in loco
Dia 2: Orientais fantásticos (Thirst; Air Doll); Fish Tank
por Eduardo Valente

Thirst (Bak-Jwi), de Park Chan-wook (Coréia do Sul/EUA, 2009) – Competição
Air Doll (Kuki Ningyo), de Hirokzu Kore-eda (Japão, 2009) – Un Certain Regard

Esta quinta teve sessões de dois filmes orientais que lidam de uma maneira ou de outra (e vale dizer que são duas maneiras enormemente diferentes) com a idéia da irrupção do fantástico – algo um pouco inusitado na obra dos cineastas responsáveis por eles, tão inusitado talvez quanto o filme de Kyoshi Kurosawa do ano passado não ter nenhum elemento fantástico (strictu sensu).

Na competição, o coreano Park Chan-wook apresentou o seu absolutamente excêntrico “filme de vampiro” Thirst. Deixando de lado o sadismo um tanto moralista de seus trabalhos mais recentes, Park mergulha aqui na história de um padre que se torna um vampiro pelo contato com um sangue infectado. A julgar pelo material de imprensa distribuído pelos responsáveis pelo filme, esta escolha implica numa discussão profunda de temas relacionados à religiosidade, responsabilidade e questões éticas – no entanto, parece mais sensato deixar isso tudo de lado e perceber o que o filme tem de mais interessante que é a mistura de uma frontalidade radical com os fenômenos físicos (secreções, fraturas, perfurações, etc, mas também o sexo – há no filme pelo menos uma longuíssima cena bem forte, entre outras), com um completo delírio de roteiro e de lógica narrativa, numa escalada espiral de insanidade absolutamente impressionante pelo descaramento mesmo de Park em explorar mais e mais o gore e o incômodo que seus personagens nos passam. Ao fim e ao cabo, a verdade é que embora Park ainda se perca aqui e ali em alguns de seus já conhecidos vícios (um abuso de certos exercícios bastante vãos de câmera e de efeitos digitais, por exemplo), Thirst talvez seja o mais bem resolvido (por mais estranha que soe a expressão para um filme que é, antes de mais nada, uma bagunça completa) entre os últimos filmes do diretor, talvez pelo simples fato do filme que vemos na tela estar à altura de suas ambições (embora não das do material de imprensa).

É exatamente o contrário do que acontece no filme de Hirokazu Kore-eda que, ao abraçar um elemento fantástico (uma boneca inflável que ganha vida e passa a questionar sua existência), se revela bastante fora do seu ambiente. Kore-eda parece nunca se dar conta ao longo de toda a duração de seu filme (que, aliás, dura bem uns 40 minutos mais do que sua história poderia permitir) justamente do quanto há de ridículo na sua proposta – não havendo aí um julgamento de valor, porque o ridículo pode ser grande cinema. Pelo contrário, o filme de Kore-eda parece o tempo todo se balançar entre duas características que dificilmente se dão bem: por um lado, uma ingenuidade absoluta que está nas intenções e na base do roteiro (por exemplo, a boneca inflável empresta literalmente um “sopro de vida” aos outros personagens ao morrer desinflando-se), mas tudo isso embrulhado numa forma auto-importante de “cinema de arte” marcado por constantes travellings e usos da trilha sonora que parecem precisar gritar a cada plano a “sensibilidade especial” que o filme propõe. Na contabilidade do dia fantástico, portanto, antes a maluquice de Park do que a seriedade de Kore-eda.

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Fish Tank, de Andrea Arnold (Inglaterra, 2009) – Competição

Em pleno território de Cannes, é impossível não se pensar em Gus Van Sant ou nos irmãos Dardenne logo que começa Fish Tank. No primeiro, principalmente pela curiosa escolha do formato 4:3 (tela quadrada) para contar essa história de uma jovem bem de perto dela (e aqui e ali surgem uma câmera lenta que faz pensar em Paranoid Park, assim como planos do céu – diferentes dos de Van Sant, mas também uma lembrança); nos segundos, claro, porque hoje já é quase impossível não pensar nos irmãos belgas nessa onipresença da decupagem radicalizada da câmera na mão perto da personagem que a segue em qualquer velocidade que ela corra, os cortes no meio das cenas, etc. Não chega a ser extremamente animador quando começamos um filme pensando em outros autores, mas vá lá que seja, são autores fortes e cuja combinação num filme pode até render algo de inesperado. Infelizmente, porém, na medida em que Fish Tank vai mostrando suas verdadeiras intenções, uma e outra influência estética vão ficando para trás como matrizes realmente significantes para além de uma certa emulação, e Arnold vai nos fazendo pensar cada vez mais naqueles que se revelam seus verdadeiros “mestres”.

Por um lado, o Mike Leigh dos primeiros anos – ainda que adaptado, é claro, do final dos anos 70 para o século XXI: um mesmo desejo de inspecionar uma certa realidade de uma classe social trabalhadora inglesa, através de um retrato “nu e cru” de relações humanas que, principalmente no seio da família, flerta o tempo todo com a crueldade e/ou a disfunção absoluta. Mas, mais adiante fica claro que o papel que Lars Von Trier desempenhou como produtor do primeiro longa de Arnold (Red Road) acaba trazendo sua presença para cá como influência, bem mais até do que naquele primeiro filme. Só que do manipulador frio e calculista dos destinos de seus personagens que é Von Trier, Arnold herda o impulso mas não a honestidade, escondendo por trás de um realismo dardenniano com toques de deambulações vansantianos o que, ao fim e ao cabo, é pouco mais do que um conto moralista extremamente previsível, que ao fim assume mesmo um formato quase hollywoodiano (em termos de arco narrativo) de “trajeto positivo” onde cada personagem joga um papel bem claro e definido de função para que a personagem atinja o conhecimento e a superação que o filme espera dela, até como alívio do espectador bem comportado. Claro que cada leitor pode fazer da equação o seu próprio resultado de acordo com seu gosto, mas na conta deste que aqui escreve, algo que começa como Van Sant + Dardenne e termina como Mike Leigh X Von Trier (menos originalidade e honestidade), não pode ter ido muito bem.

Maio de 2009

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