in loco Dia
3: Dois grandes filmes: Police, Adjective; Ne Change Rien por
Eduardo Valente Um dos assuntos recorrentes
desde que comecei a cobrir Cannes é a insatisfação que nós mesmos acabamos sentindo
com aquilo que produzimos daqui. Entre cansaço e correria entre filmes, é mais
do que admitido por nós que apenas enviamos primeiras impressões, algo que serve
um pouco como mensagens na garrafa dando as notícias iniciais da vida de alguns
filmes dos quais ainda precisaremos (todos) falar muito mais adiante. Já aconteceu
até de rever filmes aqui mesmo (só numa vez que eu me lembre pelo completo prazer
de ver duas vezes seguida um filme – Last Days; nas outras porque que senti
que o cansaço tinha sido tal na sessão que eu não tinha visto de verdade o filme),
mas o mais normal é mesmo ter que passar um primeiro olhar, e ainda assim um corrido
com pouco tempo pra se deter mesmo em análises e muito mais para reagir com as
impressões mais gerais. Por isso, quando releio rápido o que escrevo sinto como
faltam nuances (não pude falar no texto de Fish Tank, por exemplo, do belo
trabalho do ator Michael Fassbender, que é tão bom que o filme se usa do seu carisma
impressionante para fazer dele um uso bem calhorda, dramaticamente falando), especialmente
sobre os filmes que não nos impressionam. Mas existe o oposto também, que é a
sensação de que, frente a filmes que nos impressionam bastante, não vai haver
tempo de fato para se dedicar a eles como merecem. Acabam sendo, também, generalizações,
ainda que positivas. No entanto, mesmo que estas nos deixem mais insatisfeitos
ainda, é um problema bem menor – uma vez que pelo menos tivemos um bom dia de
ver filmes. E é exatamente o que aconteceu hoje: apenas dois filmes vistos, mas
que valeram bem mais do que o dobro dos quatro vistos entre anteontem de noite
e ontem. Por isso, vamos a eles, tentando dar um mínimo de seu devido valor.
*
* * Police, Adjective (Politist, Adjectiv),
de Corneliu Porumboiu (Romênia, 2009) – Un Certain Regard O
título do novo filme de Porumboiu (em português: Policial, Adjetivo), que
ganhou a Camera D’Or aqui em 2006 com A Leste de Bucareste, é extremamente
preciso na definição do que propõe o filme: ao acompanhar a história de Cristi,
um policial jovem e recém-casado a quem é proposto uma missão banal (acompanhar
um jovem que pode ou não ser um pequeno traficante de drogas leves), interessa
muito pouco ao filme a idéia de policial como sujeito (ou seja, aquele que age),
e sim como uma qualificação dada a alguém, que está acima dos seus próprios desejos
ou meios de se diferenciar dela. Cristi é policial, portanto, e não um policial
ou o policial: ele tenta fugir do que isso significa, mas se encontra mais e mais
embrulhado num emaranhado de obrigações, expectativas, burocracias e, principalmente,
leis e definições (e a maneira como o formato de escrita de dicionário do título
será ainda mais justificado numa de suas seqüências finais é absolutamente brilhante). O
mais impressionante no filme é que isso tudo que eu descrevi acima, que poderia
ser pouco mais do que uma série de conceitos bonitos numa página de papel mas
ineficazes como cinema, está na tela com uma força, uma capacidade de ir direto
aos pontos realmente firme. Porumboiu filma o seu protagonista com uma câmera
que recusa o recurso fácil e contemporâneo da câmera na mão para imprimir “realismo”,
apelando para uma série de planos abertos, marcadamente no tripé, que acompanham
o personagem e esquadrinham um espaço em torno dele. Isso é especialmente importante
porque ele está numa missão de “tocaia”, e aparecerá (e nos será apresentado mesmo)
seguindo uma série de personagens ou esperando sua próxima ação. Por isso, a relação
do filme entre fora e dentro do quadro e entre profundidade de espaços é extremamente
essencial de estar bem resolvida – o que ele consegue aqui tanto com grande inteligência
como aparente simplicidade. Para
além dos enquadramentos, Porumboiu usa a idéia do plano-sequência com enorme sabedoria:
se esticar o tempo de uma ação é primordial para um personagem que está em espera,
seria fácil cair na tentação do plano-sequência auto-afirmativo, como muleta de
linguagem que poderia ir se esvaziando na medida em que fosse hiperusada. Não
é o caso, pois o diretor escolhe com muita parcimônia as três ou quatro situações
onde de fato o tempo extendido radicalmente faz-se mais potente, permitindo que
