ensaios
O brilho do lago
Notas sobre um filme raro
por Fábio Andrade
1.
Durante
a reunião dos poetas e simpatizantes em Brilho de uma
Paixão, de Jane Campion, entreouvimos comentários
sobre um poema que especulava que, talvez, a décima musa
pudesse ser o próprio amor. A referência às
nove musas da mitologia grega será confirmada na cantoria
que vem pouco depois (uma vez que as musas eram famosas por, quando
jovens, harmonizarem suas vozes em um coro inigualável),
e traz a Brilho de uma Paixão um insuspeito acento
alegórico - já que, desde os primeiros minutos de
projeção, nunca duvidamos estar diante de uma tragédia.
Como é um filme sobre um artista - e que, inclusive, mostra
uma relação que nasce e perdura, até mesmo
após os créditos finais, por meio dos poemas -é
inevitável buscar por articulações obscuras
sob o tecido emocional impecavelmente trançado por Jane
Campion. E se Brilho de uma Paixão é um
filme sobre arte, o é também, inevitavelmente, um
filme de amor.
Nos primeiros planos, uma mão costura pontos delicados
em um tecido. Antes mesmo de haver John Keats, há Fanny
Brawne (Abbie Cornish) - a protagonista que a câmera acompanhará
com fidelidade ao longo do filme. Antes que Keats seja apresentado,
Fanny Brawne tem uma discussão com Mr. Brown (Paul Schneider)
que sugere rusgas passadas, em uma relação que já
conhecemos em esgarçamento. Suas conversas serão
um constante jogo de forças - mais uma tensão sem
vencedores possíveis do que propriamente um diálogo
filosófico, como em Morte em Veneza - e seguirão
permeando, em quadro e fora de quadro, todo o filme. São
personagens condenadas à interação do plano-contraplano.
Antes de Keats, há Brawne e Brown: personagens unidas em
significado pela semelhança dos nomes, mas cuja sutil diferença
de grafia permite vislumbrar o inconciliável.
Keats - o poeta- surge em meio aos dois, e entre eles ficará
até sua última aparição, antes de
embarcar para um exílio que não permite mais imagens
de vida. Keats sai de quadro mas, assim como chegaram antes, Brawne
e Brown permanecem para além de sua presença. Para
sobreviver, Keats precisa estar entre os dois: Brown, o sujeito
que lhe permite criar e o acompanha no ofício diário,
a corporificação da techné (ou do
craft); e Brawne, sua musa - e, como tal, a manifestação
plena do amor e da beleza .
Ao poeta, cabe tentar administrar essas forças incompatíveis,
necessariamente complementares ao seu ofício. Fanny Brawne
- mulher que se mistura à natureza como só o amor
poderia ser capaz, obrigando as estações a mudarem
de acordo com o seu humor (ou o contrário, como logo veremos;
a natureza antecede e determina a beleza) e se harmonizando perfeitamente
às flores que colorem a paisagem - chega à janela
do escritório enquanto Keats e Brown tentam escrever. Ela
acena para o poeta, como se fosse a personificação
da própria vista para o jardim, de tudo que aquele gramado
verde tem de convidativo ao gozo da simples contemplação.
Brown - homem do ofício - tenta fechar a janela, e é
repreendido pelo artista: "se não a vejo, fico ansioso".
Se não há dúvidas que Keats é o
poeta, a construção das personagens de Fanny
e Brown é mais sutil. Embora também seja artista,
a relação de Fanny com a arte é de outra
natureza. Ao contrário da poesia, sua criação
é extremamente material: desde o primeiro plano, a costura
é a arte do toque, do contato, do aperfeiçoamento
de uma beleza que cobre os corpos, que procura um pedaço
de fita para expressar o amor por meio de uma cesta de biscoitos,
que quer ser excepcional, ser "a primeira a tecer uma gola
tripla plissada em cogumelo" na cidade. Amar é - em
especial quando se fala do Romantismo - se afirmar único.
