in loco Dia
1: Expectativas e começo (Up; Spring Fever) por
Eduardo Valente Num ano como este, não é preciso
gastar muito tempo falando de expectativas, quando temos uma competição com nomes
como os (a cada um cabe colocar na sua ordem própria de interesse/importância
– a que segue é a minha apenas) de Alain Resnais, Quentin Tarantino, Pedro Almodóvar,
Marco Bellochio, Elia Suleiman, Tsai Ming-liang, Lars Von Trier, Johnnie To, Ang
Lee, Jane Campion, Michael Haneke. A estes, deve-se sempre somar alguns como os
de Jacques Audiard, Gaspar Noé, Ken Loach, Lou Ye, Xavier Giannoli e Park Chan-wook,
afinal, por mais que eles alternem bastante bons e nem tão bons (e uns bem maus,
diremos logo) filmes, sempre podem nos trazer interesse – mesmo, ou às vezes até
principalmente, quando não são tão bons. Completam a lista jovens realizadores
já devidamente inseridos nos cânones recentes (Andrea Arnold, Brillante Mendoza),
ainda que mais ao gosto de uns que de outros – ou seja, apenas Isabel Coixet merece
um autêntico “who the fuck?!” na lista da competição deste ano (no caso dela menos
por ser desconhecida, e mais por ser conhecida). Então, ao invés de ficar tentando
pré-organizar estes nomes dentro dos seus projetos, digamos logo: esperamos ansiosamente
por ver todos estes filmes.
Ou seja: a safra do ano
da maior crise econômica mundial em décadas promete (embora seja fato que crises
levam um ou dois anos para chegarem aos filmes, já que é o tempo que os filmes
levam para ficarem prontos). Tanto, aliás, que sobraram nomes excepcionais tanto
para a Un Certain Regard (Bong Joon-ho, Hirokazu Kore-eda, Alain Cavalier, João
Pedro Rodrigues e jovens como Corneliu Porumboiu, Mia Hansen-Love e Raya Martin)
quanto para a Quinzena (Coppola, claro, mas também Pedro Costa, Hong Sang-soo,
Luc Moullet, Nobuhiro Suwa e Alain Guiraudie). A má notícia que resta tanto para
mim como para os leitores desta cobertura é que, com tantos filmes “obrigatórios”,
de uma forma ou de outra, acaba que vai sobrar pouco tempo para ver os filmes
dos desconhecidos, dos iniciantes, das descobertas (e há 10 primeiros filmes na
Quinzena, outros 6 na Semana, por exemplo). Isso é sempre um pouco triste porque
boa parte da paixão de um festival internacional de importância, como é o de Cannes,
é a de ver nascer os próximos grandes nomes que entram no cartel dos “incontornáveis”,
como dizem os franceses. Neste ano, porém, as descobertas por aqui serão um pouco
menos numerosas – pelo menos no momento do Festival, porque estamos fazendo o
possível para poder estar em Paris na semana seguinte do evento, quando reprisam
por lá a programação da Un Certain Regard, da Quinzena e da Semana. Se isso acontecer,
além da cobertura durar quase 20 dias, ela certamente terminará sendo mais completa,
e arriscada. Vamos torcer. De resto, uma palavra sobre algo
do que não se há como fugir: sim, é fato, este que vos traz esta cobertura aqui,
desde a criação da Cinética (que entrou no ar justamente com a cobertura de Cannes
em 2006 – portanto, feliz aniversário, Cinética!), terá seu primeiro longa-metragem,
No Meu Lugar, exibido no Festival de Cannes deste ano. Motivo óbvio de
alegria, este fato porém não será mais noticiado por aqui – porque, afinal, “cabotino”
ainda tem um significado. No entanto, claro que mal ou bem terá influência na
cobertura, já que a agenda estará um pouco mais apertada – mas, já fica o bom
aviso de que, programação diária montada, nenhum dos incontornáveis precisará
ser contornado. Então, como dizem os franceses, “Bon festival!” para todos nós. *
* * Up – Altas Aventuras (Up), de Pete Docter (EUA,
2009) – Filme de abertura No meio de um festival que se presta
até um pouco excessivamente ao culto do “cinema de autor”, a escolha do filme
de abertura deste ano é bastante curiosa. Não apenas por se tratar de uma animação,
nem muito menos por ser um filme em 3D (embora ambos tenham significados fortes
pro mercado), mas principalmente por ser um filme de “produtora”. Afinal, a partir
do trabalho começado por John Lasseter, a verdade é que a Pixar hoje é o estúdio
que verdadeiramente possui uma assinatura para além dos seus autores, e isso é
uma questão muito curiosa de ver recompensada por aqui. Lasseter, Andrew Stanton
ou Pete Docter, não parece importar tanto quem dirige os filmes – importa que
é um filme “Pixar” – como um dia já fez diferença nos grandes estúdios saber se
era um filme RKO ou Metro, o que já dizia algo sobre o filme, mas hoje em dia
não mais. O
pior elogio que se pode fazer a Up é também o mais indiscutível: é de longe
o melhor filme de abertura que Cannes exibe em muitos anos. O que, se lembramos
que refere-se a uma série recente que, retrospectivamente, nos deu Ensaio sobre
a Cegueira, My Blueberry Nights, Código Da Vinci e Lemming,
não significa lá muita coisa – e Up merece mais atenção do que isso. Começa
com quinze dos melhores minutos que se vê há algum tempo em inícios de filmes,
primeiro com uma piscadinha de olho para o uso do 3D (numa sala de cinema que
passa um cinejornal em PB) e seu efeito com o espectador (o menininho coloca um
par de óculos dentro do cinema); e em seguida com uma longa sequência musical
(ou melhor, sem palavras) que leva um romance juvenil até a viuvez com uma capacidade
de misturar emoção e síntese narrativa absolutamente brilhante. Até
este momento, Up parece que vai se utilizar do moderno 3D numa das suas
possibilidades (talvez a mais específica para a animação): a de, ao dar tridimensionalidade
àquilo que é bidimensional, nos permitir “habitar” de fato o espaço da tela (e
que seja uma casa o centro do filme, e deste começo, tanto melhor para a metáfora).
