in loco - cobertura dos festivais
E Buda Desabou de Vergonha (Buda as sharm foru rikht),
de Hana Makhmalbaf (Irã, 2007) por Cléber
Eduardo Sem
vergonha e sem constrangimentos
Em alguns momentos
de E Buda Desabou de Vergonha, uma menina de aproximadamente 6 anos, disposta
a ingressar na escola, desafia as leis de controle ao comportamento feminino.
Sem ter ainda consciência de sua condição cerceada em uma sociedade regida para
e pelos homens, no Afeganistão contemporâneo, ela usa o batom que rouba da mãe
como caneta. O produto usado para realçar os lábios torna-se ferramenta de uma
outra boca: a linguagem escrita. Senso de transmissão com um objeto da vaidade.
Na sala de aula, na qual a protagonista estréia após um pequeno périplo, o batom
gera um fuzuê. Todo um sistema de ordens é colocado sob ameaça por conta de uma
brincadeira de criança. Rebeldia lúdica. Esse momento isolado
já seria suficiente para situar Hana Makhmalbaf e E Buda Desabou de Vergonha
em uma linhagem específica do cinema iraniano, da qual fazem parte também Jafar
Panahi com O Círculo e Fora de Jogo, assim como a irmã mais velha
da diretora, Samira Makhmalbaf, com A Maça e Às Cinco da Tarde.
Estes filmes foram fundamentais na formação da diretora já conhecida por sua precocidade,
que chega ao segundo longa com 18anos. São obras cujo principal objetivo é expor
a situação feminina em países controlados por valores religiosos marcados pelas
interdições a determinados comportamentos. Obras políticas, umas mais diretas,
outras mais medidas. A
de Hana carrega algo de singelo, talvez por se desenvolver dentro dos limites
de uma brincadeira, mas essa brincadeira é, na verdade, potencializadora da abordagem
política. A nova geração, nos mostra, já está deformada. É produto da cultura
e do discurso do mundo onde vivem. Se a protagonista entende tudo em seu entorno
como parte de um jogo, acreditando ser possível escapar dele quando quiser, os
meninos um pouco mais velhos mimetizam, com violência, a patrulha agressiva contra
as mulheres. Entre outros gestos e palavras de ataque, como chamá-la de terrorista
e pecadora, eles rasgam seu caderno e o transformam em aviõezinhos, atirados contra
a montanha, onde antes, havia estátuas de budas. Já estamos suficientemente habituados
ao realismo crítico e metafórico de alguns filmes iranianos, para entendermos
o uso do batom e do papel como experiências em si, mas também como leituras sobre
essas experiências. Com o cosmético proibido, produz-se linguagem e conhecimento.
Com os cadernos, pode-se produzir armas. Os objetos são ideologizados. Hana
Makhmalbaf tinha oito anos quando ingressou na escola livre de cinema do pai,
Mohsen, e não havia completado 10 primaveras ao ser chamada como assistente em
A Maça, da irmã, Samira, a mais famosa aluna formada pelo método Makhmalbaf
no Irã. A estréia na direção aconteceu com Alegria da Loucura, aos 14 anos,
sem sair debaixo das asas do pai e da irmã. Ele é produtor e ela, diretora, de
Ás Cinco da Tarde, o filme que, em Alegria da Loucura, tem seu método
de realização e as contingências culturais desnudados pela câmera. Voltemos um
pouco a esse primeiro filme de Hana. Nele, a então adolescente cineasta mostra-nos
as estratégias agressivas de Mohsen e Samira para persuadirem as mulheres a se
tornarem atrizes temporariamente. O que está em jogo em Alegria da Loucura,
porém, não é condição da mulher no Afeganistão, ou menos não como questão central.
O mais importante será encontrado na condição da imagem para duas culturas em
contato e em atrito. Alegria da Locura é, portanto,
filme de busca e atritos, sobre relações de poder e estímulo à rebeldia (a questão
de Ás Cinco da Tarde), sobre a procura autoritária por uma imagem potente
para as mulheres afegãs, assim como sobre o dar de ombros dessas mulheres para
suas imagens no cinema. O filme de Hana dá de 10 no de Samira, não porque seja
melhor realizado, mas porque, ao potencializar a imagem das mulheres, não o faz
como propaganda rebelde, mas como exposição das contradições dessa imagem potente.
Em
E Buda Desabou de Vergonha, Hana permanece nesse mesmo campo. Também nos
vemos em um filme de busca e de atritos, também estamos em uma busca por uma imagem
potente para o futuro das mulheres afegãs, também reconhecemos o estímulo à rebeldia
no olhar para a protagonista. Hana empenha-se, como a irmã em Ás Cinco da Tarde,
em propor a resistência feminina, ainda que, em uma sociedade marcada, entre outras
características, pela pouca liberdade das mulheres, essa resistência seja limitada.
Mas a resistência agora é algo quase natural, que não precisa ser construída,
mas que será, como vemos no plano final, esvaziada por não ser viável naquelas
condições. Estamos falando, com isso, que haja cabeça baixa? De forma alguma.
É clara a estratégia de naturalizar e desnaturalizar os gestos da protagonista
para tornar mais absurda a mudança desses gestos por conta de uma organização
social e cultural. Porque o importante para Hana, na verdade, não é se concentrar
no estímulo à reação, como faz seu pai, Mohsen (vide Salve o Cinema), mas
na perda de um espaço de ação. É óbvia a inversão proposta
por Hana como opção a Cavalo de Duas Patas, filme mais recente de Samira,
cujo protagonista é humilhado resignadamente, insiste em ser humilhado e liberta-se
de suas amarras no plano final. Um desfecho de conquista. Até esse desfecho, porém,
o personagem vive na lona – literalmente, já que ele passa parte da narrativa
estatelado no chão. Quando se liberta, portanto, não tem mais energia. Só o faz
porque assim o filme deseja para se afirmar como proposta libertária. Samira mantém-se
dentro da coerência de sua narrativa, sem, como a irmã, procurar um desfecho só
desejado por ela. Talvez seja mais realista. Não se percebe, porém, no caso de
Hana, um pensamento estético, ao menos que ultrapasse, nas operações visuais,
a procura pelo naturalismo cru e poético. Hana parece menos interessada em estilo
e mais na linguagem como veículo de transmissão de uma visão sobre o mundo filmado. Outubro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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