeza de que o maior número de espectadores que o material
vai atingir será na televisão, agora – por motivos óbvios relativos
ao público de cada mídia. Além disso, sucesso ou fracasso, esta
mídia natural já garante uma senhora exposição ao filme, que não
parece especialmente necessitado de espaço de divulgação.
Que fique claro: gosto dos filmes (até adoro mesmo
o filme de Cao Hamburger, como mostra minha
crítica), e espero sinceramente que sejam enormes sucessos,
mas o que está na mesa é uma questão política: havia em competição
na mesma Mostra uma série de filmes com plenas possibilidades
de contato com o público, sem nenhum "excesso autoral"
ou “miurismo”: O Cheiro do Ralo, O Céu de Suely,
Os 12 Trabalhos, Proibido Proibir. A diferença é
que todos serão lançados por distribuidores independentes, precisando
de muito apoio e mídia para chegar ao público – a qualquer público.
A que fim serve, portanto, injetar este “maior prêmio” naqueles
que menos parecem precisar deste?
A resposta mais imediata seria a de que o critério
do prêmio foi o de um “júri popular”. Pois este critério é o que
de mais discutível há, parecendo mais uma covardia ao lidar com
questões politicas graves, escoran o prêmio na lógica do "voz
do povo, voz de Deus". Só que esta lógica é muito pouco matemática:
ano passado, por exemplo, A Máquina ganhou o prêmio do
júri popular no Festival do Rio. Foi lançado com muito mais cópias
e mídia, e no entanto deu muito menos público que seus concorrentes
Cinema, Aspirinas e Urubus e Cidade Baixa. O motivo
é óbvio: o público de um Festival não é a "voz do povo";
é a "voz de um povo". E um povo que pode facilmente
ser viciado – e eu digo isso de dentro, tendo sido coordenador
da Première Brasil do Festival do Rio por dois anos, e visto de
perto quão pequeno é o universo em jogo (isso numa premiação auditada
pela Price Waterhouse, diga-se). Aliás, do alto desta experiência,
me pergunto ainda quais seriam estatiscamente as chances reais
de um empate numa votação popular? Não que eu ache errado dividir
o dinheiro, mas eu acho que se fosse deviam ser logo dois prêmios
de 200mil desde o começo, e não uma divisão por um "empate"
– que ainda parece pouco provável.
Não custa lembrar que, na França, a Warner foi processada e obrigada
a devolver dinheiro do governo gasto num filme “francês” que depois
se provou de posse total da major. Algum dia a questão
da relação entre dinheiro estatal e lucro privado precisa ser
mais levada a sério no cinema brasileiro. O repasse de dinheiro
da Petrobras para majors por concurso ou prêmios de distribuição
fazem, afinal, algum sentido? Se não, porque não tomar providências
para que isso possa ser melhor previsto? Perguntas que ficam neste
limiar do segundo Governo Lula.
(Eduardo Valente)
* * *
O caso PopCine
A Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo (na figura do secretário
João Batista de Andrade) anuncia para este mês a abertura do primeiro
espaço dedicado ao que eles chamam de “PopCine – circuito popular
de cinema”. Trata-se de uma rede de salas de projeção digital
que pretende difundir o hábito da sala de cinema e o interesse
por cinematografias diferenciadas em parcelas da população normalmente
distanciadas dos grandes templos de consumo de cultura. Os ingressos
deverão custar cerca de R$ 4,00 (a inteira) e os espaços serão
implantados com um gasto unitário de R$ 60 mil.
É claro que, diante dos preços de aluguel de DVDs
nas locadoras de bairro, ainda é muito mais caro um grupo de 3
amigos ir ao cinema nessas salas (R$ 12,00 no total) do que alugar
e assistir a mídia digital em casa (algo em torno de R$ 5,00).
Fica claro, portanto, que o PopCine só se sustenta como projeto
político-cultural se conseguir efetivar seu intuito de levar a
essas salas uma filmografia (brasileira e estrangeira) DIFERENCIADA,
que costuma passar longe mesmo das locadoras suburbanas e
das salas de cinema comerciais locais. A grande dúvida é se há
demanda de público por essa diversidade, e pela sala de cinema
como espaço de cultivo da diferença – ainda que minha
experiência pessoal na produção de mostras em espaços menos elitizados,
me diga que sim.
É certo, porém, que faria mais sentido, num olhar
mais estrutural e coletivista, que cada espectador pudesse pagar
5 ou 6 reais mensais e virar sócio do espaço PopCine por
1 mês, vendo quantos filmes quisesse – num sistema de cineclubismo
incentivado pelo Estado e não mediado pela lógica do ingresso
unitário. Agora, para quem tem poucos recursos no bolso, o ingresso
cair de R$ 12,00 (em média) para R$ 4,00 é uma baita diferença!
Quem gosta de cinema e só ia a uma sala de projeção 1 vez por
mês, porque juntava os trocados para poder ir (conheço algumas
pessoas assim), poderá pensar em ir 3 vezes, ou 2 pelo menos,
se virar freqüentador de um PopCine (o que já seria um avanço
de 100%). O mais importante, porém, em se tratando de CINEMA
afinal, é saber se a qualidade do fetiche de imagem das salas
instaladas (capacidade técnica da projeção-som, escolha dos filmes
que melhor se integrem às capacidades estéticas da projeção, estrutura
de interação social) vai conseguir sustentar junto ao público
a aura de um lugar diferenciado de seus sofás-com-o-DVD-alugado-na-esquina
e sua TV pequena. Interesse por consumo de cultura há sim, no
país. E uma classe média/média-baixa (não os extremamente pobres,
porque aí a questão é bem mais ampla e vertical), poderia pensar
em consumir cinema, sim, se o valor do ingresso caísse 70% como
nessa pequena investida. A ver como ela será levada e aperfeiçoada.
(Felipe Bragança)
editoria@revistacinetica.com.br
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