in loco
Dia 11: Das pequenas ambições às grandes pretensões
por Eduardo Valente

Cannes tende sempre a ser (mas neste ano em especial tem sido o caso) um festival onde a maioria dos filmes vistos parecem, nos melhores casos, extremamente ambiciosos ou, nos piores, totalmente pretensiosos (cabendo ao olhar de cada espectador julgar quais são quais, é claro). O que não deixa de ter a sua lógica, na medida em que o tamanho do prestígio e tratamento diferenciado dado anualmente pela mídia às poucas dezenas de filmes selecionados para cá, entre milhares de inscritos, justifica que se tente sempre chamar a atenção para algo único, “nunca visto”. Por isso, depois de mais de uma semana com 3 ou 4 destes filmes por dia, foi uma inegável lufada de ar fresco ver em menos de 24 horas três filmes que claramente possuem uma dimensão tão pequena em sua realização e objetivos (no sentido mais genérico do termo), em meio ao verdadeiro desfile de elefantes que estamos acostumados a ver todos os dias.

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My Magic, de Eric Khoo (Cingapura, 2008) – Competição

Com certeza sabedores de que a imprensa em Cannes pode destruir um pequeno filme (e basta lembrar de Brown Bunny para ver que isso não é pura teoria – embora, provavelmente, a longo prazo o “espancamento público” que o filme tomou por aqui tenha sido positivo para lhe dar alguma fama), os programadores de Cannes não por acaso não só programaram My Magic para o penúltimo dia do festival (quando já diminui o número de jornalistas presentes e já param de circular as revistas diárias, com sua visão hiper-pragmática e lida por todos, que deixam de ser impressas com o fim dos trabalhos no mercado), como ainda garantiram que a própria sessão oficial do filme, às 16h30 desta sexta, valesse também como a sessão de imprensa. Assim, os críticos mais cínicos ou céticos, extremamente cansados e pouco pacientes, não teriam um espaço todo deles para destruir o filme, dividindo a recepção com um público comum, sempre mais simpático – ainda mais quando o ator principal do filme pode fazer mágicas com fogo dentro do cinema ao final da sessão. O resultado foi que esse pequeno, pequeno filme de Cingapura pôde passar junto com algumas enormes produções de alguns dos maiores nomes do cinema mundial e ser recebido com simpatia.

De fato, a presença de My Magic na competição tem o cheiro de uma daquelas bizarrices compensadoras que Cannes faz de vem em quando, uma vez que há três anos Be With Me, filme anterior do diretor, abriu a Quinzena dos Realizadores sob chuva de elogios e questionamentos do porquê estava ausente da competição. Fato é que aquele filme se encaixaria com bem mais tranqüilidade na vitrine maior do festival, uma vez que seu formato narrativo, trabalho estético e opções bastante inesperadas e bem resolvidas (embora haja controvérsias sobre estas conclusões entre alguns colegas críticos) lhe davam mais “carne” que a este quase etéreo My Magic, que tem a aparência de ser o filme mais barato a jamais passar no Grand Theatre Lumière – e que se encaixaria melhor mesmo numa Un Certain Regard ou Quinzena. Mas, com esta opção, a seleção faz um mea culpa com o filme anterior, cria um fato interessante (primeiro filme de Cingapura na competição em muitos anos) e, com essa interessante solução de programação, protege o filme (e a sua escolha) de um escrutínio maior. Todos saem ganhando, então.

A história é quase mínima: garoto mora com o pai, um bêbado que se afoga para esquecer a ausência da mãe, até que começa a retomar sua carreira de mágico para poder dar condições mínimas de vida ao filho. Khoo segue esta história com um naturalismo minimalista quase ingênuo (dependendo do olhar, francamente ingênuo), que se maravilha frente à magia do protagonista (que, a bem da verdade, tem menos de mágica e mais de provas de resistência a dor), e monta um pequeno conto sobre sacrifício e dificuldade de se colocar como pai (um tema sempre presente no cinema, aqui neste festival várias vezes). O filme exala alguma simpatia, consegue pelo menos um momento bem forte (a exploração consentida do pai pelo patrão) e no final pisca o olho para a poesia mínima que Khoo já exercia em Be With Me. Mas, sem dúvida alguma é um filme menor, bem pequenininho mesmo, que correria o risco de sumir do mapa se mal programado.
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Wendy and Lucy, de KellyReichardt (EUA, 2008) – Un Certain Regard
The Pleasures of Being Robbed, de Josh Safdie (EUA, 2008) – Quinzena dos Realizadores

