in loco
Dia 9: Maravilhamentos - ou não
por Eduardo Valente


La mujer sin cabeza, de Lucrecia Martel (Argentina/França/Espanha/Itália, 2008) – Competição

É muito peculiar o pequeno universo do cinema de autor. Em Cannes, seu epicentro, volta e meia ouvimos dizer que um determinado diretor “está só se repetindo” (sim, eu já fui culpado disso algumas vezes – embora tente reservar o epíteto para momentos bem significativos), no entanto, muitas vezes quando um diretor acrescenta um caminho novo à sua obra, as vozes do dissenso também soam forte: “ele(a) não é mais o mesmo!” Difícil apaziguar os ânimos exigentes e muito pouco generosos com o universo do cinema que muitas vezes exalam os “autoristas”. Pois ontem, segundo relatos, sonoras vaias foram ouvidas na primeira sessão de imprensa de La mujer sin cabeza, novo filme da argentina Lucrecia Martel. Eu, que vi o filme na segunda sessão, não tive a mesma experiência (embora também não se tenha ouvido sequer sombra de um aplauso). No entanto, não é difícil entender em que nervo Martel tocou, pois esta certamente não é a mesma diretora dos dois filmes anteriores que lhe deram fama internacional – e isso é uma ótima notícia, porque se 4 anos depois ela fosse a mesma, aí sim haveria algo de errado.

De fato, talvez nossos queridos amigos críticos pudessem ter se assustado menos se tivessem dado atenção a um fait divers da economia do mercado cinematográfico revelado esta semana nos trade papers que circulam pela Croisette, dando notícias de todos os últimos deals e projetos em andamento. Segundo a nota na Variety, o próximo filme de Lucrecia Martel será um projeto de ficção científica, com alienígenas invasores da Terra, cheio de efeitos especiais. Não, não é piada, como alguns poderiam ter pensado, e pelo contrário: a partir do conhecimento deste fato (e se ele se concretizar, já que muitos projetos anunciados acabam não se realizando), talvez seja bem interessante repensar em breve este La mujer sin cabeza na obra de Lucrecia. Afinal, recém-saído como estou de uma outra (pequena) maratona, a do RioFan (Festival de Cinema Fantástico do Rio de Janeiro), eu poderia dizer sem medo que La mujer sin cabeza poderia facilmente ser encaixado numa mostra do tipo, desde que o programador possua a cabeça aberta (sem trocadilhos).

Sim, porque de fato não acontece nada de abertamente sobrenatural no filme (há controvérsias sobre a aparição de alguns fantasmas em cena, porém). No entanto, Lucrecia explora aqui este que sempre foi um dos seus maiores talentos (e que continua absolutamente intacto – sim, senhores, é a mesma cineasta!), o de manipular com precisão o quadro cinematográfico, com suas entradas e saídas, seus cantos e espaço exterior (através de um uso sempre impressionante do som), para fazer de La mujer sin cabeza um filme de suspense que não se afirma como tal, um filme de horror que não se afirma como tal, um filme fantástico que não se afirma como tal. Isso porque todas essas dimensões se dão a partir do ponto de vista da personagem principal do filme que, depois de um acidente aparentemente banal, perde completamente as estribeiras da realidade à sua volta. Não consegue manter uma conversa inteira, exercer sua profissão, parece às vezes não reconhecer ou confundir as pessoas (a cena em que ela e a sua mãe esclerosada vêem um vídeo de casamento é absolutamente preciosa), e vive uma rotina de cenas cujo ritmo se sucede como flashes de memória e percepção (com alguns cortes entre seqüências incrivelmente eficazes).

Para nos remeter a este estado, Lucrecia Martel busca reforçar o maravilhamento típico do seu domínio do quadro cinematográfico (aqui realizado num cinemascope incrivelmente claustrofóbico): a qualquer momento qualquer coisa pode acontecer (a aparição de um personagem em cena, a revelação de um elemento externo desconhecido, a localização a posteriori num espaço), e se o espectador de cinema for generoso o suficiente para voltar a seu estado de encantamento inicial, quase lumieriano, com a simples existência de um plano e do mundo que se move dentro dele, pode-se dizer que a primeira meia hora de La mujer sin cabeza será das mais fortes experiências que ele terá recentemente. Se, no entanto, ele ficar procurando uma “narrativa” no sentido clássico (embora, ela lá esteja) ou profundidade de personagens, isso ele não encontrará.

De fato, sob muitos sentidos, La mujer sin cabeza parece-nos um autêntico filme lynchiano de Lucrecia, um filme que faria uma sessão dupla fascinante com Inland Empire ou mesmo Mulholland Drive (quando a personagem ressurge na parte final do filme com os cabelos loiros tingidos de preto, isso fica ainda mais claro). Só que Lucrecia, ao contrário de tantos supostos admiradores de Lynch, não tenta copiar o seu estilo e sim filmar alguns dos estados mentais que ele tão bem filmou ao longo da sua carreira, dentro daquilo que ela sabe fazer melhor como cineasta. Se não chega a ser uma obra-prima, por ter uma segunda metade sem tanta energia em movimento como a primeira (ainda que com seqüências impressionantes, vide a carona que a personagem dá a uma menina, e onde o simples enquadramento usado cria uma desconfortabilíssima sensação de que um acidente acontecerá a qualquer momento), La mujer sin cabeza não deixa nunca de ser um filme fantástico – em todos os sentidos.