Brown, ao contrário, nunca é tido como um poeta
de fato - ao menos não na acepção moderna
do termo. Ao contrário, nada em sua personalidade parece
excepcional. Se há uma poesia no trabalho de Brown, ela
está mais próxima da antiga concepção
grega, na qual - citando João Ricardo Moderno, em A
Estética da Contradição - "o cânone,
ou seja, as normais gerais, era o que de mais importante havia
na produção material grega. Aplicar as regras sem
criar era superior a qualquer rasgo de individualidade".
Ele é, como desmascara Fanny, o macaco; aquele que, mesmo
sem o apuro do raciocínio e a liberdade dos devaneios,
pode encontrar uma pedra e batê-la contra outra até
formar uma lança que lhe sirva para caçar. A techné,
portanto, é uma habilidade artisticamente indistinta: Brown
pode, igualmente, ajudar John Keats a atingir a perfeição
e em seguida escrever um poema sobre bolinhos para galantear a
empregada e levá-la pra cama. Nos dois casos, há
sucesso.
Brilho
de uma Paixão reconhece, em Keats, essa idéia
da arte moderna (ou da estética) que precisa conjugar a
techné com a vivência da beleza (do amor,
enfim) para então criar algo perfeito, algo que confirme
que - citando novamente o livro de Moderno, pinçando uma
definição do Sofista, de Platão
- "a poética seria a arte de produzir aquilo
que falta na natureza". Brown busca uma utilidade para o
embelezamento. Brawne embeleza o que tem utilidade; como decorrência
da natureza, ela não pode escrever (ou, palavras dela,
sequer entender) a poesia de Keats. Ao final, já sem o
poeta, ela volta - com um poema - a se integrar com a floresta.
Ele, por sua vez, é o artista estético, aquele que
coordena a prática material com a experiência do
sublime (a epifania) para criar algo que não existe na
natureza. Keats é o poeta; Brawne - o amor - apenas se
enxerga refletida em seu trabalho (como sugere o primeiro momento
de intimidade entre os dois, no qual a duplicidade produzida por
um espelho inspira, em Keats, uma piada).
2.
Mas se Brilho de uma Paixão é um filme
de beleza e arte - e que, ao contrário de Fanny Brawne
(o amor), precisa chegar ao fim -é inevitável que
ele seja, também, sobre a História. Nesse sentido,
o filme de Jane Campion é uma espécie de continuação
direta, mesmo que velada ou inconsciente, de Maria Antonieta,
de Sofia Coppola. Em primeiro lugar, há uma continuação
epocal: John Keats nasceu apenas dois anos após a morte
de Maria Antonieta - e de tudo que ela simbolizava. Durante o
período de vida da rainha francesa, o historiador de arte
Johann Joachim Winckelmann apontaria para o Torso de
Belvedere, uma estátua sem cabeça ou membros, e
declararia o nascimento da estética.
Brilho
de uma Paixão já nasce, portanto, sob a égide
dessa nova concepção de arte - aquela que Sofia
Coppola introduzia à força (e daí saía
o choque político de seu filme) nos palácios de
Maria Antonieta. Mas, antes de qualquer coisa, há
o ócio. Maria Antonieta e Brilho de uma Paixão
são ambos filmes que decorrem do ócio, e que o valorizam
a cada nova cena. No filme de Sofia Coppola, esse ócio
ganha uma leitura (para muitos, negativista) absolutamente contemporânea:
a vida de Maria Antonieta contrasta a ritualística real
à gratuidade dos passatempos fúteis; alguém
se apaixona por, essencialmente, não ter nada melhor a
fazer.
O cinema de Sofia Coppola enxerga o gesto rosselliniano
na redução da História (ou melhor, de sua
transposição para o cinema) a perfumaria, a uma
orquestração de cores e formas absolutamente estonteante
que reafirma, a cada segundo, a subjetividade de quem olha. Winckelmann
aponta para o Torso não-identificável e
diz: "cá está Hércules!" Citando
Rancière, um Hércules lido apenas pelos músculos
do torso que representavam "o movimento ultrapassado, o movimento
igualado ao repouso, o trabalho igualado à ociosidade".
