in loco
Dia 7: Cinema, meu amor (Almodóvar, Tarantino)
por Eduardo Valente

Antes de mais nada, uma breve desculpa aos leitores assíduos pela falta de atualização nestes dias, mas vocês podem imaginar os motivos. Quem não tiver uma imaginação muito fértil pode olhar aqui para ter alguma idéia. Mas foram dias com muitos filmes de interesse, entre os fantásticos, os tortos e os todo errados mesmo, só que a reflexão sobre eles foi meio sendo atropelada tanto pelos compromissos, quanto pelo cansaço e correria mesmo de todos os dias. Por isso, e em se tratando de alguns dos filmes mais importantes do Festival e do ano, vale dizer que vou tentar certamente rever alguns deles assim que possível e voltar a eles com toda a calma que eles precisam assim que der. No meio tempo, seguem aqui embaixo alguns primeiros olhares, mais “expelidos” do que pensados.

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Los Abrazos Rotos, de Pedro Almodóvar (Espanha, 2009) – Competição
Inglourious Basterds, de Quentin Tarantino (EUA/Alemanha, 2009) – Competição

A gente sabe que os compromissos para determinar qual filme passa qual dia (exigências de agenda de diretores e estrelas, melhor dia de acordo com o entendimento de cada produção/distribuidor, escolhas de vaidade dependendo dos dias da semana e do momento do festival – começo, fim, etc) em muito devem ultrapassar desejos efetivamente “curatoriais” por conta do Festival de Cannes e seu diretor-geral, no entanto é inegável que todo ano (e neste em especial) há certos trajetos que os filmes parecem ir traçando quanto a determinadas questões do cinema (contemporâneo, principalmente) que é difícil de pensar que sejam só por conta de coincidências. Por isso, assim como já tivemos que passar por uma certa idéia de realismo no cinema de hoje e depois sobre as fronteiras do cinema de gênero, a exibição seguida dos novos filmes de Almodóvar e Tarantino nos fizeram obrigatoriamente mergulhar em questões sobre o cinema, apostando na sua potência como criador de um universo que pode ser tão ou mais forte que o do mundo fora dele. São filmes que transbordam uma paixão intensa de dois artistas pelo seu meio de expressão – algo que, por si só, já garantiria um engajamento muito forte daqueles que partilham mesmo que de uma pequena parte deste sentimento.

No filme de Almodóvar, Penélope Cruz interpreta uma das mais belas “personagens metalingüísticas” já vistas no cinema. Se em Volver a atriz já assumia uma dimensão “maior-que-a-vida” como aquela mãe/mulher/filha inspirada em certas presenças do cinema italiano (principalmente Anna Magnani), mas ainda mantinha dentro da narrativa um mínimo de “presença terrena”, neste Los Abrazos Rotos ela é pura imagem – não por acaso, o filme começa com uma imagem “roubada” da câmera enquanto uma stand-in é substituída pela atriz. Toda a (rocambolesca) trama do filme gira em torno desta mulher cuja imagem obceca e hipnotiza dois homens, sendo um deles um cineasta que, depois da morte dela, fica cego – como se fosse impossível continuar vendo quando ela não mais está no mundo. O outro, embora não seja cineasta (longe disso), para não perdê-la dispõe-se não só a produzir um filme dela como atriz, como também exige que a imagem dela durante as filmagens seja constantemente capturada por uma câmera de vídeo, a cujas imagens ele assiste em casa toda noite. Também não é nenhum acaso que, no filme que vai sendo realizado dentro de Abrazos Rotos, Penélope Cruz retome imagens clássicas de outros ícones femininos no cinema: Marilyn Monroe, a Audrey Hepburn de Bonequinha de Luxo – nunca ela parece existir de outra forma que não a de “personagem de cinema”. Ao final, o dramático protagonista de Almodóvar, um cineasta cego que hoje se limita a escrever roteiros sob encomenda, só vai reencontrar a razão de viver e criar quando descobre que pode remontar seu último filme e finalmente dar alguma paz à sua história com a imagem daquela mulher.

