in loco Cannes:
A casa dos autores por Eduardo Valente
Se a comunidade cinematográfica francesa é completamente
ensandecida pela noção de autor, em Cannes a doença ganha ares de epidemia. Os
diretores parecem ser mais importantes que os próprios filmes – e pela relação
da maioria dos jornalistas e fãs com os cineastas e com as sessões de cinema,
fica a certeza disso ser mais do que mera impressão. Para
se ter uma idéia, neste ano de seu sexagésimo aniversário, o catálogo do Festival
veio com uma capa absolutamente sóbria onde o que mais sobressai são justamente
os nomes dos diretores da seleção oficial em alto relevo. O
fato é que atualmente a seleção oficial de Cannes pode ser dividida em três tipos
de cineastas selecionados: os grandes autores do cinema atual, os que pleiteiam
ser aceitos em breve nesse clube (de preferência com o filme deste ano) e os que
o Festival sonha que sejam algum dia grandes autores e que ele possa dizer “nós
vimos eles primeiro” – neste sentido, a criação em 1998 de uma seleção de curtas
de escolas de cinema nada mais é do que o passo mais radical neste sentido, algo
como os olheiros dos grandes times europeus vindo ao Brasil para caçar futuros
craques nos times mirins e juvenis. * * * Na
seara dos grandes autores, a competição tem orgulho especial de mostrar os novos
trabalhos de cinco das suas maiores “descobertas” nos anos 80-90: Wong Kar Wai,
Quentin Tarantino, Emir Kusturica, Alexander Sokurov e os irmãos Coen (sendo que
os novos filmes de Soderbergh e Michael Moore também estão em Cannes, fora de
competição – tendo ainda Gus Van Sant, que se pode dizer ter sido “redescoberto”
por Cannes com Elefante). De fato, deu-se um jeito para que, na festa dos
60 anos, não ficasse faltando quase nenhum nome-chave para Cannes hoje: se arranjou
o festivo amontoado de curtas Chacun son Cinéma para incorporar vários
dos que não tinham filmes prontos neste ano à festa (Wenders, Cronenberg, Kiarostami,
os Dardenne, Lars Von Trier, Moretti, Elia Suleiman, Manoel de Oliveira, Walter
Salles, Aki Kaurismaki, Angelopoulos, Zhang Yimou, Chen Kaige, Jane Campion, Loach)
– só mesmo Michael Haneke parece ausente, entre as figurinhas carimbadas mais
recentes da coleção cannoise (um outro a citar seria David Lynch, mas lá
estava ele todo pimpão mostrando um curtinha especial feito para a abertura do
Festival). Para além deste ar de festa de aniversário com
decoração baseada no tema “autorismo”, Cannes vem tentando se equilibrar entre
o desejo de se manter próximo de seus “filhos favoritos” e o risco de às vezes
exalar um odor um tanto preocupante de cemitério de cineastas – “aonde eles vêm
para morrer”. Até que ponto a marca do autor se torna maior que ele mesmo, e seus
filmes se tornam pastiches de uma época melhor? Em anos recentes, Cannes tanto
selecionou alguns filmes que se aproximaram muito disso (os mais recentes Wenders,
Egoyan, Coen e Kusturica não nos deixam mentir), como recusou alguns outros que
acabaram se revelando tiros no pé: desde os dois mais novos Manoel de Oliveira,
festejados em Veneza, até dois dos ganhadores do Leão de Ouro neste festival –
Vera Drake, de Mike Leigh e Brokeback Mountain, de Ang Lee (talvez
não por acaso dois outros não convidados da festa de 60 anos, assim como Patrice
Chereau, que depois de levar um pito por dar Palma de Ouro e Melhor Diretor para
um mesmo filme como presidente do júri em 2003, teve seu filme mais recente recusado
– Gabrielle). Por isso tudo talvez dê um certo medo
quando vemos as primeiras imagens (fotos, sinopses) dos novos filmes dos “grandes
autores” para este ano – e absolutamente todos passam uma impressão de “mais do
mesmo”, com poucos novos ingredientes (os EUA para Wong Kar Wai, um tema contemporâneo
– a guerra na Chechênia – para Sokurov). Mas dá ainda mais medo (e curiosidade
mórbida) filmes que foram para “sessões especiais fora de concurso” – onde geralmente
vão os filmes muito hollywoodianos ou que, er, “deram errado” (é o caso neste
ano dos novos de Michael Moore, Michael Winterbottom, Volker Schlöndorff, Claude
Lelouch e Ermanno Olmi; sem falar em Denys Arcand, que foi parar no filme de encerramento,
o mais morto dos espaços de Cannes). Por outro lado, o que
ainda anima muito é ver o que aprontam os “filhos diletos” mais malditos, que
foram parar nas sessões de meia-noite (o que geralmente significa filmes que assustam
um pouco os curadores, e nos quais se tenta dar uma escondida), como é o caso
neste ano dos novos de Olivier Assayas, Abel Ferrara ou a esquisitíssima proposta
de filme “telefone sem fio” co-dirigido por Johnnie To, Ringo Lam e Tsui Hark.