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Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes (Portugal, 2008) – Quinzena

Se Lucrecia Martel nos leva a novos caminhos na carreira dela, o novo filme do português Miguel Gomes é o primeiro em Cannes cujo efeito eu realmente possa caracterizar como uma surpresa completa. Não tanto por não conhecer o diretor, porque eu já tinha tido a chance de ver um dos seus dois longas anteriores e alguns dos curtas dele e de sua produtora (O Som e a Fúria), que já há alguns anos fazem alguns dos filmes mais instigantes do curta mundial. Mas porque ante a Aquele Querido Mês de Agosto, nossa reação natural é mesmo a de maravilhamento. E se nós sentimos isso é porque dá para perceber que da parte dos realizadores, a aventura da filmagem foi neste mesmo caminho.

Contemos uma historinha sobre o filme antes, para explicar esta sensação. O filme de Miguel Gomes foi realizado em dois momentos distintos, um primeiro em que foi filmado muito material na região que inspira o filme (Arganil) – material este que, em sua maior parte poderia ser chamado de documental. A partir do visionamento deste material, e de uma pré-edição do mesmo, voltou-se ao lugar um ano depois (sempre no mês de agosto, que tem significado especial por ser a época do ano em que os familiares partidos costumam voltar para visitar, e acontece uma série de festas públicas na região) e filmou-se então a história de ficção que aparece no filme.

Importante dizer que esta história da produção foi contada no debate pós-filme, mas que o grande barato de Aquele Querido... é mesmo o de ir sendo pego de surpresa a cada plano, a cada “situação dramática”, documental ou ficcional (sim, temos aqui mais um filme trabalhando e expandindo estas fronteiras). Pois seja um carro de bombeiros andando pela rua, grupos tradicionais cantando suas músicas ou pessoas dando entrevistas, o filme é movido sempre pela lógica do fantástico se dando no mundo à nossa frente. Neste sentido, pode-se fazer uma ponte entre o cinema de Miguel Gomes e o de Apichatpong Weerasethakul, talvez o único que nos situe minimamente numa mesma forma de olhar para o mundo – embora com artifícios e fins tão diferentes quanto podem ser diferentes Tailândia e Portugal. Inclusive, há um segundo ponto de contato curioso entre os dois: a divisão dos filmes em duas partes bem distintas, cuja conexão é tão direta quanto enviesada, por paradoxal que soe. A passagem entre os dois registros no filme de Gomes é uma autêntica delícia.

Muito mais haveria a ser dito sobre o filme, porque ele é um que pede toda a atenção possível e a descrição de uma série de seus momentos espetaculares (um deles envolve um dos usos mais belos da fusão que eu já vi). Por enquanto basta dizer que poucos filmes mostram uma alegria tão grande frente ao ato de filmar o mundo, ao mesmo tempo que usa de uma ironia inteligentíssima que nunca torna essa alegria algo “bobo alegre”, pelo contrário, ela parece se pensar e repensar inúmeras vezes. A falsidade de uma verdade e a verdade de uma falsidade – é disso que se faz o cinema de Miguel Gomes. Tomara que algum festival o leve ao Brasil.

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Delta, de Kornel Mundruczó (Hungria/França, 2008) – Competição
Liverpool, de Lisandro Alonso (Argentina/França/Holanda, 2008) – Quinzena

Curiosamente, acima falávamos de maravilhamento, do fantástico, de um olhar-cinema para o mundo que nos recoloca em contato com um fascínio cinematográfico primeiro, até pré-narrativa. No entanto, é claro que por mais que se teorize sobre o tema, o fato é que há neste caso a sensibilidade individual de cada espectador/crítico criando a ponte possível junto a este sentimento. Nós críticos podemos argumentar em cima do que nos fascina, tentando dar bases menos “subjetivas” para esta sensação, como espero ter feito aqui em cima. Mas, nos casos negativos, onde não se encontra esta conexão com filmes que só se sustentam a partir dela, fica bem mais difícil a argumentação, pois ela esbarra em afirmações (“o filme não se conecta com o espectador”, “o filme não desenvolve nenhum trabalho que compense em outro registro o que se abstém de fazer com uma narrativa e construção de personagens”, etc) cuja negação simples e direta seria alguém afirmar que, sim, o filme faz estas coisas (como meu amigo Filipe Furtado fez, por exemplo, com Liverpool - foto acima - quando cobriu o Bafici).

Fato é, porém, que a minha sensibilidade não foi despertada por um segundo que seja na tela pelos filmes acima citados. Aliás, isso talvez seja mentira, uma vez que em Liverpool houve sim uma curiosidade inicial e um pequeno interesse na parte imediatamente final (exatamente depois que o protagonista do filme deixa a tela), mas no geral o novo filme de Lisandro Alonso (cujo Los Muertos me tocou bastante) me pareceu um exercício em uma imanência que a tela não completava – suas imagens não me pareceram fortes, marcantes, surpreendentes, engajadoras em suma. E aí é um passo para que o uso dos planos longos, dos movimentos sutis e do silêncio quase onipresente nos sintam mais como tiques de grife de autor do que um movimento natural e necessário do diretor neste filme, cujo momento final à la Rosebud me pareceu especialmente infeliz.

Nada porém que seja tão forte quanto o desinteresse pelo filme do húngaro Mundruczó que me parece ocupar este ano o espaço de “autor-bad boy legitimado” da vez, que Carlos Reygadas mais recentemente encontrou para si. Delta é mais uma dessas tragédias pessoal-familiares filmadas por estes diretores-demiurgos que parecem querer oprimir o espectador com a beleza de suas escolhas frente a miséria dos seus personagens (algo que, ao menos, Alonso passa longe de fazer). Mesma cartilha (planos longos, enquadramentos “inesperados”, quase silêncio, mundo estranho em frente a câmera), levando ao mesmo resultado adiado, mas desde sempre antecipado (final sem qualquer esperança). Um exercício em futilidade de autor – ou talvez seja só a minha opinião.

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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