in loco
Dia 8: Ainda sobre autoria + Sokurov, Andersson, Korine
por Eduardo Valente

Falávamos ontem dos universos pessoais cinematográficos de alguns cineastas, e é bom aproveitar o tema hoje para esclarecer algumas coisas. Primeiro, que a existência desse universo não é algo que eu considere como uma qualidade a priori para um filme – ou seja: um filme não depende disso para ser apreciado. O que eu dizia apenas é que para que um cineasta ganhe essa aura de um “autor internacional” me parece que seria uma qualidade mínima a ser requerida – não só um mundo que pertença a ele, mas uma maneira de pensar o cinema dentro das suas qualidades audiovisuais intrínsecas. Fora isso, claro, temos bons e maus filmes dentro desses universos, e bons e maus filmes fora. A minha incompreensão é só de como um Fatih Akin ou um Kim Ki-Duk pode sequer ser mencionado na mesma forma que um Abel Ferrara ou um Béla Tarr, no que se refere ao que os move ao fazer cinema. Ou seja: entendo que o conceito mesmo de autor seja discutível na sua utilidade para determinadas formas e questões da análise crítica – mas não entendo que, num lugar que parte do pressuposto da utilidade deste conceito, que não se tenha uma possibilidade mínima de distinguir entre aqueles que o são e os que simplesmente não.

Um segundo ponto, complementar, é a idéia que poderia passar que, uma vez dentro da obra de um autor, estamos para sempre fadados a gostar dos filmes deste e detestar o daquele outro – tornando o exercício da crítica um jogo de cartas marcadas. Quanto a isso, duas coisas: primeiro que ser mais simpático ao universo de um autor do que de outro não é questão de cartas marcadas, mas de maneira de ver o mundo (ou o cinema). Assim como na “vida real” tendemos a ser amigos destas ou daquelas pessoas por dividirmos algumas crenças e comportamentos frente ao mundo (seja de que tipo forem), e não tendemos a mudar toda hora de simpatias quanto a uns e outros (embora possamos, em casos extremos), no cinema é igual: não é por preguiça intelectual, por exemplo, que me sinto mais próximo de um Gus Van Sant do que de um Ulrich Seidl a priori, mas sim porque o universo de interesses do primeiro me interessa muito mais do que o segundo – e que isso seja uma razoável constante é apenas natural, já que as obras dele são, em grande parte (mas não só), reflexos de seu olhar para o mundo e para o cinema.

A segunda coisa a ser dita é que, na hora da análise, as obras são o mais importante. E aí, não tem jeito, cada obra é uma obra e assim deve ser vista. As visões anteriores sobre o cineasta completam o olhar deste novo trabalho mas não predispõem uma análise que independa do filme. Precisamos estar abertos ao que um novo (ou velho – muitas vezes vemos um filme inicial depois de uma considerável familiaridade com o trabalho do cineasta, como foi o caso com o próprio Van Sant e a exibição do seu Mala Noche em Cannes no ano passado) trabalho coloca na mesa, para onde nos leva, e gostar mais (ou menos) dele em relação a outros do mesmo cineasta, dono ou não de uma obra reconhecível. Para exemplificar um pouco todas estas questões, pelo menos no que se refere a mim, me parece que o cineasta ideal é justamente este cujo filme vi nesta manhã...

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Alexandra, de Alexander Sokurov (Rússia/França, 2007) – Competição

Conheci o trabalho de Sokurov num Festival do Rio (muito antes de ter este nome), com Mãe e Filho (foto ao lado). Esteticamente falando, sem dúvida um filme que nos coloca imediatamente frente a esta idéia de um olhar absolutamente pessoal sobre cinema, e que me deixou uma marca muito forte, depois retomada na Mostra de SP com Moloch. Até aí, portanto, um cineasta de que eu gostava muito. Depois, quando a mesma Mostra fez uma grande retrospectiva do cineasta, com a exibição do então mais recente Taurus, começou um processo de reavaliação, pois o que era absolutamente novo foi se revelando um universo já bastante desenvolvido numa obra de quase 20 anos, e maneira como essa obra revelava novas facetas deste olhar (principalmente um pronunciado decadentismo e um deslocamento quase consciente do mundo contemporâneo, revelando traços de um conservadorismo bastante auto-centrado) foi, de fato, diminuindo bastante meu interesse pelo autor em si – o que perpassou a Arca Russa, mas foi desembocar mesmo em Pai e Filho, filme que me desagradou de tal maneira em Cannes 2003 que fui à coletiva de Sokurov para entender melhor de onde vinha aquele cinema, e ao ouvir ele falando realmente descobri um reacionário de primeira (e, pior, um reacionário acomodado).