Um Hércules que talvez sequer seja Hércules, mas
que ganha peso estético justamente nesta deliberação:
é Hércules! Sofia se alinha perfeitamente a essa
decisão estética - que, como tal, só pode
ser uma declaração inventada - onde a arte, lembramos,
oferece à natureza o que ela não tem. A cada mês
de espera por novas palavras de Keats, Brawne morre mais um pouco
trancafiada em seu quarto. Com sua vivacidade, vão-se as
borboletas. Distante do poeta, a natureza existe, mas o amor definha
lentamente.
Brilho de uma Paixão parte de um lugar diferente
de Maria Antonieta, pois seu ponto-de-vista não
é o de Keats - o poeta estético - mas sim o de Brawne,
a artista do toque e da matéria. A ociosidade ganha, aqui,
um sentido diferente. Se em Maria Antonieta tínhamos
essa bomboniere de artigos inúteis (logo, artigos
estéticos), na vila de Brilho de uma Paixão
a arte é uma atividade cotidiana que preenche o tempo flutuante
daquela comunidade. Brawne se dedica à costura, mas faz
também aulas de poesia e de dança; Keats é
o poeta que participa do coro, que recita à mesa de jantar,
e que usa a recepção da própria comunidade
como termômetro de valor para seu trabalho (não à
toa, nos diz a legenda que ele morrera acreditando ser um fracasso).
É natural, portanto, que Jane Campion nunca se permita
os choques gráficos e semânticos do filme de Sofia
Coppola. Brilho de uma Paixão dá um passo
atrás para olhar mais adiante, trocando a afirmação
efêmera (mesmo que definitiva) do presente de Maria
Antonieta (lembremos também que a estética
é uma projeção do que de mais íntimo
há no sujeito, logo, algo que o supervaloriza: Winckelmann
acentua a perfeição do corpo masculino no Torso
também como forma de expressar sua homossexualidade) por
uma discrição do olhar que acreditar servir a algo
que lhe é externo.
Jane Campion, como Keats, precisa se anular, precisa morrer -
mesmo que seja na discrição dentro da obra - para
que a arte possa perdurar, no fade out dos créditos
finais. Suas armações trabalharão, sempre,
em um nível de subreptícia discrição.
Quando Brawne se apaixona por Keats, o destino é anunciado
na morte do irmão de seu amado: "Mr. Keats has died".
Essas palavras pairarão sobre todo o filme, configurando
a tragédia quando o romance mal se anuncia. Mesmo
o arroubo mais absurdo de paixão - quando um quarto inteiro
é tomado por borboletas - é antecipado pela cena
dos irmão mais novos de Brawne caçando borboletas
no bosque. Enquanto Sofia Coppola acentuaria seu discurso sobre
o "torso" colocando um par de tênis All Star entre
os sapatos da rainha (plano que demarca a intervenção
direta da artista e conceitua o paradoxo deleuzeano,
no qual o estilo é a diferença subordinada ao idêntico),
Jane Campion fala sobre o "torso" como se apenas amplificasse
as palavras dele próprio. Brilho de uma Paixão
está adiante de Maria Antonieta a exata medida
que faz, dele, um filme tanto mais clássico.
3.
Por
outro lado, Brilho de uma Paixão é um filme
de amor. Um filme sobre um casal que se apaixona e cria uma intimidade
que move todas as decisões de personagens e diretora. Em
dado momento, Keats explica a Fanny a essência de um poema.
Ele, muito romanticamente, aconselha que ela não procure
por significados escondidos, ou tente entender exatamente o que
cada personagem representa. Diz que quando se mergulha em um lago
não se quer apenas chegar à outra margem, mas principalmente
deleitar-se com a sensação da água. Tal cena
faria deste texto um contrassenso. Mas há também
as cenas entre Keats e Brown, e todos os comentários sobre
a métrica perfeita, a colocação inusitada
das rimas. As conversas que afirmam que, para haver a sensação
de água, um lago precisa, antes de mais nada, ser água,
ter uma composição material, estar no mundo de uma
única maneira que poderá ser experimentada de diversas
formas. E se estamos dentro dele, há a sensação
da água; mas se nos colocamos de fora, ele reflete o que
está à sua volta, e os olhos que olham pra ele.
Em ambos os casos, há sempre o mesmo e único lago.
Novembro de 2010
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