in loco
Palma ou não Palma?
por Eduardo Valente

No geral, acho premiações uma coisa bastante chata, ainda mais de se discutir. No entanto, talvez só em Cannes eu veja algum sentido nisso: tanto pelo perfil bastante forte e abrangente que o júri costuma ter, quanto pelo sentido histórico-artístico bastante relevante que acaba tendo a Palma de Ouro (para mim um prêmio que evoca, se não necessariamente os melhores filmes, pelo menos as escolhas, caminhos e olhares do cinema de autor ao longo dos anos). Realmente eu consigo olhar para o cinema de um tempo pela lista da Palma de Ouro e entender algo sobre o cinema do mundo naquele período – enquanto no Oscar, por exemplo, só conseguimos mesmo tirar questões sobre a história da indústria hollywoodiana, absolutamente nada de relevante em termos de mérito artístico. Este ano, aliás, a revista Positif lançou uma edição comemorativa bastante interessante, que dá um pouco esta dimensão: ano a ano, matérias e entrevistas que fez sobre ganhadores da Palma e filmes que a premiação ignorou totalmente e que pareçam importantes para a revista. Material histórico valioso e passada a limpo de um olhar que o Festival representa.

Pois neste ano chegamos ao domingo de entrega dos prêmios de Cannes com uma só certeza: a vitória de qualquer filme será um pouco surpreendente – o que, ao mesmo tempo e por complementaridade, significa que nenhuma vitória será uma surpresa completa (bom, pelo menos quase nenhuma). Isso acontece porque o Festival foi estranhamente homogêneo, dando a impressão de uma regularidade de boa qualidade nos filmes da Competição (claro que com as discordâncias de sempre sobre os melhores e alguns filmes mais idiossincráticos), mas sem nenhum filme que realmente se destacasse do grupo de maneira radical. Esse destaque, claro, não garantiria nada – basta lembrar, para ficar na minha curta experiência de quatro festivais, de 2003, quando se pensava que haveria uma disputa cabeça a cabeça entre Dogville e Mystic River, e nenhum dos dois levou sequer um prêmio (com a decisão, que se mostraria muito acertada, em favor de Elefante).

Este ano, dois filmes apenas foram unanimemente recebidos como acima da média: o romeno 4 Luni... e o novo dos irmãos Coen (No Country For Old Men). De fato, se há hoje um leve favoritismo, é para o filme romeno, que certamente não passará sem nenhum prêmio (ganhou inclusive ontem o prêmio dos críticos da Fipresci – o que não necessariamente, aliás, é um bom augúrio). Isso porque, por um lado os Coen tem uma Palma de Ouro e três prêmios de direção em Cannes, e por outro o momento parece muito favorável ao cinema da Romênia (basta ver a bastante surpreendente vitória ontem na Un Certain Regard, com um filme que nem foi plenamente finalizado pelo seu diretor), o que daria a essa vitória uma certa sensação de termômetro bem medido do momento de uma cinematografia. No entanto, quando o filme passou (no longínquo primeiro dia) esse favoritismo jamais seria considerado plausível, porque apesar de ter causado grande impressão, parecia certo que surgiriam filmes mais arrebatadores depois. Com o passar dos dias, porém, o filme cresceu mais e mais na lembrança.

Por fora, existem duas hipóteses mais consideradas: o tipo de vitória “conjunto da obra na falta de um grandesíssimo filme”, que iria para algum dos veteranos autores não Palmeados ainda – favorecendo, neste ano, fortemente a Alexander Sokurov. A outra hipótese é uma escolha por diretores menos high profile com uma defesa de um cinema mais clássico e emotivo (o que até teria relação com o premio para Ken Loach do ano passado), o que favoreceria We Own the Night, Le scaphandre et le papillon e Auf Anderen Seite. Entre estes, eu realmente só espero que o filme de Fatih Akin não termine saindo premiado – o que seria uma triste rendição ao “cinema do conteúdo”, muito pior até do que as láureas para um Babel, que pelo menos tem um cineasta interessado no fazer cinematográfico (ainda que fraco, a meu ver).

Os outros filmes dividem-se em duas categorias, onde ambas podem levar a uma premiação, como visto em anos anteriores: primeiro, os idiossincráticos – ou seja, os filmes menos unânimes na avaliação de quem está de fora, mas que podem ter encontrado grande repercussão no grupo razoavelmente fechado de pessoas que formam um júri. Elefante e Ventos da Liberdade, inclusive, ainda que em espectros opostos de cinema, podem ser considerados prêmios principais deste tipo. As idiossincrasias do ano seriam Death Proof, Chansons d’amour e Mogari No Mori de um lado (que, quem acompanhou a cobertura de perto sabe que é o lado para onde me inclino), e Import/Export e Stellet Licht de outro. The Man from London também seria uma senhora idiossincrasia, mas esta ao mesmo tempo menos provável ainda (apenas para prêmios técnicos) e ao mesmo tempo tendo o peso do nome de Béla Tarr. Estes idiossincráticos podem até levar a Palma de Ouro, mas especialmente quando dividem o júri, são filmes que costumam ficar com prêmios de direção ou Grande Prêmio do Júri.

De outro lado, temos os filmes bastante relevantes, bem recebidos e considerados, mas que trabalham numa chave menor. São filmes que têm grandes chances de completarem premiação (roteiro, elenco, Prêmio do Júri), mas nunca se sabe quando o júri acaba precisando fazer uma negociação de gostos opostos e um destes acaba emergindo, como foi o caso de A Criança em 2005 (embora, neste caso, o romeno seria o primeiro a ganhar destaque). Seria o caso dos chamados filmes menores de alguns autores (Paranoid Park – embora eu ache que não seja exatamente menor, falo aqui mais da recepção geral; My Blueberry Nights) e dos filmes de cineastas bastante pouco conhecidos, que trabalham num registro menos “chamativo” para sua autoralidade (We Own the Night, Secret Sunshine, Tehilim).

Finalmente, temos os filmes que realmente surpreenderão se aparecerem na premiação final em qualquer ponto além dos prêmios bastante marginais: Izganie, Breath, Persepolis, Une vieille maitresse e Promise me This. Estes sim seriam um susto bastante grande – mas, como dizíamos no começo, no fundo este ano emparelhado e de recepções na maioria generosas sem entusiasmo, nada surpreenderia totalmente. A ver o que Stephen Frears e os comparsas preparam.


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