Brilho
de uma Paixão (Bright Star), de Jane Campion (Austrália/Reino
Unido, 2009)
por Juliano Gomes
Clareza
fugaz
De cara, Brilho de uma Paixão enfrenta
uma série de perigos onde grande parte de seus pares escorrega:
fazer um filme de época; sobre o amor romântico; e mais, sobre
um dos mais importantes poetas do romantismo inglês. A partir
de uma sinopse absolutamente banal, compartilhada com quase todo
o gênero de filmes de romance de época, Jane Campion consegue
driblar tudo isso e fazer umas das obras mais instigantes a chegar
ao circuito brasileiro recentemente. O filme tem um foco claro:
acompanhar única e somente o nascimento e o fim de uma paixão
fulminante. É somente disso que ele se ocupa. Não há espaço para
subtramas ou para maiores desenvolvimentos dos personagens para
além de sua relação direta com esta questão. Tudo ali está relacionado
e tem sua existência condicionada a este amor, e todo o filme
se concentra em acompanhar estes estados que este sentimento percorre.
A tragédia é anunciada desde os primeiros minutos:
trata-se de um amor impossível. A consumação plena desse sentimento
é sua própria dissolução. Ele já nasce condenado, não somente
pela falta de condições materiais do pretendente John Keats, mas
por sua própria intensidade. É grande demais para esses personagens.
Só é possível no mundo das coisas, fora do corpo, para além daqueles
dois amantes. Este além não é imaterial, onde ocorreria uma união
de suas almas, mas um lugar concreto, desdobrado em outros corpos
e objetos, como tecidos, paredes, folhas e borboletas. Campion
se coloca como que à espera desse mundo como manifestação visível
e tátil, atenta ao que pode ser visto e tocado. Busca
materializar o amor como presença no mundo, quer localizar esta
transformação, esta combustão, onde ela se torna algo palpável.
Pode ser num vento na cortina, num toque na parede, ou num vôo
de borboletas. O que o cinema pode fazer ali é registrar, é tornar
imagens essas evidências, é trazer à tona a parte visível deste
processo, destas metamorfoses, destes trajetos. O amor não imprime
na imagem, é impossível fazê-lo aparecer em si. O que vemos é como ele
se expressa nas coisas, e como se dão estas atrações. Atrações
físicas, mas não só entre duas pessoas, dois corpos humanos; mas
também entre os tecidos, as paredes, as agulhas, as flores e a
relva. Tudo clama por toque, por contato e, consequentemente,
por dissolução – por uma transformação pelo contato, por tornar-se
o que se toca, por um novo estado de mistura com o outro, por
uma comunhão, onde não mais se pode voltar ao estágio inicial.
É aí que reside a força principal do filme, nessa relação intrínseca
entre o que está fora, no mundo, e o que está dentro do coração
de seus protagonistas.
O
exemplo mais claro disso são as mudanças das estações do ano.
O filme começa e termina no inverno. É do frio que começa a brotar
o amor que une John Keats e Fanny Brawne. Campion apresenta este
amor como um processo exterior. O mundo, a natureza, e os objetos
inorgânicos, pulsam junto desses dois corações, e definham junto
com eles, assim como a extremamente precisa luz de Greig Fraser.
Sua naturalidade se dá de maneira discreta e decisiva na composição
de cada cena. Seus tons são muito mais escuros do que cintilantes.
Para dar existência a essa ebulição silenciosa das superfícies,
a opção é por uma luz que nunca chama atenção demais para si mesma,
por uma escrita da discrição que só atinge a exuberância na primavera
desse amor, onde tudo brota e nasce, onde é possível essa vida
fugaz e intensa, esses três dias de amor profundo que “duram mais
do que cinqüenta anos” segundo o próprio Keats. Todo o resto é
noite, escuridão, paredes instransponíveis – mas que precisam
existir, pois estão conectadas a essa beleza breve, que só existe
como um instante pregnante. Sua moldura é feita de sombras, assim
como toda estrela (o título original significa “estrela cintilante”):
só existe na noite.
Tais
trevas são necessárias para que este amor possa existir. E Keats
é o tempo todo consciente disso. Os poemas ditos no filme colocam
sempre essa associação em evidência. Há um pacto
consciente com a impossibilidade deste amor e sua consumação.
Trata-se de aceitar esse mundo, seus limites, suas fronteiras
intransponíveis, mas sem abdicar do desejo. Se “existem impossibilidades”
é na direção delas que os personagens rumam. Se para esse amor
se consumar é preciso abandonar a vida, então é esse o caminho
a seguir. A consumação do amor é seu fim. A morte é aqui um alívio,
é o fim da angústia de ser dois, de ser separados. É também o
lugar de um amor absoluto e total, impessoal; amor do mundo, amor
da natureza, onde tudo se combina e vive em
harmonia. Campion se dedica a observar a beleza
sutil deste sentimento desdobrada no mundo que ronda esses personagens
e se funde a eles. O uso de lentes teleobjetivas, especialmente
nos exteriores, acentua ainda mais esta relação de achatamento,
de fusão entre os personagens e o mundo que eles habitam.
A criação desse lugar absolutamente particular
distingue Brilho de uma Paixão de outros “romances de época”.
O filme renuncia a qualquer tipo de beleza fácil para criar um
universo que pulsa junto desse amor, onde tudo se afeta mutuamente,
onde cada objeto parece reagir ao toque, onde cada parede e tecido
parecem desejar serem atravessados. Ao conseguir tornar presente
e crível esta teia que liga estes personagens e seus espaços,
a diretora nos oferece um dos filmes mais abertamente sensoriais
dos últimos tempos – sensorialidade que é conjugada a uma absoluta
clareza. E isso é um feito e tanto.
Agosto de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
|