in loco
Dia 6: Notícias do planeta competição
por Eduardo Valente

Estamos nos aproximando da exata metade do festival no que concerne a exibição dos títulos da competição, e as coisas continuam bastante obscuras quanto a tendências, favoritismos e afins. A revista Screen International, uma das quatro que circulam com edições diárias aqui pelo festival, tem na sua última página um quadro de cotações que conta com 10 críticos de diferentes países de quatro continentes (só não há um crítico africano), entre eles o brasileiro José Carlos Avellar. Pode-se dizer que este quadro é consultado diariamente por 90% dos jornalistas-críticos presentes, para perceber em alguma medida a recepção dos filmes da competição (a Le Film Français também publica um quadro diário, mas este é apenas composto por críticos franceses, o que dá ao veredito, ainda que sejam representantes de publicações bem distintas, um certo viés determinado). Pois nos cinco anos em que cobri Cannes até agora, não havia visto uma situação como a que temos até agora, com 10 dos 22 filmes já “julgados”: entre os oito filmes que estão na frente na média das cotações (que é publicada no quadro), apenas 0,5 ponto separa o primeiro do sétimo. Sendo que a imensa maioria deles recebeu pelo menos uma nota de máxima (de quatro estrelas) e pelo menos uma nota baixa de uma estrela (a pior nota é um enorme X em negrito, que consegue ser mais desanimador que nossa conhecida bola preta). O que prova que todos os filmes têm seus defensores e seus detratores, o que assegura que um júri dificilmente chegará a decisões unânimes com facilidade.

A título de curiosidade vale dizer que o primeiro colocado até agora é o turco Three Monkeys, com 2,8 de média, vindo seguido por Waltz with Bashir, Le silence de Lorna e 24 City (2,7 cada); Linha de Passe e Un Conte de Noel (2,6 cada); Leonera (2,5); e Gomorra (2,3). Há então um enorme salto que separa os acima do Blindness de Fernando Meirelles (média 1,4), e um ainda mais chocante salto para o filipino Serbis, que entra com 0,6 até agora – sendo que 6 de 9 críticos tascaram lá no tal do X preto para ele. Vale notar, porém, que o perfil da maioria destes críticos é de uma linha mais conservadora frente à idéia da “arte do cinema” e que raramente o mais votado leva a Palma de Ouro. O mais interessante, no caso, é mesmo constatar esta incrível bagunça nas idéias dos críticos, confusão que se dá em alto nível, como se pode ver pelas médias altas.

Uma última curiosidade: os dois filmes não vistos por este que vos escreve fielmente (quase) todo dia são justamente o primeiro e o último da lista, Three Monkeys e Serbis. A bem da verdade eu estive presente em sessões dos dois, mas após o terceiro dia de Cannes, é praxe que um filme do dia acabe sacrificado em meio ao cansaço, que desaba em sono profundo. Foi o caso dos dois. No domingo, há uma espécie de “última chance” em que se reprisam todos os filmes da competição. Dependendo da programação, espero ver os dois, e quiçá os outros dois que já não tenho programado para ver (os de Atom Egoyan e Wim Wenders). Caso todos batam nos horários, por azar, prioridade para o filme filipino que, no que concerne os amigos mais próximos, é tido em bem mais alta conta do que o filme turco, digam lá o que disserem os colegas lá do quadro da Screen...

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24 City, de Jia Zhang-ke (China/Japão, 2008) – Competição

Para a imprensa, a expectativa pelo filme novo de Jia começou com uma certa estranheza, primeiro pela marcação da sua “sessão de gala” para o horário das 16h, quando geralmente se marca as sessões dos principais autores do festival para 19h ou 22h, ficando reservado este horário vespertino para os realizadores menos “concorridos” ou reconhecidos, ou então para os filmes extremamente arriscados, por se tratar de um horário menos “sob os holofotes” e por isso mesmo com menos escrutínio da imprensa, numa forma de tentar proteger um pouco estes realizadores dos “cães selvagens” que se costuma soltar por aqui frente às propostas menos convencionais de cinema. Para além disso, só foi marcada uma sessão de imprensa do filme, na manhã e num cinema bem pequeno, onde realmente só se fazem reprise de cabines ou cabines de filmes que terão mais do que apenas uma sessão para a imprensa. Seria falta de atenção mesmo ou o festival queria dizer mesmo algo com essa programação peculiar? Seja como for é um tratamento bastante inesperado para o filme de um ganhador do Leão de Ouro em Veneza, considerado um dos principais cineastas da atualidade mundial.

