Caminho para o Nada (Road to Nowhere),
de Monte Hellman (EUA, 2010)

por Juliano Gomes

In a lonely place

O cinema é uma máquina de solidão. Um isolamento que precisa ser cultivado e a partir do qual pode nascer uma paixão. Paixão pela imagem, a partir desse espaço novo, essa distância entre as coisas. A estrada que Monte Hellman abre aqui magistralmente tem esse traçado de mão dupla: uma grande orquestração de solidões e paixões, espécie de jogo vital cuja moeda é o encantamento. Nada sobra desse jogo. Seu desembocar é exatamente o lugar onde nos perdemos. Mas perder-se aqui significa, mais do que se desorientar, perder a si mesmo como unidade, entidade segura em suas próprias fronteiras. Trata-se de se esquecer e poder se transformar em outra coisa. Não é outro o processo do espectador de cinema: amar e transformar-se, para ao fim permanecer o mesmo, modificado. Esse poderia ser o enredo desta tragicomédia de Hellman.

Cada cena de Caminho para o Nada (e é preciso notar que a tradução brasileira do título lhe adiciona sentido sem trair o original, dando lhe a possibilidade da primeira pessoa - isto é, sim, um grande e raro feito) é esculpida como uma lenta transformação ou metamorfose para esse destino incerto onde tudo se encontra (o nada), onde Hellman exibe seu senso visual extraordinário e discreto, ao mesmo tempo racional, lúdico e farsesco. Há um desnivelamento consciente das atuações em relação às densas atmosferas construídas que a estrutura do roteiro não só justifica, mas adensa em profundidade no seu jogo permanente de camadas. Ao longo da projeção, esses níveis não cessam de se fundir, de se atravessar, em direção a uma limpidez absoluta. Dois exemplos magníficos desse jogo de aproximações a partir do qual o filme se estrutura são os dois planos-chave do filme em relação à figura de Laurel Graham/Velma Duran (Shannyn Sossamon). A aproximação, através da imersão, do mergulho, gera um outro sentido, reconfigura o todo, o estado, a camada onde estávamos. Cada movimento em direção ao outro, cada avizinhamento, muda as bordas da imagem, e assim é criado um novo limite e uma nova coisa. E esse regime de mudança universal é onde todas essas imagens se unem. O registro não cessa de diferir para continuar o mesmo.

Hellman estrutura suas cenas com grande cuidado em suas relações internas; afia suas dinâmicas, para que, ao final, elas sejam sempre outra coisa. Mas chega a um lugar que aponta em direção a um indiferenciado, e não uma alegoria ou um sentido pré-existente. Um lugar sólido, palpável, mas não positivo ou afirmativo. "Nowhere". O filme se baseia numa idéia de abertura permanente, seguindo um caminho bastante uniforme de apresentar elemento por elemento, criar relações entre essas partes, e dali criar mais uma, fechando ou abrindo o quadro, revelando ou ocultando espaços.

Estamos diante de uma obra de economia absoluta na sua relação com o espaço. Cada locação é retomada de uma maneira nova que adiciona e reitera a aparição anterior, como na primeira e última cena. Esses reposicionamentos (também nossos) não são nunca surpresas ou truques, como na emblemática cena onde Haven enquadra a equipe que não parecia fazer parte da situação do tiroteio. A cada novo movimento concluímos: estava tudo ali, sempre. Se o filme nos pede o tempo todo uma aproximação sensível na sua armação de peças, seu mecanismo “racional”, de causas e efeitos, é absolutamente impecável porque óbvio. O que é rara é a capacidade de impedir que o auto-comentário tome a frente da cena, do drama, que não para de se desenrolar, e que se justifica nesse nível das motivações e desenlaces. O distanciamento paródico permanece como risco eminente, mas nunca rouba cena. A técnica de Hellman é nos cegar justamente pela insistência na clareza.

A câmera é então a arma, o artefato que dispara esse jogo de aparições, mutações e ausências ambulantes que não pára de fascinar aos personagens e também a nós. Mitchell Haven é figura que condensa esse transe, que resulta da paixão (que também significa martírio, sacrifício, isto é: mudança) pela figura humana materializada por Sossamon. Isso só reforça essa dimensão ontológica de Caminho. Ver é um jeito de atravessar as coisas, de fazê-las perder os contornos; é, enfim, uma relação de transformação das partes envolvidas. É isso que essa arma faz: cortar as coisas, dar-lhe outros limites e contornos, onde as partes deixadas de lado não importam mais, não fazem mais parte do jogo. Caminho para o Nada flerta com a abstração a partir de sua depuração constante da cena, mas nunca a abraça por completo. As ligações se dão e a solidão não se rompe, só aumenta, na verdade, num trajeto novamente beckettiano na obra de Hellman (como em Corrida sem Fim, por exemplo). Trata-se de uma série de desdobramentos de um mesmo estado, a se expandir e a se contrair. Um exercício conceitual, uma série de variações sobre uma mesma idéia, como em O Intruso de Claire Denis, só que em fusão com um filme B.

A questão que se coloca ao fim é o medo; medo de se entregar, de se deixar. Acreditar é estar vulnerável, é dar crédito ao incerto, a esse “nada”. No fundo, todas as relações ali são de crença (do diretor com a atriz, com o roteirista, com a blogueira, e assim por diante). O que distingue os personagens é essa capacidade. O drama é da crença em face do desconhecido, é o da carta branca para a morte, é aceitar ser conduzido pelo abismo e aproveitar a viagem. É essa a graça desse caminho, inevitavelmente solitário.

Março de 2012

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