in loco Dia
10: 3 filmes, 3 mundos, 1 competição por
Eduardo Valente 24 horas na competição de
um festival como Cannes tem o atrativo único de você poder ver três filmes com
interesses e aproximações estéticas tão completamente diversos como os que foram
vistos neste último dia por aqui. Trata-se de uma experiência que, mesmo quando
acha-se um dos filmes completamente dispensável (como é o caso – leiam mais abaixo),
tem uma riqueza de entrada e tentativa de dar conta do cinema mundial atual como
poucas.
* * * La frontière
de l’aube, de Philippe Garrel (França, 2008) – Competição Depois
da abrangência quase épica de Amantes Constantes é curioso receber este
novo filme de Garrel, que especialmente na sua primeira metade praticamente isola
seu casal de protagonistas do mundo – nem tanto pelo confinamento em espaços físicos,
mas no próprio enquadramento, quase sempre limitado pelos próprios corpos dos
dois amantes. Trata-se de uma primeira parte praticamente sob o encanto dos rostos,
e em especial o de Laura Smet, que realmente imprime uma energia quase sobrenatural
ao filme. A partir da internação de sua personagem (retomando o velho tema traumático
do eletrochoque, parte da biografia do diretor), abrimos um pouco mais o escopo
e inserimos os personagens num espaço tomado por outros personagens. De
fato, há uma virada nesta segunda parte que não vale a pena revelar aqui, mas
que basta dizer que, por sua radicalidade (principalmente no aspecto visual, em
que o filme de Garrel nos remete aos de Cocteau ou mesmo Meliés), fez com que
a sessão de imprensa fosse tomada pelos apupos e risadas típicas de um público
(mesmo ou principalmente o “especializado”) que considera que o cinema é o terreno
apenas para determinadas “expressões artísticas”, sem qualquer generosidade para
se relacionar com o que se propõe diferente, único. Mas, para quem ultrapasse
esta barreira, logo fica claro que é exatamente esta virada o momento que interessa
a Garrel em toda esta história, o momento que nos coloca em problema tudo aquilo
que vínhamos assistindo até então. Em termos da sua estrutura
narrativa é um filme que nos lembra tanto o próprio Amantes Constantes,
como curiosamente o Canções de Amor, de Christophe Honoré, onde um forte
trauma também separava o filme em duas metades, com o personagem de Louis Garrel
precisando redescobrir formas de lidar (ou não) com a perda e com as expectativas
dos outros (e suas mesmas) com o seu comportamento a partir desta perda. Para
compor esta pequena peça musical trágica (muito bem ilustrada pelo uso de um violoncelo
na trilha), Garrel conta de novo com uma fotografia em PB siderante assinada por
William Lubtchansky, num processo que consegue ao mesmo tempo hiperbolizar o real
e dar-lhe uma aparência quase apenas gráfica. * * * Che,
de Steven Soderbergh (Espanha/França/EUA, 2008) – Competição Ao
final da cabine de imprensa de Che, havia uma estranha sensação de que
estávamos participando de algum test screening (aquelas sessões feitas
para avaliar um filme ao longo de sua realização) do material do filme. Talvez
isso tenha a ver com o fato de que não houve um só crédito, nem no começo do filme
(em nenhuma das duas partes, que foram exibidas com um intervalo de 15 minutos
entre elas), nem no final, com nomes de quaisquer dos atores/profissionais. Não
seria a primeira vez que uma obra vem a Cannes num formato ou incompleto ou tão
“apressado” que pareça incompleto, o que deixa a nós, os críticos, numa situação
um pouco peculiar de nos referir ao que vimos, sabendo porém que talvez este seja
um filme que só seja visto nesta forma uma única vez (nos últimos anos, por exemplo,
isso aconteceu com 2046, Southland Tales e Brown Bunny, cuja
forma eternizada depois como “o filme” era bem diferente da que se viu em Cannes). No
entanto, como é só o que podemos fazer no momento, vale dizer que Che é
mais um filme estranho na já bastante peculiar carreira de Steven Soderbergh.
Nesta sua encarnação, ele trabalha como um cineasta realista ao extremo, que filma
as coisas da maneira mais direta e frontal possível, chegando mesmo a exalar uma
secura um tanto inesperada. O filme é tão despojado de qualquer sentimentalismo
em torno da figura de Che como interpretada por Benicio Del Toro, que talvez
devesse mais apropriadamente se chamar “Guerrilha” (que, aliás, é o título anunciado
da segunda parte, mas que se adequaria perfeitamente ao todo) ou melhor ainda
“Espírito Guerrilheiro”. Isso porque, mais do que fechar-se na figura de Che (quase
onipresente, mesmo assim), o que o filme realmente faz é acompanhar dois momentos
bem distintos da idéia mesmo de revolução no século 20: primeiro, a vitoriosa
carreira dos cubanos comandados por Fidel, que vemos desde o navio que os levou
a Sierra Maestra até a tomada da ilha; e depois, na segunda parte, a fracassada
campanha boliviana que culmina com a morte de Che. E a acumulação das duas partes
se torna então poderosa justamente por nos fazer confrontar a maneira como Che
segue adiante, quase obsessivamente, sem poder simplesmente “sentar-se sobre os
louros” da vitória cubana, aproveitá-la. Não seria exagerado
dizer que o filme tal qual o vimos aqui se detém bem mais no processo revolucionário
conforme vivido nestas duas experiências – e suas relações com o entorno, seja
ele internacional (representado numa montagem paralela na primeira parte, com
Che já vitorioso visitando as Nações Unidas), seja ele principalmente com as sociedades
onde estes processos se deram. Desta forma, Soderbergh acaba realizando um pequeno
estudo que parece tentar entender porque os dois processos terminaram de maneiras
tão distintas. Assim, curiosamente, o conjunto dos dois filmes não parece nem
vitorioso nem derrotado na idéia de revolução armada, numa curiosa dialética.
Um Soderbergh marxista, então? Nada mais pode nos surpreender no que se refere
a este diretor... * * * No
ano passado, eu afirmei na competição de Cannes que estava desistindo do cinema
do austríaco Ulrich Seidl. Fato é que há determinados diretores cujos universos
simplesmente não nos interessam de uma tal maneira que é quase tolo tentar se
provar capaz de entrar, assistir e analisar com argumentos o que é, no fundo,
um enorme desprezo. Somo a esta lista então, neste ano, o italiano Paolo Sorrentino,
cujo Il Divo foi exibido na competição. Assim como há dois anos já tinha
me retirado da sessão de O Amigo da Família com 25 minutos de projeção,
hoje foi a vez de agüentar apenas aproximadamente 40 minutos do novo filme. Não
que não haja talento cinematográfico envolvido no filme (afinal, Sorrentino é
um esteta aplicadíssimo), nem interesse temático-narrativo (a aproximação que
ele faz aqui com a grande política italiana poderia resultar bastante potente),
mas é que simplesmente o que Sorrentino faz com este talento e tema não me diz
absolutamente nada. Não vou aqui pretender escrever uma análise do filme, porque
é patético fazer isso sem ter visto metade do mesmo, mas basta dizer que há no
material uma aproximação entre o Casseta e Planeta e o Peter Greenaway da fase
Tulse Luper que, francamente, soam insuportáveis – ainda mais para quem não é
absolutamente escolado nos fatos e minúcias da política italiana, que vai sendo
esmiuçada em velocidade de jato. Sorrentino, non per me. Maio
de 2008
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