in loco
Dia 3: Vitalidade do cinema francês
por Eduardo Valente

Tanto na competição quanto na Quinzena dos Realizadores (onde fui pela primeira vez nesta sexta), o dia foi todo dos franceses – embora tenha começado, justamente, brasileiro.

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Les chansons d’amour, de Christophe Honoré (França, 2007) – Competição

Antes de qualquer consideração, um aviso: se você realmente quer “aproveitar” na sua totalidade Les chansons d’amour, não leia nada, absolutamente nada sobre o filme. Se você continua lendo, bom, azar o seu, sorte a minha. Isso porque Les chansons d’amour é um destes filmes que provam como é bom (e raro) ver os filmes na primeira vez em que eles são exibidos: provavelmente já sem boa parte das suas “surpresas”, a fruição do filme será completamente diferente (e aqui não se trata apenas de “viradinhas de roteiro”, mas sim desenvolvimentos dramáticos essenciais para o andamento do filme). Uma das surpresas, é bom que se diga, não é o fato de que se trata de um musical, de um filme cantado. Isso já é indicado não só pelo título do filme, como fica claro logo numa das primeiras cenas.

No entanto, não é de nenhuma de suas surpresas (que prometo não mencionar) ou do fato de ser cantado que vem a gande força de Les chansons d’amour, de forma alguma. Filme realizado com rapidez e urgência incríveis (a filmagem foi há menos de quatro meses), a potência do cinema de Christophe Honoré vem sim de um transbordamento de sentimentos, que torna justamente quase natural que este transbordamento se externe através de canções – e, diga-se, de belas canções, que inclusive são de onde nasceu o filme, já que Honoré escreveu o roteiro a partir de músicas já existentes de Alex Beaupain. As músicas são cantadas pelos próprios atores com naturalidade, e incrível graça – as atuações são todas de uma mistura de força e candura tocante, começando por um Louis Garrel absolutamente cativante, uma Ludivine Sagnier surpreendentemente frágil, uma Clotilde Hesme delicada e uma Chiara Mastroianni em momento de especial graça num personagem quase “trapalhona”. A escolha do formato musical encontra, assim, uma forma deliciosamente naturalizada no seu artifício, que tem vários pontos de contato com o Godard de Uma Mulher é Uma Mulher, sem que seja sufocado por nenhuma “cinefilia” – nunca parece algo “show-off”, mas uma decorrência natural do que acontece com os personagens.

Estes lidam com situações-limite o tempo todo, mas estas situações não são encenadas com um olhar que as “hiper-dramatize”, pelo contrário: há um enfrentamento com a morte, situações emocionais dificílimas mas tudo isso é vivido, se não necessariamente com “leveza” (nunca), acima de tudo com naturalidade e permeado por uma busca quase obsessiva, porém sempre generosa, pelo ser feliz. Nessa busca pela felicidade (e é isso que mais marca no filme), os personagens não param de se bater, e nesse embate vale tudo – inclusive errar o tempo todo. E é por isso que Les chansons d’amour é um filme quase insuportavelmente belo.

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La question humaine, de Nicolas Klotz (França, 2007) – Quinzena dos Realizadores

Uma certeza sobre o novo filme do realizador de A Ferida (La Blessure), que foi um dos melhores exibidos nos festivais brasileiros em 2004: é preciso voltar a ele o mais breve possível, porque é um trabalho de uma sutileza e complexidade incríveis, destes que não se pode sequer pensar em dar conta totalmente no meio dessa correria insana que é o Festival de Cannes (no caso específico dele, visto depois de uns 30 minutos numa fila no sol). Mas, muitas vezes é para isso mesmo que serve o Festival: para separar os joios dos trigos no nascedouro, para ver o que vai nos acompanhar por um bom tempo em termos de cinema (e por isso mesmo precisa ser revista logo que possível) do que é absolutamente dispensável.

Klotz confirma aqui o que já estava claro no filme anterior: seu cinema é um de tintas políticas inegáveis, mas ao contrário de um Costa-Gavras ou de um Ken Loach, Klotz compreende que ao cinema não bastam os grandes temas, pede-se que a política esteja também na forma de um filme para que ele seja realmente profundo. Em La question humaine, Klotz responde à velha pergunta que assombra muitos cineastas que filmam os “excluídos” (como era o caso dele no filme anterior e em Paria, filme de 2000): como fazer para filmar o outro lado, o lado do poder? Pois é disso que trata o filme de Klotz: de uma investigação interna dentro de uma grande multinacional, fruto de uma disputa de poder entre dirigentes.

A maneira com que Klotz se aproxima desse universo é de uma inteligência absoluta, porque ao mesmo tempo em que recusa os clichês mais óbvios sobre o ambiente corporativo (alô, O Corte), não entra no jogo O Que é Isso Companheiro? de achar que ser complexo é afirmar o oposto da realidade das relações de poder (os torturadores também sofrem, os revolucionários eram babacas, etc). Os dois poderosos de Klotz são figuras complexas justamente no seu exercício do poder indiscriminado, mas acima de tudo a força do cinema de Klotz está em inserir estes humanos, sem tirar deles a individualidade, num processo histórico muito maior. No meio disso, está o protagonista, personagem interpretado de maneira (mais uma vez) impressionante por Mathieu Amalric – um psicólogo corporativo, que aos poucos vai descobrindo (e essa descoberta não se dá por frases ou discursos, mas principalmente pela sensação e a alucinação que vão tomando conta dele em seu trajeto) a profundidade do seu mergulho num universo tão sedutor quanto mórbido, doentio.

Bom, como eu dizia, falar mais do filme (e seria necessário falar muito do trabalho de câmera e dos jogos de claro e escuro, falar da trilha sonora brilhante, etc) seria necessário mas também impossível neste primeiro momento. O que importa é aguçar o sentido para o leitor saber: não se deve deixar La question humaine passar batido.

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A Via Láctea, de Lina Chamie (Brasil, 2007) – Semana da Crítica

Como com todo filme brasileiro, voltaremos depois a Via Láctea com bastante mais calma do que a correria de um Festival nos permite, mas vale dizer aqui que há um problema central no novo filme de Lina Chamie (sobre o qual Cinética conversou com a diretora quando ainda estava em processo de realização): toda a estrutura da narrativa se baseia num momento de quebra numa história de amor – e, no entanto, essa história de amor nunca chega a se concretizar de fato na tela, aos nossos olhos. A partir disso, o jogo que o filme tenta criar pelas divagações de um homem, no momento em que procura ir atrás da sua mulher com quem acaba de brigar, onde geografia da cidade, citações literárias (ele é um professor de literatura e escritor), andamentos musicais e tempos narrativos se misturam e alternam, fica enfraquecido por um motivo anterior. O jogo é urdido, mas não chegamos a acreditar nos seus motivos. Nem mesmo a presença luminosamente quieta de Alice Braga, cujo olhar nos encanta sempre, chega a ser suficiente para que embarquemos de fato na relação da sua personagem com o de Marco Ricca. É a dificuldade de um cinema que trabalha de perto com a forma, mas baseando-se num conteúdo que precise ser criado pelos personagens: se estes últimos não explodem na tela, a forma pouco pode fazer para complementá-los.

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