O Crocodilo (Il Caimano),
de Nanni Moretti (Itália, 2006)
por Leonardo Mecchi
A Itália de Nanni Moretti
Se há uma certeza em O Crocodilo é a de
que, diante de um personagem como Berlusconi, a única aproximação
possível é através do burlesco. Daí a mala de dinheiro caída do
céu (“De onde vem o dinheiro?”, é uma pergunta recorrente dirigida
ao Berlusconi ficcional, e que traz desagradáveis paralelos recentes
ao público brasileiro), as bailarinas kitsch do programa
de auditório, o populismo no gramado de futebol. Não à toa, as
cenas documentais selecionadas entre os depoimentos do ex-primeiro-ministro
italiano no Parlamento Europeu remetem ora ao teatro do absurdo,
ora a um verdadeiro circo de horrores.
Mas, para além da sátira a Berlusconi, O Crocodilo
é também um filme desiludido com seu país. “Vocês são um povo
entre o horror e o folclórico”, diz o magnata polonês, “quando
pensamos que estão no fundo do poço, vocês começam a cavar freneticamente,
se enterrando cada vez mais”. Ou, nas palavras da jovem cineasta
de esquerda, “o mundo ri de nós”. Moretti parece ter uma visão
pessimista da condição da Itália, e a desestruturação emocional
e profissional de Bruno servem como uma alegoria para o estado
em que se encontra o país. Diante dessa situação, é impossível
não tomar partido. É dessa forma que o antigo produtor de filmes
B, apolítico por convicção, se vê envolvido na produção de um
ataque frontal ao governo Berlusconi, e o personagem interpretado
pelo próprio Nanni Moretti, que havia recusado o papel-título
do filme por acreditar que “o povo quer ver comédias” (uma genial
piada interna ao filme), ao final acaba por interpretar o primeiro-ministro.
Comparar
O Crocodilo a Fahrenheit 11 de Setembro em função
do ataque frontal a Bush (no caso de Moore) e Berlusconi (no filme
de Moretti) semanas antes das eleições é, no mínimo, negar o próprio
projeto apresentado pelo diretor italiano. O Crocodilo
não é, em última instância, uma obra preponderantemente panfletária,
mas um filme multifacetado, uma análise muito mais ampla e crítica
da sociedade italiana, construído em várias camadas que se sobrepõem
ao longo da projeção: o drama familiar, a comédia à la
italiana e, finalmente, a sátira política, que vai além do filme-dentro-do-filme
e se embrenha por todo o enredo. A ligar todas essas camadas está
a direção precisa de Nanni Moretti e a atuação impecável de Silvio
Orlando (que na relação com os filhos e na criação de mundos fantasiosos
lembra em alguns momentos Roberto Benigni em A Vida é Bela,
porém num tom bem menos afetado). O personagem de Orlando, aliás,
é a chave para se compreender a proposta do diretor italiano,
não apenas por ser ele o protagonista, mas principalmente pelo
tom farsesco que confere ao filme.
Mas, apesar do engajamento, há pouca esperança
em O Crocodilo: ao optar por terminar o filme com Berlusconi
partindo em seu carro – condenado, porém não punido –, deixando
um rastro de fogo e destruição em seu caminho, Moretti fecha o
filme com um triste retrato do país pós-Berlusconi. Assim como
os filhos de Bruno, também a Itália não consegue encontrar a pequena
peça amarela que falta para terminar sua construção.
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