in loco
Dia 10: Tudo em família - ou não (Famille Wolberg, À Deriva, Dogtooth, Morrer Como um Homem, Tale in the Darkness)
por Eduardo Valente

La Famille Wolberg, de Axelle Ropert (França/Bélgica, 2009) – Quinzena dos Realizadores
À Deriva, de Heitor Dhalia (Brasil/EUA, 2009) – Un Certain Regard
Dogtooth (Kynodontas), de Yorgos Lanthimos (Grécia, 2009) – Un Certain Regard

Dentre todos os subgêneros do cinema contemporâneo, é difícil pensar num que tenha sido mais explorado, especialmente entre os chamados “filmes de festival”, do que o da família disfuncional. Por isso mesmo, ler a sinopse de La Famille Wolberg certamente desanima o espectador – quase na mesma proporção em que, ao final da projeção, nos encontramos entre maravilhados e confusos tentando entender de que forma Axelle Ropert, sem qualquer grande golpe de originalidade (que geralmente resultam forçados) consegue retirar da situação e da sua narrativa uma tal potência, força e sentimento que nos fazem sentir que estamos vendo pela primeira vez uma história de pais que estão em crise no casamento que tem efeito direto nos filhos e outros familiares, expondo as dificuldades de lidar com coisas como os impulsos sexuais, a transmissão pais-filhos, o medo e os efeitos da morte.

Claro que no começo seu filme nos faz pensar em alguns outros que trilharam este caminho, e tememos excessivas influências da linha (ampla) que incorpora elementos de um Wes Anderson ou de um Arnaud Despleschin, os cineastas que mais perto costumam chegar de uma certa condescendência com o humano na questão do “somos cheios de defeitos, mas somos bonitos até por isso”. Também pensamos um pouco em Serge Bozon, cineasta francês do qual Ropert co-escreveu os roteiros, especialmente pelo prazer em usar elementos deslocados, como a música dos anos 60 (aqui apenas canções de soul music). Mas logo vamos deixando de lado estas naturais aproximações, porque Ropert mostra que tem um olhar bastante firme e pessoal (capturado em incrível fotografia scope por Celine Bozon, irmã e fotógrafa do irmão Serge), marcado principalmente por um trabalho de atores de precisão notável e pela capacidade de dar verdade cênica à frase que melhor descreve o filme (“je t’aime, mais tu me fais souffrir”), sem nenhuma gota de auto-comiseração, exploitation ou condescendência. É impressionante como o tom de cada cena parece sempre preciso, a duração idem.

De fato, há no filme de Ropert dois grandes mistérios (aos quais a única resposta possível será sempre “talento”): um, esta capacidade de soar tão único em meio ao tão comum; e outro, que certamente deveria ser estudado pela maior parte dos cineastas presentes no festival deste ano, que é como atingir este resultado em apenas uma hora e quinze de filme. Pois nesta duração, que cada vez mais parece ser a de um curta-metragem num ano em que os filmes de duas horas e meia se tornaram comuns, e os de duas horas e pouco nada mais do que a norma, Ropert constrói um universo familiar cheio de nuances, o qual sentimos habitar da forma mais completa. É claro que ela sabe que, para fazê-lo, importa muito menos que consigamos entender tudo e muito mais que saibamos que existe muito ali que não entenderemos jamais. Mas ambos os caminhos são arriscados: entre a obviedade banal e o hermetismo autista, a fronteira é curta, e poucos filmes na história recente do gênero conseguem traçar um trajeto tão preciso nesta linha.