O melhor autor talvez ainda seja este: o que continua desafiando o entendimento
da obra deles, não permitindo um enquadramento tão preciso de seu nome em nenhum
“panteão” confortável. * * * Cannes
hoje está tão mais prestigiado do que os outros grandes festivais que, uma vez
que um cineasta se torna um “grande autor”, está bem claro para todos que será
o lugar preferido dos cineastas para lançar seu filme. Por isso, a maior briga
que se trava hoje é justamente esta: quem descobrirá o próximo grande nome – daí
toda a fama recentemente adquirida por Olivier Père, curador da Quinzena dos Realizadores:
ele teria dado várias rasteiras na seleção oficial, escolhendo filmes de autores
desconhecidos que se provaram apostas muito mais certeiras que as do “celeiro
oficial” (a Un Certain Regard). O que, de certa forma, a seleção oficial comprova
este ano, trazendo para seus braços o novo filme de um “queridinho” da Quinzena
em 2006: Christophe Honoré, que foi considerado por muitos o realizador do melhor
filme francês no Festival no ano passado (Dans Paris, totalmente inédito
no Brasil até hoje), sem ter sido selecionado para a competição. Além
dele, há outros exemplos na competição de 2007, como os ganhadores de recentes
prêmios principais em Veneza (o russo Andrei Zviaguintsev, de O Retorno;
o austríaco Ulrich Seidl, de Dias de Cão) e Berlim (o turco-alemão Fatih
Akin, de Contra a Parede), e mais alguns cineastas que a competição “cooptou”
depois de passagens recentes de destaque em outras mostras de Cannes (o coreano
Lee Chang-dong, o mexicano Carlos Reygadas, o romeno Cristian Mungiu). Fecham
a seleção da competição alguns nomes em que Cannes tem apostado mas que ainda
não se tornaram completamente “unânimes” (como Naomi Kawase, James Gray, Catherine
Breillat) e alguns curiosos mea culpa, internacionais (como o húngaro Béla
Tarr ou o fenômeno cult coreano Kim Ki-duk, que ainda não tinham competido
aqui) ou locais (o franco-israelense Raphael Nadjari), além das curiosas apostas
quase tardias em Julian Schnabel e David Fincher, ambos com filmes que parecem
ter tudo para serem dos mais populares da seleção. Dentro
deste movimento de “cooptação” na competição, a Un Certain Regard acaba tendo
pouquíssimos nomes minimamente conhecidos, uma vez que Thierry Fremeux (curador
da seleção oficial) está convencido de que agora deve usar esta seção para apostas
completas – mas nisso ele tem se revelado um apostador bem mais fraco que Olivier
Père. Por isso, talvez, os filmes que mais chamam a atenção ali ainda são os de
diretores como Hou Hsiao-hsien, Roy Andersson e Barbet Schroeder (este, um documentário
sobre uma figura controversa na relação França-Argélia), com passagens pela competição,
que nos deixam curiosos quanto a porquê estão na seleção “menor”. Fora deles,
os únicos com alguma “estrada” são a belíssima atriz Valeria Bruni-Tedeschi (com
seu segundo filme como diretora), o sumido Harmony Korine e os chineses Yang Li
e Yinan Diao (discípulo de Jia Zhang-ke) – além de Jaime Rosales, espanhol que
fez As Horas do Dia, filme que eu francamente detestei quando visto na