Assim, de dois primeiros filmes vistos que me agradavam bastante (e, embora não tenha voltado a eles em algum tempo, depois de ver duas vezes cada na época, eles ainda permanecem fortes na memória), Sokurov passou a ser um cineasta que acompanho com considerável “pé atrás” – o que, porém, não me impede de reconhecer quando estamos frente a uma obra maior como quando seu O Sol passou na Mostra do ano passado. E é assim que chegamos a Cannes 2007 e a Alexandra: com a certeza de que temos em nossa frente um universo absolutamente inconfundível de um cineasta (um autor), e, no entanto, isso não garante/predispõe um olhar positivo nem negativo sobre o filme a ser visto.

E tanto melhor, porque Alexandra é um filme que me parece justamente num meio de caminho. É, sem dúvida, o filme mais “naturalista” dos que vi Sokurov fazer: tanto no trabalho da atriz principal quanto na maneira de filmar o mundo, o olhar quase abstrato do diretor para os sentimentos humanos, geralmente incorporado em tudo na forma do seu filme, surge apenas em momentos bem específicos. No entanto, como também é característico do seu cinema, ele consegue o feito de ir a Chechênia de 2007, local histórico cheio de significados e marcas políticas (entre outras a de ser, via um quase massacre, a plataforma eleitoral maior do presidente Putin), e abstrair completamente tudo o que está subentendido na guerra que lá se passa. A guerra para Sokurov é ahistórica e apolítica – o que é tudo que uma guerra nunca poderia ser. Claro que há inúmeros filmes feitos com a idéia de uma abstração de representação da guerra, sem se colocar em cena um determinado espaço ou época. No entanto, ir justamente a um espaço de guerra e retira-la do mundo, parece, para dizer o mínimo, covarde (ou, o que é mais o caso com Sokurov, alienadamente “artístico”).

Então, o filme vive dentro destes limites: tem seus momentos bonitos (até bastante bonitos), como seria de se esperar em um filme do diretor, mas por outro lado deixa um gosto esquisito de “Vovó viu a guerra” (porque o filme acompanha um dia de visita de uma avó ao acampamento do exército russo na Chechênia, onde serve o seu neto). Neste passeio de campo da vovó, há espaço para algumas observações de fundo humano (tanto sobre a juventude dos soldados – que todos passam a ser um pouco netos dela; quanto no contato que ela trava com uma chechena ao ir ao mercado da cidade vizinha), mas também há uma insatisfação forte com esta guerra sem sangue, essa guerra sem tiros, essa guerra sem trauma, essa guerra sem morte, essa guerra sem causa (de parte a parte). Aí fica a cargo de cada espectador desejar priorizar ou enxergar mais um destes dois lados.

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Du Levande (You, The Living), de Roy Andersson (Suécia, 2007) – Un Certain Regard
Mister Lonely, de Harmony Korine (EUA/França, 2007) – Un Certain Regard

Já que estamos falando de autores e universos particulares nos últimos dias da Competição, vale mencionar na mesma nota os dois filmes acima vistos na seção geralmente voltada aos filmes mais “arriscados” ou novos diretores da seleção oficial, por serem casos bem curiosos.

O sueco Roy Andersson filmou seu primeiro longa em 1970 e o segundo em 1975, mas curiosamente só realizou o terceiro em 2000 (Canções do Segundo Andar), com o qual ganhou o Prêmio Especial do Júri em Cannes(espécie de segundo lugar). Dentro de uma trajetória tão particular, é especialmente difícil entender porque este seu novo filme não foi exibido na Competição – pois, além de ter sido uma das propostas de cinema mais bem resolvidas que vi na seleção oficial, ainda comprova totalmente a extrema personalidade do universo do seu autor. Aqui, Andersson praticamente filma uma série de esquetes (a maioria com algum fundo cômico, mas nem todas), todas elas resolvidas em um plano, de câmera fixa (exceção a uma, mas onde o movimento de câmera acontece por esta estar dentro de um trem).

