in loco
Dia 4: A solidão partilhada (Like You Know It All; Le père de mes enfants); + Taking Woodstock
por Eduardo Valente

Like You Know It All (Jal Aljido Motamyunseo), de Hong Sang-soo (Coréia do Sul, 2009) – Quinzena dos Realizadores
Le pére de mes enfants, de Mia Hansen-Love (França, 2009) – Un Certain Regard

Ontem eu falava de uma das coisas que acabamos sempre precisando repetir todos os anos, nas coberturas de Cannes (sobre o teor de primeiras impressões destes textos). Pois hoje é preciso começar com mais uma destas repetições anuais, desta vez sobre a maneira como esta forma de ver tantos filmes num mesmo dia, com tanta expectativa e concentração, acaba nos levando forçosamente a traçar paralelos entre eles, talvez mais mesmo do que eles originalmente permitissem.

No entanto, hoje não é o caso, porque de fato há algo de profundamente próximo nos filmes de Hong Sang-soo e Mia Hansen-Love (foto ao lado). Primeiro de tudo, o mais óbvio: o fato de serem filmes cujos protagonistas são pessoas que trabalham com cinema (no primeiro, um cineasta; no segundo, um produtor), algo que, mais do que apenas uma ocupação, é nos filmes parte central da intriga. Depois, pode-se falar de que são dois filmes que se passam em duas metades bem diferentes, embora absolutamente interligadas e dependentes (algo que é comum na carreira de Hong, mas que também estava presente no primeiro filme de Hansen-Love – este é o seu segundo). Mas o ponto principal é que são dois filmes absolutamente centrados nos seus personagens, nos encontros entre eles e nas trocas – sejam diálogos, ou encontros físicos. E isso faz todo sentido, afinal se Hong Sang-soo é quase sempre citado com relação ao cinema de Eric Rohmer (e este novo em especial tem algo de “conto moral”), Mia Hansen-Love declara este cineasta como uma de suas duas grandes influências (junto com Truffaut). Por isso tudo, assistir os dois filmes com bastante proximidade acaba fazendo mesmo muito sentido.

O filme de Hong é um daqueles que facilmente podem ser categorizados como uma “obra menor”, e talvez seja mesmo. Embora o humor seja um componente bastante presente no trabalho do coreano, poucas vezes vimos um filme inteiro dele tão profundamente engraçado – não sem possuir, como é comum no seu trabalho, componentes bem trágicos nesta graça. Como quase sempre também no seu cinema, temos um homem no centro da narrativa em toda a sua incapacidade de se relacionar com as mulheres à sua volta com um mínimo de tranquilidade e sucesso. Aqui, como em Conto de Cinema, esse homem é um cineasta – e é impressionante a quantidade de cruel ironia que Hong projeta nessa figura. Ironia quanto a uma série de coisas que circundam o cinema (os festivais de cinema, por exemplo, ou a relação com os mais jovens, no caso estudantes de cinema), mas principalmente ao fato mesmo do quanto ser cineasta sobrecarrega de focos profundos de insegurança e egocentrismo a vida dele.

Na entrevista ao final da sessão, Hong falou de duas coisas bem interessantes. Primeiro, o seu método de trabalhar com roteiro: ele não escreve diálogos com antecedência, preferindo ir para o set uma hora antes do trabalho começar e escrever lá mesmo, sob inspiração do local, mas também com a pressão da urgência. Segundo, ele falou que no fundo seus filmes todos tratam de um mesmo assunto que é a distância que separa todos os seres humanos, esta impossibilidade de vivenciar uma mesma experiência e sair dela com as mesmas lembranças, entendimentos, visões. Este mistério que todos nós somos uns para os outros (e que, ao mesmo tempo em que nos “força” a procurar obsessivamente conseguir superá-lo, já garante de saída o insucesso), Hong o incorpora em todas as trocas entre os personagens – mas também na trama, para impedir que o espectador tenha uma visão unificante. Por isso, há duas elipses fundamentais no filme, uma em cada parte dele, de uma maneira que nos coloca eternamente num enorme buraco negro sobre o que, afinal, aconteceu de fato.