Mostra de SP, mas que tem seus fãs na escola sub-Haneke. Curiosamente,
enquanto os cineastas da Un Certain Regard na imensa maioria não empolgam, a Quinzena
já dá água na boca de novo: lá estarão os novos filmes de alguns dos mais interessantes
diretores que tivemos a chance de conhecer recentemente (por sorte, a maioria
deles foi exibido nos grandes festivais brasileiros ao menos uma vez): é o caso
de Serge Bozon (de Mods, exibido no Festival do Rio), Nicolas Klotz (de
A Ferida – Festival do Rio e Mostra de SP), Pen-ek Ratanaruang (Last
Life in the Universe – Festival do Rio), Danielle Arbid (de Nos Campos
de Batalha – Mostra de SP), Ramin Bahrani (de Man Push Cart, Festival
do Rio), além de um filme em episódios que une simplesmente Pedro Costa, Wang
Bing, Chantal Akerman e Apichatpong Weerasethakul. O único cineasta mais “consagrado”
na Quinzena é o americano Gregg Araki, mas mesmo ele é um que se renovou totalmente
ao nosso olhar com seu filme mais recente (Mysterious Skin). Fora estes,
vale destacar o francês Jacques Nolot, nunca visto no Brasil, mas que já teve
dois elogiados filmes lançados na França. * * * Finalmente,
temos as apostas do zero completo, que une estreantes a cineastas de primeiros
filmes que passaram “abaixo do radar”. Na competição a única estréia é de um gênero
raro na seleção desta (a animação), mas que justifica seu status pop-sério pela
curiosa mistura entre sua origem (uma história em quadrinhos) e tema (a vida da
mulher no Irã): Persepolis. Entre a Quinzena (de onde, não custa lembrar,
saiu o ganhador da Câmera D ‘Or do ano passado) e a Un Certain Regard, temos alguns
estreantes, mas os antecedentes mais fortes vêm mesmo dos escolhidos de Père,
de novo: é o caso da ex-crítica da Cahiers e atriz Mia Hansen-Love, do hiper-incensado
fotógrafo Anton Corbjin (que estréia com uma bio do cantor do Joy Division, Ian
Curtis), da grande atriz Sandrine Bonnaire (com um filme baseado em material
caseiro colhido ao longo de anos, sobre sua irmã autista) e do mexicano Pedro
Aguilera, um caso de terceira geração precoce (pois era assistente de Carlos Reygadas
e de Amat Escalante – o assistente do primeiro que estreou na seleção oficial
há dois anos) – para nós brasileiros, há curiosidade ainda pela estréia na ficção
de Sandra Kogut. Agora, quem realmente radicalizou foi a
Semana da Crítica: com exceção do filme brasileiro de Lina Chamie (que, ainda
assim, é uma desconhecida para o mundo – e, mesmo no Brasil, pouca gente viu Tônica
Dominante), todos os outros 16 filmes selecionados são de diretores estreantes.
Se de algum lugar virá uma enorme surpresa este ano, tudo indica que seria de
lá – mas, desde Amores Brutos e da subida de conceito da Quinzena, os filmes
da Semana têm sido recebidos, na maioria, com um ensurdecedor silêncio na Croisette.
Nesse sentido, esta aposta no absolutamente desconhecido pode se revelar acertada
– mas também podemos ter mais um ano de total falta de retorno para os filmes,
que são exibidos, sintomaticamente, no algo distante Espace Miramar.
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