in loco
Dia 10: Onipresença do luto + ganhador do Un Certain Regard
por Eduardo Valente

É sempre um pouco impressionante quando acontece uma coincidência temática que, de tão forte, nos faz ficar querendo achar significados maiores dentro da produção mundial – quando geralmente estes significados inexistem ou nos escapam, e constatamos que é realmente uma questão da constância de um determinado sentimento a partir de uma seqüência de alguns filmes escolhidos.

Seja como for, o fato é que o luto dominou o Festival de Cannes de 2007. Na Competição, pelo menos em oito filmes o tema era central, predominante mesmo nas obras: Tehilim, Chansons d’amour, Mogari No Mori, Paranoid Park, Auf der Anderen Seite, Izganie, We Own the Night e Secret Sunshine. Além disso ele pode ser tracejado sem muitos esforços em algumas variações distintas em outros trabalhos: o luto antecipado do aborto em 4 Luni; o luto de uma relação em My Blueberry Nights; o luto por um mundo mais simples em No Country for Old Men; o luto de uma vida ativa em Le Scaphandre... De uma forma ou de outra, personagens precisando superar perdas, passar do momento da paralisação pela dor pela volta à vida foi a principal recorrência de Cannes 2007.

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Secret Sunshine, de Lee Chang-Dong (Coréia do Sul, 2007) – Competição

O filme de Lee Chang-Dong talvez seja, dentre todos estes, o que mais diretamente lida com o tema – talvez só comparável ao filme de Naomi Kawase. E, assim como no filme japonês, este exemplar coreano começa em um tom bem diferente: um tom de descoberta, de chegada numa nova cidade, de uma relação quase lírica com a diferença (ainda que exista uma presença constante do marido falecido, ele parece mais algo que impulsiona adiante do que algo que trava a vida). No entanto, o filme de Lee Chang-Dong muda de tom e registro várias vezes, e quando ele embarca de vez no sofrimento da perda (depois de uma breve passagem por um quase thriller inesperado), ele realmente sufoca toda e qualquer outra possibilidade de relação com a protagonista que não seja pela necessidade de superar esta questão.

O que mais impressiona no filme em relação aos exemplares do cinema coreano que costumam chegar a nós é uma aposta ao mesmo tempo num realismo extremo como registro do filme e de uma decisão por apostar num mergulho sem meio-termo no inferno do sofrimento e da loucura que vem por conta deste. Mais do que isso, o filme pinta um retrato bastante desconhecido a nossos olhos de toda uma corrente evangélica dentro da Coréia, onde a religião surge como tema central da dificuldade da protagonista de lidar com a perda. Secret Sunshine consegue então atingir um resultado bastante delicado ao propor, ao mesmo tempo, um profundo mergulho no sofrimento e uma aposta na possibilidade deste mergulho ser, em si mesmo, prova de vida. Um filme duro, pesado, marcante.

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We Own the Night, de James Gray (EUA, 2007) – Competição

Não é exagero dizer que o filme de Gray dividiu bastante a crítica dentro do Festival - aqui na Cinética mesmo, Leo saiu da sessão pela metade, mandando no calor da hora as seguintes linhas:

“Acabo de abandonar a sala, após 40 minutos digerindo a sensação de estar em casa, sábado à noite, diante de uma velha sessão de Supercine, e não na sala Debussy em Cannes. Após a disputada Lição de Cinema com o verdadeiro Martin Scorsese hoje à tarde, o festival nos propõe um subproduto de seu cinema – ou nem isso. We own the night se passa em NY no fim dos anos 80, traz uma batalha entre uma máfia russa e a polícia e tem Mark Wahlberg interpretando sua interpretação de The Departed (2006).”

Duro veredicto, que se por um lado lida sim com algumas das limitações do mais ambicioso filme de Gray até agora (principalmente uma certa tentativa de solenidade que parece por demais devedora, não só de Scorsese, mas de uma série de nomes dos anos 70 – principalmente William Friedkin), não dá conta também (até pela emoção que leva a uma saída da sessão) da força na extrema secura narrativa e estilística de um cineasta que parece bem mais confortável com a idéia do exercício do cinema de gênero autêntico do que Scorsese nunca esteve. O filme de Gray tem, acima de tudo, a virtude de filmar o que é uma questão de identidade, o processo de transmutação de um homem (o personagem de Joaquin Phoenix, que se transforma de Bobby Green em Robert Gruzinsky através da perda) usando uma câmera absolutamente dentro dos acontecimentos, que sua, sente tesão e corre risco de morte a cada momento – a notar em especial a antológica seqüência de perseguição de carros na chuva, facilmente uma das melhores do Festival. Se não chega a ser um filme grandioso como em alguns momentos promete, é forte, tenso, duro.