Embora seja episódico, estes episódios se relacionam tanto pela presença constante de alguns personagens como pela montagem em continuidade eventual (um homem num prédio vê os personagens da esquete anterior pela janela). Além disso, Andersson usa uma mesma luz fria onde seus atores e ambientes são criados de maneira verossímil, mas nada realista. De fato, o que impressiona aqui é a capacidade de unir uma ironia finíssima sobre a experiência das relações humanas, sem perder por nem um segundo o apego e o calor para com seus personagens. É um jogo de equilibrista dos mais delicados, como de resto também é este formato episódico que, no entanto, Andersson resolve com uma regularidade surpreendente e uma comicidade realmente hilariante (seu tempo e encenação de comédia, além da presença forte dos cenários construídos em estúdio para reproduzir uma cidade, lembram bastante o Tati de Playtime). E um plano final realmente impressionante. Se um filme for julgado pela relação entre a proposta de um realizador e sua capacidade de resolve-la no cinema, o filme de Andersson foi sem dúvida das melhores coisas vistas no Festival.

Harmony Korine também tem uma trajetória curiosa: surgiu para o cinema muitíssimo jovem, como roteirista de Kids, de Larry Clark. Logo realizou Gummo e Julien Donkey Boy, filmes bastante elogiados (que confesso não ter visto) e que lhe deram uma certa aura de pequeno autor maldito americano do futuro. Só que aí Korine sumiu do mapa – e descobrimos agora que literalmente: passou por problemas pessoais/emocionais e foi morar na selva no Panamá e escondido num apartamento em Paris. Volta agora com este Mister Lonely que, desde o título até o fato de que o filme tem duas linhas narrativas, onde uma é filmada na floresta do Panamá e a outra começa com um homem solitário em Paris, podemos ver que é um trabalho de uma relação muito forte entre vida pessoal e obra – ainda que, sem conhecer seus dois filmes anteriores, eu não possa falar de um universo típico de Korine.

Diego Luna interpreta (de maneira tocante, embora lamentavelmente fique esquecido por um tempo no filme) um sósia de Michael Jackson que vive e trabalha em Paris, fazendo imitações (na rua ou em eventos). Um dia ele conhece uma sósia de Marilyn Monroe (Samantha Morton), que o convence a mudar com ela para uma comunidade isolada na Escócia, onde só moram sósias (temos, entre outros, o Papa, os 3 Patetas, Abraham Lincoln, James Dean, Madonna), que ficam 24 horas vestidos como as personalidades que imitam. Desnecessário dizer que é um filme que trata de questões de identidade e de vida em comunidade, mas o que talvez seja necessário afirmar é que ele faz isso com muito pouco discurso e com muitas imagens – algumas delas fortíssimas, quase abstratas. Há ainda uma segunda história, paralela (que não se cruza ou relaciona com a outra), onde freiras missionárias na floresta tropical se relacionam com um padre (que, de tão peculiar, basta dizer que é interpretado por Werner Herzog) e participam de um curioso milagre (que fica melhor não descrito, porque é das cenas mais fortes do filme.

O que é indiscutivelmente a grande qualidade de Mister Lonely é que ele se dedica a construir um espaço quase imaginário que é todo dele, cujas regras vamos descobrindo aos poucos, e o qual devemos aceitar plenamente para melhor fruir o filme. Sua narrativa nem tanto se desenvolve da maneira tradicional, como mais estabelece cenas, momentos, situações. Se essa é a grande força do filme, talvez sua maior fraqueza seja justamente que, ao contrário de Andersson, há a tentativa de também ir contando uma história onde a relação entre os personagens deveria importar para o espectador – mas, a força das abstrações que cria é tão maior que nos vemos sempre incomodados quando o filme tenta ser um pouco mais narrativo ou dramático. Mas é um filme gostoso de se ver mesmo na irregularidade, tanto pela sua idiossincrasia como pela capacidade de criar momentos de força incomum.

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