in loco
Cannes 2007: Balanço geral
por Eduardo Valente

Depois destes 10 dias, passar por Cannes traz sempre a sensação de se conseguir tirar uma foto instantânea do estado do cinema mundial – principalmente o de autor, mas também os outros através do mercado, etc. É um lugar que centraliza as atenções de maneira única, e onde maneiras de fazer e pensar cinema muito diferentes acabam se encontrando. Ë interessante de poder tirar esta foto e tentar entender aonde estamos/para onde vamos.

Neste nosso segundo ano por aqui, foi muito bom podermos ter contado com uma segunda voz, que garantiu uma variedade mínima de olhar/argumentação. Ainda que Leo Sette não esteja acostumado com o ritmo de uma cobertura diária de festival (e especialmente não a de Cannes, que é tão radicalmente pesada), foi uma adição valiosíssima, mesmo quando não necessariamente estava escrevendo – só pela companhia, troca de idéias, discussões, besteiras mesmo. Como aliás também foram essenciais os cinéticos honorários Pedro Butcher e Kleber Mendonça Filho (este não escreveu aqui por cobrir no Cinemascópio e no Jornal do Comércio, do Recife), e os chapas Carlos Eduardo, de Londrina, e João Cândido, do Filme B. Nesta babel insana é sempre legal ter uma pequena comunidade para dividir as idéias/dicas/causos da “experiência canniana”.

Na nossa cobertura, como anunciei no começo, seguimos principalmente os nossos instintos e interesses, tentando dar conta também dos maiores temas para o leitor – com destaque óbvio para a Competição. Com ajuda de Butcher, só não comentamos dois filmes dos 22 competidores – Persepolis, que comento rapidinho abaixo pois só vi hoje, e Promise me This, de Kusturica, que realmente nenhum de nós viu na sua dolorosa exibição às 8h30 da manhã do último dia. Entre as outras seções, claro, certamente comemos moscas, por ser impossível estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Dentre minha anotações iniciais pré-Festival, fiquei especialmente triste de na termos visto/discutido aqui o filme de Wang Bing (cujas 3 horas em exibição única batiam com dois outros filmes importantes), La France de Serge Bozon, o chinês Ye Che e dois ou três filmes da Semana da Crítica (em especial o ganhador da Camera D’Or). Fora isso, pessoalmente fiquei com pena de não ter visto alguns filmes elogiados por meus colegas, como Control e Savage Grace, e outros que foram menos bem recebidos, mas também elogiados (e que não chegaram a ser comentados aqui na correria), como La Influencia (Quinzena) e Munyurangabo (Un Certain Regard).

Mas, é como eu dizia no começo da cobertura: Cannes é definida tanto pelos filmes que você escolhe ver como os que escolhe perder. Resta torcer para ter outras chances de ver alguns dos melhores dentre os perdidos, e que para o leitor o tanto que conseguimos fazer tenha passado uma idéia razoável do que foi o Festival. Termino colando aqui um link para um resumo mais direto da passada pelo Festival, através de um indefectível quadrinho de cotações pessoais.

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Quanto aos prêmios, para uma premiação que prometia surpresas, o resultado final acabou bastante perto de uma possível normalidade. Ao fim e ao cabo, a Palma de Ouro para o filme romeno pareceu uma decisão extremamente “correta”: o filme, emocionante mas sem nenhuma intenção de ser “definitivo” nem nada, foi crescendo na medida em que os dias passaram, por sua capacidade de ter as qualidades reconhecidas quase unanimemente – os outros filmes ou decepcionaram, ou agradaram medianamente ou dividiram demais as impressões. Fora isso, como eu tinha dito ontem, é uma decisão “historicamente correta” uma vez que pega uma cinematografia emergente, que dominou as atenções nas últimas duas edições do Festival (melhor filme no Un Certain Regard em 2005, Camera D’Or em 2006) e a torna devidamente reconhecida de maneira maiúscula (ainda mais com o prêmio já anunciado ontem para California Dreamin’, na Un Certain Regard). Nada mal para um país que produz em torno de 10 filmes por ano.

