in loco Dia
5: Algo do gênero (Mendoza, Audiard, To) por
Eduardo Valente Um dos temas mais pré-discutidos
sobre a seleção oficial deste ano seria a presença de um número surpreendente
de filmes de gênero (discussão que foi algo deslocada, uma vez que artigos nas
revistas diárias que circulam por Cannes consideravam para tal afirmação que o
cinema de animação ou o documentário seriam gêneros – o que, afinal, é uma enorme
bobagem). Mas, de fato, mesmo que eliminemos as sessões de meia-noite da contagem
(porque afinal elas sempre flertaram com este tipo de cinema), de fato o cinema
de gênero faz-se presente com força, mesmo na competição, lugar que durante um
bom tempo teve dificuldades em lidar com ele de maneira clara. Mas, é curioso
notar que, nesta relação com os gêneros, há os filmes que se inscrevem diretamente
em alguns deles (como já vimos Thirst na competição), enquanto outros margeiam
as fronteiras e cotejam linguagens sem assumir tão de frente a relação. Nos últimos
dois dias, só na competição houve quatro destes exemplos.
*
* * Kinatay, de Brillante Mendoza (Filipinas/França,
2009) – Competição Un Prophète, de Jacques Audiard (França, 2009) –
Competição Entre
os filmes que se aproximam do gênero com alguma relutância, Kinatay surpreende
justamente porque sua primeira metade não nos prepara de forma alguma para esta
relação. De fato, com seus planos documentais das ruas de Manila, com uma câmera
constante tremendo nas mãos, o filme de Brillante Mendoza parece muito mais interessado
em explorar um certo gênero típico dos festivais, que é esse “filme de terceiro
mundo”, que olha para as mazelas que estão nas ruas e ambientes de países como
as Filipinas e que muitas vezes parece extremamente programado para gerar um determinado
estranhamento em olhos estrangeiros – especialmente do primeiro mundo. No entanto,
na medida em que vai misturando a estes planos os personagens da ficção que realmente
é, Kinatay já começa a tornar sua forma bem mais interessante, pois a sua
mistura do individual (um casamento e a festa da família em seguida) com o coletivo
(não só os planos nas ruas, mas os desvios que toma como o do jovem que ameaça
pular do alto de uma torre de anúncios) cria um efeito realmente intrigante no
desenrolar de sua duração. No entanto, nada nos prepara para
o que acontece na segunda metade, onde a violência irrompe no filme de maneira
completamente inesperada (embora se possa talvez dizer que preparada com cuidado),
e a partir dali a narrativa se radicaliza no mais profundo e direto cinema de
horror – que tanto mais o é quanto menos “sobrenatural” será. O que é interessante
nesta história de um horror cotidiano, ainda que escondido (e que os brasileiros
não terão dificuldades de relacionar com narrativas das milícias e tráfico urbano),
é que o interesse principal de Mendoza sobre ela diz respeito ao efeito da mesma
sobre os olhos de um personagem específico, com quem o espectador é forçado a
se irmanar, mesmo que não entendendo de todo sua posição frente ao que acontece.
Nesse sentido é que a exploração de inúmeros elementos típicos do cinema de horror
(trabalho extremamente cuidadoso com o som e a trilha – algo que já tínhamos visto
em Serbis; exploração de imagens de um gore radical) não soa nem
sádica nem exploitation na relação que estabelece com uma idéia de realidade
naturalista. Sentimos o tempo todo a mão do cineasta conduzindo este universo,
nos propondo um mergulho em algo que é sim tão mais aterrador porque tão banal
e possível, mas não há o menor desejo de explorar um realismo de registro por
si. Kinatay se assume, assim, como um verdadeiro mergulho no inferno –
e neste sentido é, sensorialmente, um dos mais eficientes que eu já experimentei. É
um pouco o contrário do que acontece em Un Prophète, de Jacques Audiard.
Neste filme, já no começo há a admissão tanto de que se tratará de alguma maneira
de um mergulho no inferno, como de que esta será extremamente mediada por uma
estilização da imagem plena de alguns dos tiques de “realismo” absorvidos dentro
desta. Até aí nada demais, mas o que impede que o filme tenha uma efetiva força
é que tanto o caminho parece invertido na lógica (estilização como base, usando
de ferramentas de realismo; contra a base do realismo que vai levar à estilização),
como Audiard não parece se importar muito com o fato de que ele realmente não
tem nada de diferente a trazer para a mesa nem do realismo nem do gênero (do filme
de prisão). Então, temos lá o jovem ingênuo que descobrirá as regras que regem
uma prisão, será explorado, irá conquistando aos poucos seu espaço até domina-lo
completamente. Tudo filmado com considerável energia, competência (a notar de
fato a impressionante presença do ator principal) e sempre muita “modernidade”
(câmera o tempo todo na mão, cortes rápidos e constantes, “montagens” ao som de
rock e rap), mas que, ao final, por mais que seja competente e explore temas de
contemporaneidade inegável (a imigração africana em relação com a marginalidade,
etc) deixa na boca pouco mais do que um gosto de previsibilidade e frieza. *
* * Vengeance, de Johnnie To (Hong Kong/França, 2009)
– Competição Num outro escopo, chegamos aos filmes que assumem
de saída como parte de sua composição a filiação ao gênero, e aí claro que precisamos
falar primordialmente de Johnnie To, autor que já tanto praticou o cinema policial
(mas não só) em Hong Kong, muito antes, inclusive, de ser “aceito” neste clubinho
que é o dos festivais em sua obsessão pelo “cinema de autor”. De fato, duas vezes
ele esteve em Cannes fora de competição, nos espaços mais segregados aos filmes
de gênero, e esta é sua segunda vinda para a competição – mas, se Eleição
(o anterior) era um filme com elementos de um certo cinema violento com viés épico,
herdeiro de O Poderoso Chefão, este Vengeance é a primeira vez em
que ele aparece com um filme onde os elementos mais pulp de sua ficção
estão mais do que assumidos e em primeiro plano (ainda que, de fato, a presença
como protagonista da estrela da música francesa – e eventualmente apenas do cinema
– Johnny Halliday.certamente ajude muito na “respeitabilidade” emprestada ao filme). De
fato, se há alguma verdadeira graça (em vários dos sentidos do termo – interesse,
encanto, mas também hilariedade ou transcendência) em Vengeance, ela se
deve não só ao que já mais que sabemos (a maestria de To na criação de ambientes,
personagens e ritmos internos – seja nas cenas de ação ou nas outras), mas principalmente
a uma frontalidade bem radical na sua relação com as personas que seus atores
encarnam, criando personagens absoluta e maravilhosamente bidimensionais, que
interpretam cenas com uma enorme parte de puro e simples delírio de cinema – algo
que, afinal, já começa com o título do filme, de uma síntese pura e absoluta.
É verdade que To adiciona à questão da vingança um elemento novo e inesperado
(o que resta do desejo de vingança quando não existe memória?), mas certamente
não será de sua exploração do tema que Vengeance tira seu maior interesse.
Pelo contrário, é mesmo da mise-en-scène de determinadas cenas isoladas,
do prazer em “pôr em cena”: principalmente o piquenique noturno que vira tiroteio
na floresta, mas também a volta à cena do crime original do filme que vira montagem
paralela com o flashback numa exploração de espaços que, como To faz tão bem,
passa muito além da simples competência em localizar os personagens e levar até
o fim as situações. Maio de 2009
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