in loco
Dia 2: Brincadeiras, de bom e mau gosto
por Eduardo Valente

Foi dia de brincadeiras em Cannes – mas de brincadeiras em sentidos muito diferentes umas das outras.

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Le voyage du ballon rouge, de Hou Hsiao-hsien (França/Taiwan, 2007) – Un Certain Regard

Dos últimos três filmes feitos pelo taiwanês Hou Hsiao-hsien (um dos grandes gênios desconhecidos do cinema – desconhecido no Brasil, é bom que se explique), este é o segundo a partir de uma encomenda. Depois de fazer no Japão Café Lumière, na comemoração dos 100 anos de Ozu, Hou agora filma na França, a convite do Museu D’Orsay. Curiosa coincidência: Wong Kar Wai abre a competição com seu filme americano, Hou Hsiao-hsien abre o Un Certain Regard com seu filme francês.

Nesse sentido, é importante dizer que o filme de Hou é assumido nos próprios créditos como a adaptação de um filme francês (O Balão Vermelho, de Albert Lamorisse), mas, no entanto, o filme de Wong parece muito mais travado pelo contato com uma matriz cinematográfica. O que até é compreensível em se tratando de um proto-road movie americano, uma imagem que certamente ocupa o olho cinéfilo de uma quantidade enorme de espectadores/cineastas – enquanto Hou só foi ver o filme de Lamorisse já em meio à sua pesquisa sobre a França. Se dizíamos ontem que o “filme de férias”  de Wong pareceu uma derivação fraca de sua própria obra, o “filme de encomenda” de Hou é o o retrato exato da conjunção perfeitamente bem realizada entre ambiente desconhecido e olhar do cineasta. De fato, o filme de Wong é que soa a encomenda enquanto o de Hou a férias – pelo menos se consideramos férias como um momento em que podemos nos divertir fazendo aquilo que mais gostamos.

Diversão é aqui uma palavra importante: o filme de Hou é uma delícia de ser visto, um daqueles filmes cuja sensação é que ele podia durar as duas horas que dura ou uns 17 dias, e o prazer seria o mesmo na sala. Há uma alegria infantil em se observar a vida passando pelos planos de Hou – e talvez essa seja a melhor definição para o seu filme: um filme infantil. Só que aqui a palavra infantil precisa ter um sentido tão vasto quanto a que melhor definiria um “cinema político” adequadamente. Hou brinca com nosso conceito mesmo de cinema narrativo ao longo de suas histórias. Isso acontece principalmente pela capacidade do cineasta inundar de vida cada um de seus planos (vários deles, muito longos), onde o simples movimento dos personagens pelo quadro se torna uma aventura em si mesmo, algo do fascínio infantil com um novo mundo (altamente conhecido, mas nunca visto desta forma) que se desvenda a nossos olhos.

Para um filme praticamente sem enredo, é impressionante o quanto nos apegamos aos personagens e aos seus dilemas/dificuldades/ambições. Para isso, ele é imensamente ajudado por uma Juliette Binoche inspiradíssima, que claramente aproveita cada segundo do método bastante livre de trabalho de Hou – até porque parece entender o elogio que o filme faz tanto das possibilidades da linguagem do cinema quanto da França como um ideal de país voltado para a cultura. Todos os personagens em cena são ligados ao trabalho com artes: teatro de marionetes, aulas de piano, escritores, estudantes de cinema. Não por acaso, o filme termina com uma visita guiada a um museu, onde Hou parece mostrar o seu ideal de uma educação do olhar: uma que mistura acesso ao conhecimento com a liberdade de interpretação e imaginação. É sintomático enfim que Wong Kar Wai precise deixar os EUA de lado para homenagear o “cinema americano” do seu imaginário, enquanto Hou Hsiao-hsien, sem qualquer grande alarde, escreve uma carta de amor à França e a Paris – através de um clássico do cinema francês.

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Triangle, de Tsui Hark, Ringo Lam e Johnnie To (Hong Kong, 2007) – Fora de Competição

Se o filme de Hou traz da idéia de brincadeira o melhor dos sentidos, o dos três cineastas de Hong Kong é baseado de fato em um conceito que nos remete ele mesmo a uma conhecida brincadeira: nele, cada um (na ordem em que aparecem os nomes acima) escreveu e dirigiu meia hora de um mesmo filme, sendo que o segundo (Lam) tinha que escrever e dirigir a partir do que já tinha feito Tsui Hark, e To tinha que fechar a história. Tudo isso foi montado então no formato de um grande filme – ou seja, não se trata de um filme de episódios, mas sim uma mesma história dirigida por três diretores diferentes em momentos distintos de produção.

O resultado? Bem, basta dizer que, num determinado momento da coletiva do filme, To admitiu: trata-se de um exercício interessante, mas não é a melhor maneira de se fazer cinema. E realmente não é, porque o que incomoda no filme é menos um excesso de estilos distintos (não chega a ser algo que se note acima da narrativa), mas acima de tudo um filme extremamente indeciso sobre o que quer de fato contar/mostrar. Termina sendo um filme com algum charme, muito humor negro (como é comum no cinema de ação de Hong Kong), mas sem alma, que se alonga demais. A melhor parte, sem dúvida, é a de Johnnie To, que filma a grande seqüência do filme, num milharal já no final. Ali a mistura de violência, humor e drama consegue seus melhores resultados. De resto, o filme fica mais como uma gostosa brincadeira (que, certamente, foi feita pensando em lucros bem divertidos) do que como um trabalho realmente forte na carreira de qualquer um dos três.

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Naissance des Pieuvres, de Céline Schiamma (França, 2007) – Un Certain Regard

Brincadeira mesmo, porém, foi o encerramento do dia: primeiro com o russo Izganie na Competição, do qual Leo Sette trata com mais detalhes, mas que só amplia a certeza de que o russo Zviaguintsev se considera um cineasta muito mais importante do que jamais será. Ele até filma uns bons 20 minutos de cinema interessante no começo, mas depois se entrega a um tal ataque de auto-importância (onde a trilha sonora em especial fica nos dizendo o tempo todo que algo muito importante acontece na tela), seguido de uma autêntica perda de noção completa (o flashback auto-explicativo já no final), que o gosto no final é muito mais amargo do que no já mais que superestimado O Retorno. Na sua relação com Tarkovski, Zviaguintsev nos mostra mais uma vez que nada pode ser mais triste do que um fã alucinado que claramente não entendeu nada do cinema do seu ídolo.

Depois da egotrip russa, era hora do primeiro filme francês do Festival, na Un Certain Regard (não considerando, claro, o Ballon Rouge de Hou como um “filme francês” simplesmente). Em Naissance des Pieuvres, a estreante Schiamma até se impôs um desafio interessante (filmar o universo de 3 meninas de quinze anos, sem colocar em foco nada além da sua relação entre si e com os amigos, sem completar com qualquer adulto a cena), mas infelizmente está muito longe de dar conta dele. É um filme que se perde completamente entre o clichê e o desejo de ser “ousado” (há uma relação homossexual entre as amigas), mas que acima de tudo sofre de uma completa afasia visual, numa filmagem toda ela bastante desinteressante, e ainda com um trabalho de atrizes muito fraco. O filme só serviu mesmo para comprovar o que dizíamos nas expectativas: realmente a Un Certain Regard, quando resolve exibir estreantes ou desconhecidos, no geral tem errado muito a mão.

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