É esta nada desprezível barreira que o novo filme de Heitor Dhalia tem dificuldades de ultrapassar ao propor uma narrativa de uma vida conjugal em decadência, misturando-a com um outro subgênero hiper-explorado (não apenas) recentemente, o da passagem da infância para a vida adulta filmada pelos olhos de uma adolescente. Dhalia se propõe este mesmo tipo de olhar generoso frente a este momento (algo um tanto surpreendente, frente a Nina ou Cheiro do Ralo, diga-se), que evita o julgamento entre certos e errados e busca afirmar a falibilidade da nossa capacidade mesmo de viver e enxergar estes momentos com qualquer distância. No entanto, sua mise-en-scène parece tomar todas as decisões possíveis para impedir que esta família específica ganhe vida aos nossos olhos para além dos limites dos estereótipos que cercam a situação. A distância começa a se impor pela escolha da câmera de transitar entre o hiperativo e os excessos das convenções contemporâneas de um certo “cinema sensorial” (desfocados constantes, imagens de mãos que acariciam superfícies, cabelos que balançam ao vento, etc), complementada pela montagem que não permite que os planos atinjam uma real sensação de presença na cena, numa estrutura onde quase nenhuma seqüência do filme se permite ultrapassar dois minutos de duração.

Não ajudam a superar esta sensação de não-habitação a música por demais presente e significativa, e o trabalho em hiperestetizados tons nostálgicos da direção de arte, figurinos e fotografia, que dá à localização da história nos anos 80 (algo que até faz sentido historicamente) um ar de abstração bastante estranho para um filme que se propõe bem fincado com os pés na terra (ou areia) do drama dos seus personagens. Com isso, ao contrário do que acontece num cinema como o de Lucrecia Martel (claramente uma influência aqui), nenhuma situação ganha real peso a partir destes mesmos personagens, que apenas parecem existir para nós a partir de tantos outros que já vimos envolvidos em tramas semelhantes. E é por isso que, mesmo com essa radical mudança aparente de pressupostos frente ao cinema e aos personagens, À Deriva não se distancia assim dos dois filmes anteriores de Dhalia, marcados pelo pastiche e a paródia de uma imagem tipicamente publicitária: mais uma vez, nos vemos frente a um cinema que, almejando a profundidade (não no sentido intelectual, que nem precisaria, mas dos personagens mesmo) acaba atingindo a superfície (lembrando sempre que há cinemas fascinantes feitos sobre e na superfície, quando a intenção é esta) – no que é curioso pensar que a imagem que abre e fecha o filme acaba sendo bastante premonitória.

Dogtooth escolhe de saída a radicalidade: desde o primeiro plano, em que um gravador K7 anuncia significados distintos para palavras, fica claro que o filme afirma uma espécie de "universo paralelo" que funciona dentro da casa onde mora (ou melhor, se refugia) a família que protagoniza essa história. De fato, trata-se de um filme que propõe como protagonista a família, não apenas disfuncional, mas propondo uma funcionalidade outra, baseada na alienação do mundo e na dominação alheia. Até aí, para além de nos lembrar de um A Vila ensandecido, o filme poderia resultar interessante, até por afirmar o cinema como este lugar onde novas regras podem ser propostas, onde um universo novo pode aparecer do zero. No entanto, logo fica claro que para o cineasta grego Yorgos Lanthimos esta perspectiva não interessa de forma alguma que não seja refastelar-se no bizarro, mais especificamente no que de mais doentio pode resultar dessa reação. Não por acaso, ao contrário de Shyamalan, embora ambos os filmes se desenvolvam naturalmente rumo ao desfacelamento dessa relação de poder, aqui isso só pode se dar pela tragédia e, portanto, pela chance do realizador esmagar com seus dedos na câmera estes insetos que ocupam o lugar de personagens na tela.

* * *

Morrer Como Um Homem, de João Pedro Rodrigues (Portugal/França, 2009) – Un Certain Regard
Tale in the Darkness (Skazka pro Temnotu), de Nikolay Khomeriki (Rússia, 2009) – Un Certain Regard

