in loco
Dia 1: Wong Kar Wai + 1 jovem romeno
por Eduardo Valente

My Blueberry Nights, de Wong Kar Wai (EUA, 2007) – Competição

Ao primeiro contato, a tentação é forte: imagino minha reação se visse este filme numa comissão de seleção de festival, onde ele viesse assinado não por Wong Kar Wai, mas por algum jovem diretor americano desconhecido. Nesse caso, não tenho dúvidas: tascaria nele a pecha de “derivação descarada”, e recomendaria a recusa ao filme. Mas, está lá: não só o filme é assinado por Wong, como eu o vi discutindo o trabalho numa coletiva de imprensa – o filme é dele mesmo. O acima dito indica quão fortemente negativa foi minha reação ao novo filme do cineasta de Hong Kong: ao final, uma sensação inconfundível de ter visto um Wong Kar Wai for dummies, de que o termo “americanização” como simplificação grosseira de algo poderia se aplicar com precisão ao filme.

Afinal, está tudo lá: a foto que abusa das cores, da aceleração e ralentamento da imagem para criar um clima de irrealidade muitas vezes hiper-real, a trilha sonora com ecos do passado (inclusive, aqui, do próprio passado, na repetição de temas de Amor à Flor da Pele), as histórias de amor complicadas e sofridas, cheias de impossibilidades. No entanto, tudo aquilo que os detratores de Wong sempre viram em seus filmes e eu nunca senti (a idéia de que o artifício significasse o falso, o superficial), me parece a matéria única de My Blueberry Nights: seja pela narração em off que grosseiramente contextualiza e explica cada cena importante, cada virada de sentimentos (“Goodbye isn’t always the end, it could mean a new beginning” – frases de almanaques de adolescente afloram no filme); seja pela dinâmica de “auto-ajuda” quase Kim Ki-dukiana que move o trajeto da protagonista até o (horror dos horrores?) final feliz.

Não que o filme não tenha pontos de eventual interesse (belas cenas de atuação dó-de-peito de Natalie Portman e David Strathairn em personagens secundários; uma cena realmente forte – não por acaso a que reprisa exatamente o curta que Wong tinha feito a partir da mesma história, com Maggie Cheung e Tony Leung), mas a tardia ida a América de Wong, tanto a América real como a América dos filmes, tem mais do Wim Wenders tardio de Estrela Solitária do que do cinema deste no anos 80. Menos assombrado por ela, do que afogado na sobresignificação misturada com a repetição.

Na Cahiers du Cinèma deste mês, Wong fala em “seu filme de férias”. Bom, tomara que ele volte ao trabalho logo.

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4 Luni, 3 Saptamini si 2 Zile (4 Months, 3 Weeks and 2 Days), de Cristian Mungiu (Romênia, 2007) – Competição

Mais um jovem romeno? A inserção do segundo longa de Mungiu na Competição de Cannes claramente deve muito tanto a Câmera D’Or de A Leste de Bucareste no ano passado quanto à muito comentada exclusão da Morte do Senhor Lazarescu da principal seção de Cannes (considerada quase unanimemente um forte erro de julgamento) em 2005. Do primeiro (e de Como Festejei o Fim do Mundo), volta a forte presença dos anos finais do sistema comunista na memória desta nova geração de cineastas locais; do segundo, volta uma atração forte por um realismo-naturalista absolutamente radical (e, note-se: tanto o fotógrafo quanto a montadora de Mungiu são os mesmos de Cristi Puiu em Lazarescu).

Se por um lado isso tudo dá uma certa sensação de deja vu ao filme, não podemos ignorar alguns dados: primeiro, e acima de todos, o trabalho dos atores – excepcional. A atriz Anamaria Marinca carrega nas costas um filme que, basicamente, narra sua descida ao inferno em um dia, e a necessidade de encarar esta como apenas mais um dia na sua vida. Do outro lado, Vlad Ivanov cria um personagem sedutoramente demoníaco justamente na banalidade do seu mal, um mal intrinsecamente fincado numa organização social e humana. Em segundo lugar, é preciso notar a construção atenta dos planos, no geral de uma grande duração que pouco tenta chamar a atenção para si: na mistura entre seus movimentos de constantes reenquadros e trabalhos com o fora de quadro em determinados momentos, e na colagem do filme à experiência do personagem em outras, Mungiu claramente dialoga com cinemas como os de Jia Zhang-ke e dos irmãos Dardenne sem vampirizar nenhum deles, nem se tornando refém de formas ou referências.

Mas, acima destas qualidades está uma outra: a capacidade, desde os primeiros planos (alguns dos mais belos do filme em toda sua banalidade – que lembra muito a exploração dos corredores iniciais de O Mundo, de Jia), de nos instalar no tempo e no espaço onde os personagens circulam. Menos entendemos ou prevemos a historia do que vamos sendo sugados por ela aos poucos. Finalmente, uma prova de maturidade forte: frente à mais de uma oportunidade de buscar efeitos fáceis de choque e sobresignificação no roteiro, Mungiu prefere os caminhos menos marcantes, mas mais doloridos; banais e por isso mesmo cruelmente de todos nós. Se é difícil afirmar que há um “novo cinema romeno” de permanência a partir de quatro ou cinco filmes, também seria tolo negar a força de mais este filme saído curiosamente de um mesmo pequeno país, de realizadores de uma mesma geração.

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É sempre assim: um primeiro dia tranqüilo, com só dois filmes sendo exibidos para a imprensa. Mas, este ano mais do que em outros, os dois dias seguintes serão cruéis: tanto pela superposição de filmes no mesmo dia quanto pela superposição de horários que as diferentes mostras acabaram por criar, impossibilitando (às vezes por questão de minutos) que se visse tudo de interesse. Aí, não tem jeito: é misturar prioridades pessoais com a impressão de que se poderá ver alguns destes outros filmes em breve.

Algumas escolhas são simples, como a de ver o filme de Johnnie To/Ringo Lam/Tsui Hark, e com isso perder o novo David Fincher – que logo estréia no Brasil, e amanhã mesmo estréia na França (assim como no ano passado optei por ver O Crocodilo e Maria Antonieta nas salas comerciais ao fim do Festival, porque eram condições melhores de cansaço físico mesmo). Outras, são claras, mas não sem dor – no caso, ver o novo de Hou Hsiao-hsien, mas perder o filme de abertura da Quinzena, a biografia de Ian Curtis. E, finalmente, há aquelas que não deixam dúvidas da dor inevitável: Nicolas Klotz ou Wang Bing? Até pelo melhor conhecimento da obra anterior, optarei por Klotz – mas não sem uma certa raiva de que o filme de Wang Bing não pudesse estar em horário batendo com alguns dos filmes que se quer perder.

Mas, em Cannes é assim mesmo: resta cruzar os dedos e torcer para que a obra-prima escondida do ano não seja perdida, assim como a intuição de “roubada à vista” se confirme – nem que seja para azar dos colegas que fazem programações diferentes.

editoria@revistacinetica.com.br


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