Vendo o filme, fica a impressão de que o festival talvez não tenha tido certeza de como seria recebida esta proposta de depuração quase simplória (sem o sentido pejorativo dado ao termo tantas vezes) do cinema do realizador chinês. Sim, porque se Jia sempre se dividiu entre o documentário e a ficção no seu fazer, conseguindo assim manter um impressionante ritmo de produção, 24 City é um filme que une de maneira absolutamente indelével os dois registros. Para os brasileiros, inclusive, será bem difícil escrever sobre o filme sem citar Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, já que o filme de Jia funciona sob regime um tanto parecido (ainda que com desejos de construção e efeitos antigidos absolutamente distintos). Aqui, como lá, o filme é estruturado como uma série de depoimentos diretos para a câmera, em que há uma intervenção eventual do diretor com perguntas (no caso de Jia, bem menos freqüentes, porém), numa mistura em que sabemos desde o início que se sucedem pessoas comuns com atores interpretando papéis-histórias, sem que sejam identificados quais são quais.

Não está em questão para Jia, porém, a natureza mesmo do contar e do narrar-se, da maneira em que isso acontece no filme de Coutinho, assim como não se trata aqui de repetir histórias para duas pessoas. O interesse maior do cineasta é propor que a memória e a imaginação são campos que trabalham de forma muito próxima na criação da História – no caso aqui, de um determinado espaço, que é o de uma fábrica de armamentos que está sendo fechada para a construção de um enorme empreendimento imobiliário que mistura residências e áreas comerciais (num tema absolutamente “jiaziano”, que nos remete diretamente a O Mundo ou Still Life). Só que aqui as características formais dos planos que mais comumente associamos ao seu cinema (com delicados movimentos de travelling ou pans que desvelam o espaço frente à câmera num ritmo absolutamente particular) manifestam-se tão somente nas cenas que ligam os depoimentos, e que constroem uma espécie de elegia ao passar do tempo através de um espaço (lembrando muito também os planos descritivos de atividades em Useless, seu documentário visto na Mostra de SP do ano passado).

Nos depoimentos, Jia mantém-se quase minimalista (ainda que com o cuidado de composição de sempre), dando total premência à palavra falada, em que o que mais se destaca é o desejo de fazer do pequeno relato da vida pessoal ou das emoções bem particulares o formador do que seria uma memória coletiva de um lugar, de uma atividade. Há nestes depoimentos, assim, uma dimensão dupla de um caráter único e intransferível com a montagem, quase que tijolo a tijolo do que seria a matéria-prima da História humana. 24 City é um pequeno filme de Jia, sem dúvida, mas cuja ressonância se prova bem maior que sua forma simples, fazendo com que o cuidado de programação do Festival talvez tenha se mostrado excessivo: ele agüentaria bem o tranco.

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Gomorra, de Matteo Garrone (Itália, 2008) – Competição

Curioso pensar o filme do italiano Garrone a partir do tema das fronteiras entre documentário e ficção, uma vez que aquilo que surge para Jia como algo liberador termina sendo o que em grande parte constrange o que de mais interessante poderia haver em Gomorra. As origens da questão no filme são fáceis de entender, uma vez que se saiba que ele é adaptado de um livro escrito em forma de “romance jornalístico”, que busca desvendar o funcionamento das microestruturas de organização da máfia siciliana. Pois, ao transpor isso ao cinema de ficção, claro que Garrone opta pelo caminho do naturalismo radical, tentando revelar as “verdades” num sentido de denúncia que se completa e fica bem claro nos longos letreiros ao final, cheios de estatísticas e de informações sobre a máfia.

Por conta deste desejo, Garrone sufoca o poder do cinema de fabular, de criar força por si mesmo, a serviço da realidade – e curiosamente os melhores momentos de seu filme (pois há alguns) vêm justamente quando ele deixa um pouco de lado o “realismo” e se presta a desenvolver personagens ou a criar belas composições visuais (principalmente no uso da arquitetura dos bairros pobres) ou sonoras (pela trilha sonora pop-regional). Mas, ao querer dar um retrato completo das estruturas mafiosas, opta por quebrar sua narrativa em seis ou sete histórias contadas simultaneamente de uma maneira que, ao fim e ao cabo, tiram a força das individualidades e tornam o filme um tanto cansativo nas idas e vindas que, logo percebemos, servem acima de tudo ao desejo de generalizar e denunciar. É pena.

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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