sessão cinética
Ondas
do Destino (Breaking the Waves), de Lars Von Trier (Dinamarca, 1996) por
Rodrigo de Oliveira
Por
quem os sinos dobram
Voltar a Ondas do Destino
depois de tudo o que de Lars Von Trier já nos foi dado a ver nesta década de intervalo
pode acabar se assemelhando a um jogo de sete erros. É inevitável buscar ali tudo
aquilo que é suposto como idiossincrasia do cineasta dinamarquês: onde deixou
traços de seu sadismo, de que maneira opera a distância clínica que mantém de
seus personagens, como recoloca o registro naturalista dentro de uma matriz dramática
oposta, de quantos pontos de vista diferentes filmou a miséria da humanidade e
quem precisou ser sacrificado para tal fim. Um manipulador, portanto, e que encontra
na Bess McNeill de Ondas do Destino alguém absolutamente disponível a ela
(“você daria tudo a qualquer um” é o que diz a cunhada de Bess no brinde de seu
casamento). Como os filmes seguintes de Von Trier provaram, o poder do diretor
sobre os destinos que arregimenta nunca é uma questão em si, mas um princípio
básico de sua relação com o mundo. Tomar a manipulação como um defeito (ou como
um palavrão, para os defensores do cinema sensível de amor devoto à cena) é esconder
o que há de mais interessante nela: aquele momento em que, livre das implicações
éticas exteriores ao universo da ficção, ela começa a mostrar literalmente onde
pôs as mãos, onde deixou as marcas de sua intervenção direta num objeto que depende
dela para tomar forma. O manipulador como um escultor grosseiro, que precisa deixar
no barro a impressão de seus dedos, a dimensão processual de seu trabalho. Muitas
vezes esta pareceu uma conversa de si para si mesmo, onde um elemento dramático
era apresentado e logo surgia um comentário sobre seu funcionamento (um registro
atribulado que serve à “piração” em Os Idiotas, os números musicais para
revalidar a experiência de Selma em Dançando no Escuro, a narração romanesca
e as meta-reuniões dos moradores de Dogville). Bess McNeill pode bem ter
sido a única vez em que Lars Von Trier lidou com algum nível de interlocução em
seu cinema, onde houve um espelhamento não só de sentidos, mas
também de métodos entre criador e criatura. Isto já está dado no pequeno prólogo
de Ondas do Destino, onde muito rapidamente se instala uma situação a cujo
passado nunca teremos acesso e que, por isso mesmo, depende de uma crença imediata
do espectador: jamais saberemos como Bess e Jan se conheceram, por que um homem
tão imponente se apaixonou por uma mulher tão quebradiça, como se deu o trajeto
até o casamento. Temos apenas uma noção muito clara de interior e exterior, de
uma comunidade calvinista cheia de restrições e do encanto oferecido pelos outsiders
representados por Jan e seus companheiros de trabalho, de uma personagem que
se apresenta tão dominável por sua aparência frágil e pela clara demonstração
de uma patologia mental e que, numa rápida olhadela para a câmera, cria um abismo
entre aquilo que nos é dado a ver nela e todo um mundo de coisas que não teremos
como entender, mas no qual seremos levados a acreditar. Não
é uma crença cega, porque Ondas do Destino é justamente sobre a entrada
das sensações no domínio do visível. Bess primeiro vive o sexo com o marido, ainda
de vestido de noiva e num banheiro apertado do salão de festas, para só então
ter a dimensão material desta experiência, e se admira com a simples observação
do corpo nu de Jan, com a pele, os membros, a genitália. Quando o sexo for impossível,
ela tentará fazer o marido ver (e conseqüentemente viver) aquilo que as circunstâncias
o impedem de sentir normalmente. Num ambiente que interdita a expressão feminina
em seus cultos religiosos, Bess encarnará um papel duplo em suas orações, onde
não só pede suas bênçãos, mas também as responde, serva e Senhor
incorporadas numa única pessoa – e não há espaço para um diálogo interior e mudo,
ele precisa ser jogado no mundo em voz alta. Não se trata simplesmente de um pacto
faustiano às avessas, onde Bess se associaria perigosamente a Deus e não ao Diabo,
mas sim de uma relação que exige constante negociação, onde o que está em jogo
é a quantidade de poder que se acredita ter e a manifestação (novamente) visível
deste. Como é comum aos santos, Bess passou pelo mundo sem que dela se pudesse
tirar mais que sua fisicalidade – era ela, a mulher, lá onde se exigiu que ela
estivesse. E como é comum dos milagres atribuídos aos santos, não importa a maneira
como se processou a crença, mas que dela se tirou uma cura real. Se tudo isto
se deu por causa da intervenção direta de alguém, da fé de Bess no amor ou da
fé de Lars Von Trier em Bess, isso nunca saberemos. Sobraram apenas as marcas
dos dedos, os veios abertos sobre a matéria, e estes sobrevivem em Ondas do
Destino com uma integridade rara. Setembro de
2009editoria@revistacinetica.com.br
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