Quando falamos na família disfuncional no cinema contemporâneo acaba sendo inevitável pensarmos em um outro tema próximo, o das “novas famílias” – entre as quais certamente a família de mulheres, com direito a pai travesti, do Tudo Sobre Minha Mãe de Almodóvar, se coloca como uma espécie de marco importante. É em torno de uma unidade parecida com esta que se constrói o novo filme de João Pedro Rodrigues, cineasta que já havíamos visto explorar as pulsões sexuais desviantes em seus anteriores O Fantasma e Odete. Aqui, Rodrigues se dedica à história de Tonia (inspirado por Tonia Carrero, segundo o próprio personagem no filme), um travesti de meia-idade que convive tanto com seu namorado pós-adolescente quanto com as idas e vindas de um filho da época de adolescência e das “amigas” da sua vida de cantora em uma boate de drag queens. Mas, se inegavelmente há no filme o sentimento de uma espécie de família que se estrutura a partir e em torno de Tonia, o interesse de Rodrigues é menos a construção e as possibilidades desta existência em grupo do que os de dilemas e sofrimentos (inclusive os de ordem familiar) vividos por Tonia em sua condição de entre-mundos, de entre-gêneros.

Claro que em se tratando de Rodrigues, a maneira de filmar este tema que poderia ser o de um documentário ou de uma ficção de fundo “sócio-cultural”, por assim dizer, ganhará uma poética e um tempo próprios, capazes de afirmar uma determinada política dos (des)afetos pela sua maneira de estruturar o filme. Neste exercício, é fato que Rodrigues atinge resultados mais efetivos quão menos “narrativo” ele parece ser: sua fotografia em 1:33 cria enquadramentos altamente pictóricos a partir de uma iluminação no geral bastante naturalista (sendo que a grande exceção a esta “regra” resulta num dos planos mais fortes vistos no Festival, que ilustra este parágrafo). Por isso mesmo, o exato começo do filme (com um passeio de dois soldados numa floresta escura, com um final nada esperado) e sua última hora são os seus momentos de maior força, com uma sensação de um certo delírio hiperrealista. No resto da duração, o filme é de grande justeza e potência, mas não consegue (pelo menos não nesta primeira visão em meio ao ritmo intenso do Festival) nos cativar da mesma maneira.

Esta talvez seja a sensação que temos em toda a projeção do filme de Nikolay Khomeriki, jovem cineasta russo que exibe um filme pela segunda vez na mostra Un Certain Regard. Como era o caso do seu primeiro trabalho, Tale in the Darkness inegavelmente possui um olhar pessoal bastante próprio para o cinema, especialmente no que se refere à montagem de um encadeamento bastante peculiar que recusa frontalmente as facilidades tanto de uma narrativa clássica pelas ferramentas mais usuais (protagonistas de objetivos firmes, situações a serem resolvidas), quanto esbaldar-se num cinema sensorial que pode ser igualmente formatado (seja através dos tempos extendidos ao extremo, seja da fotografia estilizada). Seus filmes têm uma espécie de sentimento cinza que não se refere apenas às cores do céu ou dos prédios de uma Rússia triste, empobrecida, mas também dos tempos e sentimentos de seus personagens. São filmes que parecem realmente acreditar que causar um desconforto (estético, narrativo) no espectador é o que mais permite que ele se aproxime, em alguma instância, do que passam seus personagens.

E a verdade é que a personagem principal aqui passa por muito pouco: apenas acompanhamos alguns dias de sua rotina, tanto no trabalho (como uma policial que cuida de casos de assistência social, numa prática eminentemente burocrática), quanto na vida pessoal (marcada por aulas de dança em que não tem um par, ou pelo contato fortuito com um homem no meio da rua). Em ambas as instâncias, embora Khomeriki apele para uma série de imagens fáceis de solidão (como a citada dança sem par) que poderiam até limitar o filme a uma apreensão monotemática da sociedade russa, existe algo que acontece nas frestas das imagens que parece garantir nosso interesse. Mais do que solidão, o filme nos marca com um verdadeiro sentido de agressividade do qual resulta um impedimento real de conseguir lidar com o mundo através da sensibilidade usual (onde a personagem ser policial revela-se uma questão essencial do filme). É um filme que, se não conquista de todo (e talvez nem queira), tem decerto a marca de um olhar bem específico do mundo e do cinema.

Maio de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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