Também são mínimos dois filmes americanos vistos neste último dia das sessões paralelas. Comecemos pelo novo trabalho da mesma diretora de quem pudemos ver, no Festival do Rio do ano passado, Old Joy. De uma simplicidade impressionante, Wendy and Lucy segue um pequeno capítulo na trajetória de uma jovem que deixou sua cidade natal em Indiana em busca de oportunidades e de uma nova vida no distante Alaska – seguindo apenas com sua cadela labrador, seu carro velho e muito pouco dinheiro. Sim, soa bastante como Na Natureza Selvagem, do presidente do júri Sean Penn – mas só se tirarmos quase tudo que dá àquele filme um desejo de épico: a contextualização familiar prévia que explica e conflitua o protagonista, o sentimento de um cross country aventureiro e cheio de acontecimentos, o desejo do cineasta de nos “ensinar algo sobre a condição humana”, em suma. Reichardt trabalha no registro absolutamente oposto, minimalista mesmo (bastaria pegar as trilhas sonoras dos dois filmes para fazer a oposição exata entre os dois trabalhos e suas intenções), de quem se preocupa em observar os pequenos contatos humanos, na sua mistura de incompreensões e entendimentos que fazem a vida em sociedade poder ser tão desesperadora e bonita.

The Pleasures of Being Robbed, programado na sessão de encerramento da Quinzena (junto com um curta, The Acquaintaces of Lonely John, do irmão de Josh, Benny), é uma clara afirmação política do curador Olivier Père em defesa do cinema mais “independente” que os americanos ainda conseguem fazer (buscando talvez um paralelo com o sucesso de Tarnation alguns anos atrás). Os dois filmes são realizados por um coletivo de realizadores de Nova York, que trabalham de maneira absolutamente caseira, com quatro ou cinco pessoas na equipe e filmagens na rua e em locações, seguindo atores amigos (os próprios diretores são atores dos filmes). Ambos os filmes exalam um forte odor da virada dos anos 60 para os 70, um desejo de emulação mesmo, que se confirma pela presença no palco dos membros da equipe, que pessoalmente seguem o modelo retrô de tantas bandas de rock americanas recentes. Há ali uma energia, um desejo de fazer, uma capacidade poética (a cena do longa que se passa no zoológico do Central Park é especialmente forte), além de bastante domínio de linguagem (os filmes, embora rodados num estilo “câmera caseira na mão chamando a atenção para isso”, trabalham com um considerável conhecimento e cuidado com decupagem e cortes dentro da cena). Mas, certamente, não há o sopro de novidade e inesperado que veio com o filme de Jonathan Caouette. Por enquanto parece mais um pessoal legal e “do bem”, de quem se pode querer ser amigo, do que grandes promessas do cinema a observar.

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Synecdoche, New York, de Charlie Kaufman (EUA, 2008) – Competição

Enquanto isso, no espectro oposto do cinema... Nesta sua estréia como diretor, o roteirista mega-hypado Charlie Kaufman se contenta em tentar resumir tudo o que pensa sobre a vida e a morte, e em como a arte pode tentar dar conta destes temas – só isso, mais nada. Nesse sentido, a única real surpresa por detrás do filme é o tamanho das suas ambições, porque de resto ele segue absolutamente tudo que se poderia esperar, retomando vários dos temas já explorados, por exemplo, em Adaptação, Brilho Eterno, Quero Ser John Malkovich, etc.

Não deixa de ser curioso portanto que, em seu começo, Synecdoche chega a dar a impressão (ou a esperança, no caso de quem não seja um ardoroso fã de Kaufman) de que vai ter um escopo bem menor e um andamento bem mais realista-narrativo. Não por acaso, é quando o filme é mais charmoso, misturando algumas tiradas realmente inspiradas com uma melancolia calma encarnada no corpo de Philip Seyour Hoffman, vivendo o diretor de teatro de uma cidade pequena que, enquanto monta A Morte do Caixeiro Viajante, vai encontrando todos os sinais de que sua vida vai se encaminhando para o final, sem que ele tenha conseguido fazer muito de importante dela – e ainda percebendo que está perdendo o contato com sua mulher e com sua filha de quatro anos. Logo, porém, as tiradas se tornam grandes piadas surrealistas e a melancolia se torna depressão, e Kaufman mergulha em plena forma no seu estado maníaco-depressivo de cinema auto-referencial que todos conhecemos.

Que não se negue ao diretor a bravura da distância a que se dispõe a ir neste esforço em parecer dar conta de tudo que se pode falar sobre a vida e a morte (“it’s about everything”, diz um personagem num certo momento). Os personagens vão se sucedendo de maneira impressionante (sempre com atores de grande intensidade), o tempo avança em elipses bastante grandes, as locações idem, e Kaufman parece não ter qualquer limite na quantidade de espelhos que vai levantando no seu roteiro, cada um se olhando por fora de si mesmo, até que sobra pouco ao espectador como opção do que simplesmente observar de bem longe o tamanho das ambições em jogo. Claro que há momentos isolados realmente inspirados, pequenas reflexões relevantes, mas Kaufman parece acreditar de fato que isso tudo misturado numa catedral barroca da ficção fica superdimensionado como efeito, quanto o que se dá é exatamente o contrário: na medida em que cresce feito um bolo hiperfermentado, Synecdoche vai perdendo aquele charme e contato real que tem no seu começo, simples e direto. E o disforme monstro que é o seu filme termina por engolir de vez esta estréia de Kaufman.

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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