in loco
Dia 9: Cinema de/por mulheres: Kogut, Breillat, Kawase, Bonnaire, Katz
por Eduardo Valente

Quando começava o encontro com a imprensa dos 33 diretores presentes a Cannes entre os que dirigiram um episódio de Chacun son Cinéma, logo alguém notou: Jane Campion era a única mulher entre todos eles. Numa época onde a questão da representatividade feminina é considerada relevante em quase todas as áreas (ao ponto do próprio Gilles Jacob dizer que é um dos critérios da montagem do júri, por exemplo), a proporção de uma para 32 realmente tinha algo de chocante – além de um tanto curioso por esta ser logo Campion, uma das mais ativas “cineastas do feminismo”, por assim dizer (tanto que seu curta do filme coletivo tinha um subtexto fortemente relacionado ao tema). Logo veio essa pergunta na coletiva, e ela respondeu tirando um pouco a importância do que isso poderia significar, mas dizendo que havia sim ficado triste ao constatar a proporcionalidade ali representada.

Bom, curiosamente, os dois últimos dias do Festival foram numerosos em filmes dirigidos por cineastas mulheres. A princípio, esta não é uma categoria que eu perceba como algo a ser notado particularmente na análise (embora haja vários festivais de “filmes de mulher” pelo mundo – inclusive o Femina, no Brasil), mas me pareceu um critério interessante de agrupamento destes filmes, que perpassam quase todas as seções do Festival, menos a Semana da Crítica (mas exclusivamente por eu não ter ido até lá, já que vale notar que o filme ganhador do prêmio principal desta seção – XXY – também é dirigido por uma mulher, a argentina Lucia Puenzo).

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Mutum, de Sandra Kogut (Brasil/França, 2007) – Quinzena dos Realizadores

Começo pelo filme brasileiro tanto por dizer respeito diretamente a nós, mas também porque a participação nacional neste ano teve tintas particularmente femininas: os dois longas selecionados foram dirigidos por mulheres, e dois dos três curtas são co-dirigidos por outras.

Talvez seja redutor dizer que Mutum possui uma sensibilidade feminina, no entanto talvez não seja por acaso que seu protagonista, o menino Thiago, seja acusado de “frescura” pelo pai por possuir uma índole mais sensível. O filme de Sandra Kogut, neste sentido, se irmana bastante com seu personagem: seu olhar atento para o mundo (não só as pessoas, mas também o ambiente e suas circunstâncias) certamente se diferencia da maior parte do que se faz atualmente no cinema brasileiro. Se tem por um lado traços de um certo cinema internacional de ficção atualmente bastante presente (um que busca a relação com o mundo a partir de uma idéia de observação deste mais do que pela imposição de uma narrativa ficcional excessivamente marcada), por outro lado também consegue traçar alguns pontos sobre uma certa vivência sertaneja tipicamente brasileira, sem precisar com isso se tornar vítima de um simbolismo marcado que torne os personagens pouco mais do que sintomas de alguma doença maior brasileira. É um olhar doce e amargo para a vida ao mesmo tempo, no que o filme se aproxima bastante dos recentes Cinema, Aspirinas e Urubus e O Céu de Suely, não por acaso outros filmes que viajaram para alguns dos principais festivais do mundo(Cannes e Veneza, respectivamente) – e, aliás, os três filmes também dividem alguns profissionais, como o ator João Miguel e o diretor de arte Marcos Pedroso.