Todos os outros prêmios foram bem dosados, com a feliz colocação de Naomi Kawase como o “segundo lugar”, a limitação de Fatih Akin ao prêmio de roteiro (pelo menos este prêmio não reconhece exatamente a parte mais diretamente cinematográfica do filme) e a curiosa escolha de Schnabel como diretor – quando o seu filme era considerado favorito ao prêmio de ator (e aliás a única verdadeira surpresa foi o prêmio de melhor ator para o protagonista de Izganie). Persepolis, que dividiu o prêmio do Júri com Carlos Reygadas, tinha sido incluído por mim entre as surpresas, mas de fato nem eu nem Leo tínhamos visto o filme – que acabei vendo no domingo de tarde, na reprise que é feita de toda a Competição ao longo do dia. Depois de vê-lo certamente o incluiria na mesma categoria que o filme de Fatih Akin, em todos os sentidos (inclusive nas possibilidades de premiação): trata-se de um filme absolutamente consensual, que eu definiria como uma “animação para adultos infantis” – em especial funcional para os adultos infantis interessados pelas “grandes questões”, e ainda mais para os do Primeiro Mundo, Hemisfério Ocidental. Um “vida no Irã dos últimos 30 anos for dummies”, algo assim.

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Comentei ontem a Competição em detalhes (sendo que ela foi bastante dissecada ao longo da semana por nós), mas vale fazer um breve balanço das outras seções do Festival – um balanço que passa muito mais pelas repercussões percebidas do que por avaliação dos filmes, já que na média vemos em torno de metade dos filmes delas somente.

Na “batalha” pelo segundo lugar em atenção que as mostras paralelas travam, podemos dizer que este ano a Un Certain Regard deu alguns passos positivos enquanto a Quinzena não teve o destaque do ano anterior. Ajudou à escolha de Thierry Fremeux ter contado com os novos (belos) filmes de autores com passagem considerável pela Competição (Hou Hsiao-hsien e Roy Andersson), ter contado com um bom retorno de Harmony Korine e com pelo menos três filmes que apresentaram talentos considerados promissores (o coreano-americano Lee Isaac Chung, a Argentina Ana Katz e o israelense Eran Kolirin), sendo que o resto da seção também foi de maneira geral apreciada – alguns menos, outros mais, claro.

Já a Quinzena, de Olivier Père, não conseguiu repetir o ano anterior, que teve filmes como The Host, A Leste de Bucareste e Dans Paris, que centralizaram a discussão na Croisette, além de filmes de nomes como William Friedkin (e seu incrível, e ainda inédito no Brasil, Bug) ou Jean-Claude Brisseau. Não que ela tenha sido ruim, mas simplesmente não roubou a cena para si, nem causou lamentações profundas sobre filmes que deveriam estar na Competição – o máximo de interesse que causou foi mesmo com o seu filme de abertura, a biografia de Ian Curtis, que foi um sucesso de crítica e promete achar um público atento. Fora isso, belos filmes de Nicolas Klotz e Tom Kalin, e uma série de pequenos filmes bem recebidos, mas satisfeitos com o papel de coadjuvante na Croisette. Talvez seja questão de educação, para não roubar a festa dos 60 anos da parte oficial do Festival – motivo que também explica uma quantidade bem acima da média de filmes em sessões especiais fora de competição na escolha da lista oficial (foram 14, de nomes como Wang Bing, Ferrara, Assayas, Nicolas Philibert, Volker Schlondorff, Jean-Pierre Limosin ou Ermanno Olmi – filmes que, numa lista menos “celebrativa”, poderiam ter ido parar na Quinzena).

Finalmente, a Semana da Crítica, em sua aposta quase completa nos filmes de estreantes, conseguiu a premiação mais adequada a este perfil, com o israelense Meduzot levando a Camera D’Or – e, aliás, devo dizer que eu realmente tentei me programar para ver este que parecia um belo filme, mas a maior distância do cinema que hospeda a Semana dificulta um acompanhamento mais próximo. Aliás, entre o belo Tehilim na Competição (filme franco-israelense, mas todo filmado e passado em Israel, falado em hebreu), o prêmio da Fipresci e menção honrosa do júri Un Certain Regard para The Band’s Visit (que foi ainda um dos filmes mais vendidos no mercado internacional) e este prêmio para Meduzot, pode-se dizer que Israel saiu de Cannes como “a próxima Romênia”. Além do filme israelense, outras das estréias da Semana foram elogiadas (como os argentinos XXY e El Asaltante, o mexicano Malos Hábitos e os filmes de horror/autor El Orfanato e A l’interieur), o que se não chegou a virar os pescoços totalmente rumo ao Espaço Miramar, pelo menos garantiu uma edição bem correta para a mostra, que andava passando em branco.

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