Bubble (Bubble), de Steven Soderbergh
(EUA, 2006)
por Eduardo Valente

Artifícios do real

Steven Soderbergh é um autêntico animal cinematográfico, em todos os sentidos. Basta pensar que, enquanto Bubble é lançado mundialmente, ele já está envolvido em três outros projetos (um já filmado, o thriller histórico baseado no livro O bom alemão; um, prestes a começar – a terceira parte da série Onze/Doze Homens e um Segredo; e Guerrilla, filmado em espanhol, com algumas imagens já feitas e a ser terminado em 2007, sobre a participação de Che Guevara na Revolução Cubana). Ah, sim: estes três filmes não fazem parte da conta dos cinco outros filmes em alta definição que ele deve fazer nos próximos quatro anos dentro do mesmo contrato que deu à luz Bubble – ufa, cansa só de escrever.

Mas, Soderbergh é mais do que apenas um workaholic que não consegue parar de filmar: a outra característica que marca seu cinema é uma completa inquietude formal, que parece fazer com que ele sinta a necessidade de experimentar todos os cinemas no seu próprio cinema, tornando sua principal marca autoral a ausência de um estilo definido. Ou talvez fosse melhor definir diferentemente: sua marca autoral é ser um cineasta apaixonado pelo cinema e suas formas de narrar, antes de qualquer outra coisa. E um cineasta que tem a necessidade de expressas esta paixão tanto de forma prolixa quanto sem cair nunca na rotina da realização. No seu caso, as idas e vindas entre filmes de estúdio e produções independentes parecem menos fruto de uma contingência eventual de produção do que uma necessidade pessoal de manter-se em movimento, de nunca ficar parado, confortável.

Alguns mais maldosos diriam que este movimento constante indica também uma incapacidade de se concentrar – e não estariam errados. Bubble, neste sentido, é um filme essencialmente soderberghiano. Se, por um lado, sua maior força advém justamente da incrível capacidade do diretor de “falar cinema” (seus enquadramentos e trabalhos espaciais no filme, assim como o jogo de seus atores/não-atores, nunca são menos do que intrigantes), sua maior fraqueza se revela sempre que a forma parece se acomodar e sobra a Soderbergh a missão de “empurrar” para dentro dela um conteúdo. Bubble é tão mais satisfatório quanto mais instintivo parece o material que vemos. Quando Soderbergh se dispõe a buscar imagens com força simbólica-poética própria, mete os pés pelas mãos (como fica especialmente claro nas imagens “iluminadas” da personagem principal, em seus transes epifânicos).

Não deixa de ser curioso que muitos tenham elogiado o filme pela sua capacidade de emular uma realidade típica do white trash norte-americano, como se através do uso de não-atores Soderbergh atingisse algum tipo de naturalismo. Pois, seu trabalho está muito mais próximo da matriz bresson-straubiana, onde o que mais chama a atenção é o artifício na reconstituição de uma realidade (artifício este em muito amplificado pelo uso do scope e dos enquadramentos quase sempre fixos). Que se some a isso sua forma de filmar o ambiente das linhas de produção industriais, como poucas vezes se viu no cinema americano. A verdadeira operação que Soderbergh parece operar aqui é a de pegar a banalidade da vida média americana e buscar arrancar o excepcional dela: espremer o cinema (líquido vital do qual se alimenta) que há na normalidade – seja pelo trabalho visual, seja pela irrupção de uma trama tipicamente cinematográfica da vida comum de seus personagens.

Na verdade, se Bubble parece ser um manifesto de alguma coisa, isso se dá menos num sentido estético (afinal, sabemos que Soderbergh não tem dogmas), e mais na afirmação da potência ficcional-cinematográfica do mundo. Soderbergh acredita que há cinema a ser retirado e encontrado em toda ação/situação humana – é só uma questão de esperar. Nesse sentido, todos os filmes dele são de uma comovente profissão de fé no seu meio expressivo – e destes talvez Bubble seja o mais comovente, especialmente se visto como o Doutor Jekyll em relação com o Mister Hyde da série Onze Homens e um Segredo – dois lados do mesmo espelho onde artifício e mundo real se cruzam o tempo todo. Entre os não-atores interpretando em Bubble, e Julia Roberts encenando a si mesma, a distância não é tão grande.


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