Só que isso também empresta um realismo que, no final das contas, pode resultar
bastante redutor frente a este que é um dos grandes poderes naturais do cinema
animado: o da abstração completa. É aí que Up mostra toda sua inteligência:
ao fim de uma seqüência realista ao extremo (onde não falamos apenas de sensorialidade
e naturalismo de desenho, mas também de tema, com a dureza de uma “contemporaneidade”
sufocando o personagem idoso), ele indica que a entrada em cena dos balões de
ar será, de fato, o índice da suspensão total e absoluta de qualquer realidade
no filme. É como se Docter e a Pixar dissessem: “OK, mostramos onde poderíamos
levar vocês, mas o que nos interessa é outra coisa totalmente”. Daí
em diante, o filme mergulhará de vez no “espírito de aventura” (expressão
importantíssima e cheia de sentidos no filme), com uma radicalidade deliciosa
de acompanhar. Certamente não é por acaso que o filme faz uma referência direta
a Star Wars (dentro do filme, discretamente – nada do “estou referenciando”
para vocês verem como somos cool dos filmes da Dreamworks) e outra ao Spielberg
dos filmes de Indiana Jones, porque existe alguma coisa aqui que faz pensar
num cinema de aventuras desejado com uma boa dose de nostalgia (sentimento que,
aliás, já dominava os filmes de Lucas e Spielberg), não a nostalgia do passado
como tempo melhor (o filme, aliás, afirma bem o contrário), mas a nostalgia de
um cinema mais livre, talvez. Claro que, em se tratando, ao fim e ao cabo, de
um filme infantil, há um desejo onipresente de moral e mensagem, mas bem à moda
da Pixar, ela não vem mastigada nem afirmada, e mesmo quando bastante clara nos
atos, não deixa de incluir sentimentos bastante opostos (o elogio do banal, por
exemplo, no meio da maior das aventuras). Um belo filme, que se é muito melhor
pelo que faz sentir (no uso não só do 3D, mas do cinema em geral – tempos de cena,
composição de quadro, cores, superposição de distâncias) do que pelo que faz pensar,
só nos faz ter vontade de dizer: muito melhor assim. * *
* Ching Feng Chen Zui De Ye Wan (Spring Fever),
de Lou Ye (Hong Kong/França, 2009) – Competição Não
é preciso ser muito esperto para entender que um filme que começa com dois personagens
“à ponto de bala” para se pegarem (o que acabam fazendo numa cena de sexo gay
em posição pouco explorada de maneira tão gráfica no cinema – num “papai-papai”,
digamos) e que termina bem perto de uma cena de aplicação de tatuagem é um filme
que quer pegar os seus personagens de perto e tratar, em suma, de pele. Mas se
a frase acima fala bastante dos interesses, também fala dos limites do filme de
Lou Ye – especialmente no que se refere ao “não precisa ser muito esperto”. Isso
porque embora mantenha a atenção (sensorial e racional) por um bom tempo de sua
projeção na medida em que engendra uma espécie de ciranda drummondiana (com toques
homosexuais), Spring Fever vai se esvaziando um tanto quando percebemos
que deseja ir pouco além desta afirmação da vida como algo que gira em torno de
impulsos pouco compreensíveis da carne e do sangue, os quais por mais esforço
que façamos tendem a se manter não resolvidos. Não que isso
seja pouco como projeto, mas resta o problema de como afirmar este sentimento
em forma de cinema, e é aí ao fim e ao cabo que Lou Ye se atrapalha – ou melhor,
se resolve de maneira por demais óbvia. Seja esteticamente pelos jump cuts
constantes, a câmera na mão absoluta ou principalmente uma opção por um digital
hipermarcado pelas suas impossibilidades frente a ausência de iluminação (ou seja,
um tipo de “granulado digital” exagerado), seja na opção pelos vários planos de
deambulação sem rumo ou pelas cenas de “comunhão carnal” (sexual ou não – inclusive
com uma que se passa num karaokê), seja pela sensação constante de tragédia que
virá (e vem) e será superada não sem deixar marcas, tudo parece por demais visto
aqui. Enquanto não percebemos que sua ambição vai pouco mais longe do que isso,
Lou Ye consegue nos manter próximos, mas aos poucos vai nos perdendo por excessos
como o do uso do celular como ferramente que aproxima e afasta o tempo todo. Ao
ponto de que, quando chega ao final que “explica” seu título vindo de uma citação
de uma poeta de 1923 sobre uma imagem geral da cidade (ou seja: o drama não é
só deles, é de todos nós, desde sempre), não podemos de todo fugir de uma sensação
um pouco frustrante, algo semelhante a um sonoro “jura?”. Maio
de 2009
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