in loco
Dia 2: Um primeiro grande filme
por Eduardo Valente

Leonera, de Pablo Trapero (Argentina/Coréia do Sul/Brasil, 2008) - Competição

É curioso que, apesar de um entorno generalista e binário que cisma em opor o cinema brasileiro ao cinema argentino, há muito pontos de contato entre os dois neste momento histórico – e aqui nem falamos especificamente do fato de que Walter Salles é um dos co-produtores deste Leonera. Fato é que o novo filme de Pablo Trapero faz pensar imediatamente em dois filmes brasileiros recentes: primeiro, e apenas aparentemente por um motivo mais superficial, no Falsa Loura de Carlos Reichenbach; em seguida, no Céu de Suely, de Karim Aïnouz.

Do primeiro, sobressai a semelhança impressionante entre a brasileira Rosane Mulholland e a argentina Martina Gusmán, notadamente pela aparência física a princípio (em especial no começo do filme de Trapero, em que a personagem tem os cabelos tingidos de loiro), mas também pelo fato de que o filme de Trapero orbita em torno de sua personagem/atriz principal de uma forma que lembra bastante o filme de Carlão. Do segundo, vem a mistura de potência e opacidade com que se constrói a personagem Julia deste filme e que nos relembra a Hermila do Céu...: são mulheres sobre as quais entendemos tudo, mas não sabemos nada (ou vice-versa), e que logo percebemos que não poderão ser paradas por nada que não seja suas próprias vontades (e, não por acaso, ambas terminam “na estrada”, por assim dizer). No entanto, existe algo que diferencia radicalmente o filme de Trapero e o de Aïnouz, e isso reside no fato de que no filme argentino o ato da maternidade se mostra o mais potente e transformador para a personagem principal, enquanto em O Céu de Suely sentimos sempre que o filho é um tanto estranho à personagem, para quem os sentimentos maternais não são o centro do seu mundo naquele momento.

A Leonera de Trapero, aliás, tem um duplo sentido: embora se refira a um espaço físico específico das prisões argentinas onde a personagem realmente transita, a palavra funciona muito mais pela idéia mesmo de “toca de leoas” que se aplica ao pavilhão presidiário onde ficam as mulheres grávidas ou que tenham tido filhos recentes (menos de quatro anos de idade), que é o espaço onde a maior parte do filme se desenvolve – e que é, de fato, o grande diferencial deste filme em relação a outros que tratem do feminino pelo viés da maternidade. O achado que é esta contraposição entre a presença constante de crianças e um espaço tão duro como o do cárcere permite a Leonera encontrar uma quantidade quase absurda de planos que nos pegam direto no estômago, sem necessidade de muita abstração ou busca de qualquer tipo de poesia da parte de Trapero: está tudo ali, frente às câmeras, boa parte do tempo.

Mas há bem mais a se apreciar no filme do que apenas o feliz encontro com uma locação/situação, e parte disso diz respeito ao passo adiante que Trapero dá aqui ao conceito do “cinema da pele” que muito se vinha já acusando de um certo cansaço no cinema contemporâneo. É fato: Trapero continua grudado em sua personagem, experimentando o mundo através dela, no entanto há em Leonera a disposição ao drama de uma maneira exemplar no que se refere a construção de ambiente, relacionamentos entre personagens e de desenvolvimentos narrativos. Neste sentido, Leonera não se entrega somente a uma “captação do mundo”: ele o constrói, com considerável parte do seu trabalho se dando no roteiro/montagem e no desenvolvimento dos personagens. E é desta maneira que Trapero nos conduz por quatro anos de vida da personagem de uma forma sutil em que quase não percebemos o quanto de informação nos vai sendo dado, construindo uma tensão crescente que é dominada pelo filme tão bem quanto sua disposição a olhar o mundo à sua frente. Um belíssimo filme, o melhor de Trapero até agora.

Maio de 2008

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