Se há alguma coisa em Mutum que não me completa de todo (e isso é realmente uma primeira leitura de um filme brasileiro importante do ano, ao qual voltaremos provavelmente mais de uma vez ainda) é o fato dele estabelecer muito cedo um determinado registro/olhar de mundo (um naturalismo extremo de encenação e uma opção por se irmanar ao olhar do menino que vai descobrindo o mundo a partir do microuniverso à sua volta, onde os momentos são captados pelo detalhe sempre), e a partir daí nos convidar para passar a próxima hora e meia nesse registro, nesse mundo. Não há espaço e Mutum para um maravilhamento cinematográfico posterior a este entendimento de sua dinâmica, e tão somente (embora não seja pouco) uma dinâmica de apreciação da sua maneira de reproduzir este formato com enorme atenção e belos momentos. Embora, como eu disse, isso não seja exatamente pouco, é especialmente impossível de nos satisfazer de todo justamente no final de um festival como Cannes, onde estamos todo dia sendo desafiados por olhares únicos para o cinema e narrativas que, muitas vezes, esmeram-se em nos passar constantes e saborosas rasteiras – e sobre essas duas questões, vale continuar a ler abaixo.

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Une vieille maitresse, de Catherine Breillat (França, 2007) – Competição
Mogari No Mori (The Mourning Forest), de Naomi Kawase (Japão/França, 2007) – Competição

Os dois filmes dirigidos exclusivamente por mulheres na Competição deste ano (a animação Persepolis é co-dirigida pela autora da história em quadrinhos que deu origem ao filme) por coincidência passaram no mesmo dia. É interessante que são duas cineastas que têm um cinema bem particular, que se aproximam de uma expressão feminina por caminhos bem distintos. Enquanto Breillat é famosa por seus filmes bastante provocadores, onde o sexo é sempre um dos temas centrais, e em especial o lugar ocupado pela mulher frente ao assunto; Kawase é uma cineasta japonesa bem mais jovem (ganhou a Camera D’Or em Cannes em 1997, enquanto Breillat dirigiu seu primeiro filme em 1975), com um estilo marcadamente sereno de filmar, se dividindo entre documentário e ficção e atenta a temas como a maternidade e a família.

Une vieille maitresse foi mencionado antes de sua exibição como um primeiro filme de Breillat para o grande público, e mais controlado, mas na verdade as duas noções são bem complicadas. Verdade, ele é um filme de época com considerável cuidado de reconstituição, com atores de alguma presença, com uma narrativa ficcional clássica (baseada em livro do século XVIII). No entanto, ele é um filme que continua enfrentando sem muitos subterfúgios a questão da (não) solução dos desejos e da sexualidade humana frente ao ambiente social, que trata de uma relação de amor e ódio absolutamente carnal entre um casal, em seu processo auto-destrutivo. Mais do que isso, no que se refere ao público: Breillat não tem medo algum de ser bem pouco “naturalista” na sua encenação, aproveitando-se da extrema presença física de seu casal de atores (tendo Asia Argento no seu terceiro filme em Cannes 2007, talvez no papel que explora de maneira mais profunda a sua persona), e com isso pudemos ver mais do que apenas um momento em que o filme levou a risadas uma platéia de jornalistas-críticos aparentemente absolutamente pudicos e incapazes de lidar com uma encenação não-realista do desejo e do ódio. Se igualarmos esta platéia ao grande público (e, cada vez mais, eles se assemelham), podemos esperar problemas para o caro filme de Breillat em recuperar seu investimento. Mas, cá entre nós, isso não me interessa nem um pouco – e o que importa é que é um belo filme perturbador.

Nisso, aliás, Breillat se aproxima de Kawase, embora pelo espectro contrário: apostando numa relação radicalmente realista entre câmera, atores e ambiente (aqui no caso a natureza jogando papel central), o filme japonês teve a mesma dificuldade com a platéia “crítica”. Na medida em que o tempo do filme ia se esgarçando junto com sua narrativa, ao longo da sua segunda parte em que os personagens partem em uma deambulação pela floresta que lembra bastante os filmes de Apichatpong Weerasethakul  (embora aqui o misticismo latente deste seja trocado por uma religiosidade bem fincada na Terra), os jornalistas e críticos debandavam da sessão em grupo. Em Cannes é assim: bem aceito mesmo é sempre o middle brow, o naturalismo artificial. Naturalismo demais ou artificialismo demais, isso não pode.