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Rebellion – The Litvinenko Case, de Andrey Nekrasov e Olga Konskaya (Rússia, 2007) – Fora de Competição

Este documentário russo, embora selecionado desde 10 antes do Festival abrir, só foi anunciado para todos menos de 5 dias antes do encerramento. O motivo: seu tema e seus materiais inéditos, que tratam da vida (e morte, principalmente – aonde o luto volta como motivação principal da própria existência do filme) do ex-agente da KGB Alexander Litvinenko, que terminou sendo envenenado em Londres, no ano passado. Sendo o filme uma acusação bastante direta da participação do Governo russo neste acontecimento, pode-se dizer que o Festival preferiu não arriscar problemas diplomáticos ou precisar reforçar demais seu esquema de segurança para a apresentação do filme.

Apresentado então como uma bomba, o filme em si acaba sendo menos potente do que se poderia esperar, principalmente pela sua finalização corrida para exibição em Cannes: o próprio diretor assumiu na coletiva que ainda tem em mãos um work-in-progress, que pode mudar de cara de acordo com os acontecimentos. E, de fato, a narrativa do documentário parece capenga, às vezes repetitiva, às vezes digressiva, às vezes corrida, como se não houvesse realmente havido a chance para o diretor sentar com sua editora e pensar melhor como solucionar cada um dos inúmeros (e excessivos) temas que vai jogando na tela. Mas, entendemos a correria: pelas circunstâncias que expõe, Rebellion deixa claro que na Rússia é difícil se poder contar com o amanhã quando se trata de denunciar o Governo, e que a exposição que Cannes poderia dar para o material não podia mesmo ser ignorada. Resta ver se os diretores ainda terão tempo/chance/desejo/coragem de mexer mais no filme para conseguir que, cinematograficamente, ele atinja a contundência que, jornalisticamente, seu assunto possui de sobra.

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California Dreamin’ (endless), de Cristian Nemescu (Romênia, 2007) – Un Certain Regard

O que poderia ser mais “adequado” (com todas as aspas possíveis) para um festival de cinema marcado pelo tema do luto do que ter no seu último dia a exibição de um filme não totalmente acabado porque seu jovem diretor de 28 anos (foto ao lado) faleceu num acidente de carro, antes de finalizar a montagem/mixagem do trabalho? Para aumentar a dramaticidade deste acontecimento em si, some-se a isso o fato de que o júri da seção Un Certain Regard, presidido pela cineasta francesa Pascale Ferran, decidiu entregar justamente a este filme o principal prêmio da mostra, num final quase paradoxal para uma mostra que costuma apontar talentos para o futuro (e que aqui viria a ser justamente mais um jovem cineasta romeno a se somar aos que já estavam sendo celebrados nos últimos dias em Cannes). Fato é que foi uma tarde emocional na sala Debussy em Cannes, primeiro com a exibição pública do filme fechando a programação da mostra, e em seguida a entrega do prêmio com a equipe ainda presente na sala, recém-terminada sua exibição (o júri, claro, havia visto o filme no dia anterior).

Dizer que California Dreamin’ é um filme imperfeito seria atestar o óbvio, já que sua montagem de fato não foi afinada, e nas 2h35 de sua duração há bem uma meia hora a mais do que o filme precisaria ter. Mas o júri optou por premiar, antes de tudo, uma energia, um caráter único que não se pode negar que o filme tenha (ainda que não fosse de forma alguma a minha escolha para um prêmio nesta seção – isso eu tendo visto menos da metade dos filmes exibidos, ainda que escolhendo esta quase metade com algum critério). E o fato é que há aqui, mais do que apenas isso, uma ambição bastante surpreendente e desestabilizadora, uma disposição para contar uma história que não apenas é complexa pela quantidade de elementos que coloca em cena (bem mais do que a maioria dos fortes, porém muito simples filmes romenos que têm se destacado), mas principalmente pela necessidade de desenvolver uma linguagem ao mesmo tempo muito solta e bastante dominante dos códigos da narrativa clássica. Isso tudo ser tentado num primeiro filme não é pouca coragem, e é compreensível ver o júri se impressionar com o escopo do que tenta (e quase sempre consegue) aqui o jovem Nemescu, numa mostra quase sempre marcada pela dimensão pequena dos filmes realizados.

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