É curioso notar que, embora no filme de Mia Hansen-Love o acontecimento central seja mostrado na tela, é justamente de um buraco negro que ele trata, e este buraco que separa todas as pessoas, a impossibilidade de realmente entender o outro, não importando quão perto ele esteja. É um filme que, assim como o de Hong, trata da experiência humana com uma frontalidade radical, onde a gentileza e a crueldade nunca surgem como dois lados de uma mesma moeda, mas como metais moldados na formação em si desta moeda. Dá vontade de explorar muito mais o filme, mas o fato é que este é um trabalho sobre o qual o quanto menos se souber mais se permitirá uma experiência potente (ainda que o primeiro filme de Hansen-Love, também exibido em Cannes, quase não tenha passado no Brasil – só no Indie). Por isso mesmo, vou me limitar a dizer que, entre suas metades, a grande diferença é que o personagem central da primeira, foco absoluto do filme, estará completamente ausente da segunda – numa estrutura que parece refletir muito sobre algo inerente ao cinema, que é essa eternização da figura na tela, mas também sua parcela etérea (ela só será eterna enquanto está na tela).

Por fim, vale dizer que este filme toca um nervo muito exposto no cinema de autor mundial neste momento (ou melhor, já há algum tempo, mas desde o começo dessa crise econômica  internacional, com muito mais força), e que por isso mesmo ressoa muito forte aqui em Cannes. Afinal, o filme fala justamente de pessoas de cinema, pessoas realmente apaixonadas pela arte do cinema e de fazer com que ela se viabilize, e lutando contra o desespero da enorme dificuldade de fazer isso com um grau alto de integridade e lealdade ao mesmo tempo que viabilizando economicamente a sua vida a partir desse trabalho. Vale notar, aliás, que a história do filme é inspirada por um produtor francês que era figura presente e importante em Cannes.

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Taking Woodstock, de Ang Lee (EUA, 2009) – Competição

Ang Lee tem dito a quem quiser ouvir que seu maior desejo ao fazer este filme é realizar uma comédia “sem cinismo”, um filme leve para se recuperar da experiência bastante forte que foi fazer Desejo e Perigo. É mais do que um direito dele, mas parece que melhor teria sido tirar umas férias mais longas, porque Taking Woodstock é um filme cujo desejo de leveza se torna bastante problemático quando acaba lidando com um assunto tão historicamente relevante como o festival de rock que dá nome ao trabalho. Isso porque embora o filme deixe claro que Lee não deseja realizar “o filme” sobre Woodstock (e inclusive afirma junto com seu roteirista-produtor James Schamus que este filme já foi feito – o documentário de Michael Wadleigh, de 1970), por outro lado também é bastante difícil comprar a versão de que trata-se de um filme sobre uma família “em torno de Woodstock”. Não porque não seja de fato isso, mas porque a forma como Lee resolve esse desejo de lidar com um drama pequeno dentro de algo tão grande resulta duplamente frustrado: no pequeno, o filme não consegue nunca sair de um esquematismo caricato nas relações do protagonista com seus pais; e no grande porque as soluções do filme para lidar com a caracterização dos hippies ou com questões como drogas são típicas de um liberalismo meio banal que, ao mesmo tempo em que deseja demonstrar carinho e respeito com o movimento não consegue ser muito mais do que (de novo, porque o termo serve muito ao filme como um todo) caricatural. Os efeitos usados para retratar uma viagem de ácido ou a retomada em “8mm” de algumas imagens, por exemplo, são francamente constrangedores. Como resultado, nem vivemos uma experiência narrativo-humana de real força no relacionamento com os personagens, nem conseguimos ignorar o fato de que o que acontece ao fundo poderia ser muito mais interessante, mas está lá apenas como um background que, como tal, não adiciona nada ao que já vimos/ouvimos/sabemos, pelo contrário.

Maio de 2009

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