E o filme de Kawase propõe um jogo de entrega do espectador à sua proposta, onde depois de uma introdução bastante graciosa que nos lembra algumas partes do anterior Shara, numa ficção bem perto do registro documental, o filme se perde completamente (no bom sentido) dentro desta floresta, que passa a ser a terceira personagem do filme. Lá, um idoso viúvo há 33 anos (tempo que tem significação especial no budismo) e a atendente do asilo onde mora vão se alternando no papel de quem cuida de quem, ao longo de dois dias de caminhada e interação (visual e física) com o espaço. É verdade que o filme não atinge a força quase mágica e hipnótica dos melhores momentos de Shara, mas ainda assim é um trabalho de um mistério constante, com um final de destroçar corações no seu retrato do final de um longuíssimo processo de luto. Visto no penúltimo dia do Festival, já com um peso de cansaço considerável no corpo (e nos olhos), o filme acima de tudo nos deixa a vontade de poder voltar a ele logo, com calma, para aproveitar melhor tudo o que ele oferece.

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Elle s’apelle Sabine, de Sandrine Bonnaire (França, 2007) – Quinzena dos Realizadores

Passou na Quinzena esta estréia na direção da grande atriz Bonnaire, um filme absolutamente pessoal sobre a difícil relação da sua irmã mais nova (em um ano) com um autismo bastante delibitador. O filme faz um movimento duplo: ao mesmo tempo em que retrata o atual estado da irmã através de uma série de cenas da casa de repouso onde mora com outros pacientes mentais (e, aliás, a forma de tratamento ali aplicado tem muito a ver com a que vemos no filme de Kawase para os idosos com problemas de memória), o filme usa vídeos caseiros e fotos da família para voltar ao passado e contar a história anterior de Sabine junto com a família.

Trata-se de um filme bastante duro (ainda que não sem humor), principalmente pela degradação visível da irmã de Sandrine depois de uma passagem por uma instituição psiquiátrica mais tradicional. Na verdade, sua grande força é como o estudo do mistério do rosto humano, em especial um rosto em que temos dificuldade de penetrar no que se passa por trás dele. Não chega a ter a aproximação mais hipnótica com o material caseiro que, por exemplo, os filmes de um Alan Cavalier ou um Tarnation propõem, e o filme tropeça ainda um tanto na sua necessidade de possuir um quê de “institucional”, pela sensação de Sandrine de tratar de uma doença ainda bastante pouco entendida. Mas, sem dúvida, é trabalho de forte repercussão emocional no espectador.

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Una novia errante, de Ana Katz (Argentina/França, 2007) – Un Certain Regard

Termino esta passada pelos filmes dirigidos por mulheres que vi nestes dois dias por aquele que talvez seja o mais diretamente “feminino” na sua temática-narrativa. O filme de Katz, estrelado por ela mesma, trata de uma mulher que, indo viajar com o namorado para 4 dias de férias na praia, termina separada dele após uma briga no ônibus. Temos então estes 4 dias em que ela continua a viagem e se relaciona com pessoas à sua volta ao mesmo tempo em que sente a falta e tem a dificuldade de lidar com o abandono sofrido. É um filme que se dá sempre no tempo menor, nas pequenas conversas, nos pequenos sentimentos, e que tenta retratar exatamente isso: 4 dias de uma mulher passando por dias absolutamente especiais e comuns ao mesmo tempo. Acreditar e identificar o drama desta mulher não é difícil, e Katz trabalha com uma série de atores especialmente interessantes pelo seu physique absolutamente comum (a começar por ela mesmo, mas passando principalmente por Carlos Portaluppi, caso raro de um ator bem mais do que apenas “gordinho” a interpretar um interesse romântico sem conotações cômicas). É um pequeno filme, sem dúvida, mas cheio de grandes cenas.

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