o personagem e sua relação com o mundo à sua volta (tanto a mulher, em casa; como
a vítima de sua tocaia; como o delegado-chefe na delegacia) se tornem o mais contundentes
possível para seguir com este que é, no fundo, o retrato de uma desumanização
pelo sistema (tema onipresente deste novo cinema romeno?). Por isso mesmo, o plano
final de Police, Adjective é tão brilhante: por completar esse trajeto
com total coerência e firmeza. Para falar deste, assim como de muitos outros momentos
e planos, só mesmo voltando ao filme no futuro, com mais detalhes numa situação
em que o filme esteja disponível para ser visto pelos leitores. Por enquanto fica
a afirmação de que este filme talvez seja o melhor dentre estes romenos todos
que vimos desde 2005. * * * Ne Change
Rien, de Pedro Costa (Portugal/França, 2009) – Quinzena dos Realizadores Existe
uma pergunta que volta e meia aparece em textos críticos: o que é o essencial
do cinema (ou por outra, o que é o cinema)? Claro que uma pergunta genérica e
abrangente como esta permite inúmeras respostas “certas”, ao gosto do freguês,
mas o fato é que (pelo menos após a inserção do cinema sonoro), ninguém poderá
discordar que o essencial do cinema é: luz e som. Pois parece mesmo que, neste
filme, Pedro Costa (alguém cujo cinema já não é nada estranho à associação com
a palavra “essencial”) se dedica a exatamente esta missão: filmar a luz e o som,
quase em estado bruto. E é para cumprir com essa missão tão simples quanto impossível,
que ele se utilizará (por mais que ele prefira dizer, como hoje na entrevista
depois da sessão, que o seu cinema é que está sempre a serviço de algo) da atriz
Jeanne Balibar, no exercício de sua ocupação paralela como cantora. Para
ir mais adiante no filme, é interessante voltar à entrevista de Costa dois anos
atrás, quando perguntando sobre outros filmes que o inspiravam ou obras que gostaria
de realizar falou que gostaria de adaptar para o cinema o disco “Innervisions”,
de Stevie Wonder. Bem entendido: mais do que um desejo real ou um projeto, Costa
brincava para dizer que algumas das obras que mais o inspiram nada têm a ver com
cinema nem com a literatura (fonte comum de adaptações para o cinema). Pois Ne
Change Rien fecha com essa afirmação de Costa de maneira marcante, porque
se há algo que fica claro no filme é o quanto de admiração pelo ato de produzir
música existe por trás do realizador. Mais do que isso, poderíamos até dizer que
há uma sensação sincera do filme ser feito por alguém que gostaria de ser, ele
mesmo, músico, tal a devoção exibida frente ao ofício de alguém como Balibar ou
como Rodolphe Burger, parceiro desta na carreira musical. O
que Costa faz aqui é acompanhar ao longo de alguns anos (embora essa informação
entendida como tal não faça parte do filme – assim como nenhuma outra, aliás)
a relação de Balibar com a música: ensaiando e gravando com Burger e os outros
membros de sua banda; cantando e tocando num show; ensaiando e cantando numa encenação
de ópera. Este mesmo material, que usualmente termina em inúmeros formatos repetitivos
de DVD (seja o do show ou o dos “bastidores” de realização de algo), vira nas
mãos de Costa a motivação para um trabalho que parece equidistante da abstração
completa (algo de que, afinal, a música se aproxima com naturalidade) e da mais
física e concreta matéria (pois a música precisa ser produzida por instrumentos,
cordas vocais, do esforço de pessoas através de inúmeras repetições). No
campo da imagem, Costa aproveita-se dos meios absolutamente restritos de sua realização
(como ele disse na entrevista, este é um filme feito por quatro pessoas: ele,
Balibar, Burger e um técnico de som) para trabalhar com uma iluminação mínima
que se torna, como de hábito nos filmes dele, sofisticadíssima pela maneira de
enquadrar e posicioná-la. É através deste trabalho que o filme vira um dos mais
incríveis exercícios de claro-escuro da história do cinema (vale a hipérbole),
emprestando a cada imagem um elemento de mistério e de relação com algo desconhecido
ou invisível que acaba sendo uma representação precisa do que realizam em cena
os músicos. Dessa maneira, Costa acaba realizando aquele que é, sem dúvida e em
todos os sentidos do termo, um dos mais belos filmes sobre música jamais realizados.
Não é pouco. Maio de 2009
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