Se é impossível não se comover com a paixão que emana do novo filme de Almodóvar pelo cinema e pelo ato de realizar filmes, também não dá para não perceber que este parece um filme bastante torto dentro da sua carreira recente – e, nesse sentido, é curioso pensar que ele se junta de alguma maneira a Má Educação, o outro recente filme dele que lidava diretamente com cineastas e o mundo de fazer filmes. O fato é que em ambos fica uma sensação de um Almodóvar menos gutural que, se exibe o mesmo domínio de linguagem e construções narrativas que tem demonstrado filme após filme, não atinge os ápices de sentimento de um Fale Com Ela, Tudo Sobre Minha Mãe ou Volver. Em grande parte isso parece se dar por um excesso de vontade de entrelaçar situações e sentidos, numa autoreflexão sobre o cinema que, curiosamente, parece torná-lo um pouco menos potente por si mesmo. É um filme em que, se admiramos a construção de várias imagens e a escritura de diálogos, nos mantemos a alguma distância dos personagens e sua história – algo que, ao contrário do que acontece com alguns outros cineastas, não parece ser um desejo de Almodóvar. Apreciamos, sempre, mas não entramos de todo – no que não ajudam duas ou três escolhas de atores masculinos que resultam bem abaixo da média dos elencos femininos do diretor.

Já no filme de Tarantino, o cinema é protagonista de uma maneira muito radical, inesperada mesmo para aqueles que por acaso conheçam o Inglorious Bastards original de Enzo Castellari – filme que inspirou Tarantino, mas do qual não sobra absolutamente qualquer vestígio enquanto narrativa. De fato, toda a trama de nazistas e resistência a eles durante a II Guerra converge para um final encenado numa sala de cinema, onde tanto vemos o poder do cinema ser manipulado pelos nazistas (através de um filme idealizado por Goebbels a partir de um “herói” nazista que interpreta a si mesmo – mas não consegue rever as cenas que vivenciou), como temos este poder reafirmado pela personagem feminina principal, que usará a materialidade mesmo da película cinematográfica para enfrentar os nazistas. Mas, claro, o grande poder é exercido pelo próprio Tarantino, que com o desfecho de seu filme parece querer afirmar que o poder da ficção cinematográfica é tamanho que ele pode alterar sem medo os rumos da História do mundo, numa aposta de grande coragem e, sejamos francos, cara de pau mesmo que só um autêntico “fiel”, como Tarantino o é da fé cinematográfica, poderia propor.

Trata-se de um final potentíssimo (cujo desfecho exato também tem a ver com imagem e com memória, mas não convém descrevê-lo aqui neste momento) de um filme que, curiosamente, se desenvolve em ritmo muito mais cadenciado do que poderia se imaginar. Se de alguma forma todos os filmes de Tarantino desde Pulp Fiction têm demonstrado uma capacidade incrível de se reinventar, indo além das expectativas que se poderia criar para eles, este daqui não é diferente. Ao contrário do que se poderia pensar ao idealizar um “filme de guerra de Tarantino”, aqui ele opta por, em grande parte de sua duração, dedicar-se de forma muito radical ao balé de palavras e de relações humanas, com cenas de grande complexidade na representação de dinâmicas de poder a partir da violência física e psicológica (onde sobressai um enorme ator de nome Christoph Waltz, interpretando um dos mais fantásticos personagens já criados por Tarantino). Quando a violência chega, ela é sempre perturbadora justamente por sua construção – humana, mas também histórica (torturar os nazistas seria, então, válido?). É um filme de enorme maturidade, mesmo que pareça nesta versão exibida em Cannes tatear um tanto, aqui e ali, em busca de seu ritmo exato – o que tem levado muitos a se perguntar se, até pelo pouquíssimo tempo de montagem que teve com um material tão complexo, trata-se mesmo de uma versão parcial, ainda a ser modificada entre agora e seus futuros festivais e lançamento pelo mundo. Seja como for, é filme para se voltar a ele, muitas vezes.

Maio de 2009

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