in loco
Dia 9: A casa dos autores
(Suleiman, Haneke, Gilliam, Panique au village)
por Eduardo Valente

Como já discutimos algumas vezes por aqui, na cobertura deste ano e em outros, Cannes é um pouco como o paraíso da Teoria dos Autores, no que isso tem de melhor e de pior. A adoração aos nomes e marcas reconhecidas por um lado, o desejo quase obsessivo de descobrir o “próximo autor” pelo outro, tudo isso faz com que exista um clima estranho em Cannes onde os diretores de cinema podem se sentir de fato no topo do mundo – com resultados nem sempre os mais positivos, mas faz parte. O que não se pode negar, porém, é que vários dentre estes cineastas efetivamente nos propõem universos de tal forma auto-suficientes e reconhecíveis que é impossível para o espectador não se sentir um pouco em casa ao adentrá-los. Um sentimento que será tão mais caloroso quanto cada espectador sinta que esta casa é um lugar agradável para ele estar, é claro.

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The Time That Remains, de Elia Suleiman (Palestina, 2009) – Competição
The White Ribbon (Das Weisse Band), de Michael Haneke (Alemanha/França/Áustria/Itália, 2009) – Competição

Se não há qualquer impedimento para que alguém aprecie o cinema que propõe Elia Suleiman com este seu novo filme, me parece bem claro que os que já conhecem o universo do autor a partir dos seus dois longas anteriores (ou mesmo que seja apenas através de Intervenção Divina) certamente se sentirão mais confortáveis a entrar nesta sua proposta. Isso porque, se Intervenção Divina já tinha uma considerável ambição estética e política, The Time That Remains multiplica esta equação ao propor um recuo temporal até o ano de 1948, quando Israel toma de vez os territórios do povo palestino, e segue a partir daí três outros momentos de vida da família de Suleiman (1970, algum momento dos anos 80 não especificado, e a atualidade). A grande questão é que a maneira com que Suleiman lida com a noção de história (seja a grande, do país; ou a sua pessoal) parte de uma forma absolutamente peculiar de encená-la, tanto no que se refere à idéia de realismo de reconstituição como com o jogo dos atores. Então, aqueles que de saída encontram neste registro um lugar de reconhecimento, estarão muito mais abertos ao que o filme propõe.

The Time That Remains é, como todos os outros filmes de Suleiman, um filme de resistência, só que reafirmando essa resistência com um senso de ironia e de poesia que, ao invés de diminuir sua intensidade agressiva, só tende a ampliá-la. O que todos os seus filmes parecem nos dizer, no fim das contas, é algo do tipo: “façam o que fizerem vocês (os israelenses), nós continuaremos aqui, levando nossas vidas, afirmando que temos o direito a isso”. Trata-se de algo que fica muito claro, por exemplo, na cena que propõe uma solução física bastante peculiar para o muro construído por Israel (que não convém explicar aqui para não tirar esta que é uma dentre várias deliciosas surpresas), ou ainda na música escolhida para tocar nos créditos finais do filme (Stayin’ Alive). Talvez por serem tão profundamente pessoais, em vários níveis, os filmes de Suleiman encontram sua maior força no próprio corpo e rosto do diretor-ator. Por isso, talvez o único porém do filme para um “velho amigo” do cinema de Suleiman seja o fato de que ele só surge em cena no terço final do filme. A partir deste momento, The Time That Remains é fascinante a cada plano, a cada corte. No que veio antes ele é poderoso, mas sem atingir tamanho efeito.

O caso de Michael Haneke é um pouco distinto, porque não se pode afirmar olhando para seus filmes que ele tenha um universo especialmente audiovisual que o distinga. Este seu novo filme, por exemplo, se diferencia já bastante de todos os seus antecessores imediatos tanto por ser filmado em preto e branco (que em Cannes parece estar recebendo um novo gás como “formato de arte”) como por desde o começo ter uma narração em off que vai guiando o espectador pelo filme. No entanto, o universo Haneke está todo lá na forma como o filme lida com os seus personagens e com o espectador – inclusive (e talvez principalmente) através desta narração em off que, curiosamente, lembra de alguma forma o uso deste expediente por Lars Von Trier em Dogville. Não por acaso a voz é de um velho, menos por acaso ainda de um professor: didaticamente (não no sentido de ser óbvia com a imagem, e sim porque realmente busca o tom professoral) Haneke a usa para, com considerável frieza e distanciamento, explanar sobre o que vemos.

Como de hábito, Haneke está menos interessado no poder da ficção como criadora de um universo autônomo de circulação de sentidos, e sim como espaço a ser manipulado em cada mínimo detalhe para passar uma determinada tese/olhar sobre o mundo – ou melhor, sobre o lado podre do mundo e do ser humano. Note-se que ao escrever isso acima eu não estou julgando se se trata de um expediente mais ou menos válido, apenas descrevendo este universo reconhecível. The White Ribbon confirma uma série de características bem conhecidas dos talentos de Haneke: como manipulador deste mundo, ele possui inegável capacidade de moldar as ferramentas do cinema (principalmente a câmera, os atores e a montagem) para atingir os resultados que deseja no olhar do espectador – principalmente alguns momentos de choque (e nisso ele é bem mais eficiente aqui do que Von Trier no Antichrist), e um incômodo verdadeiro (aqui causado principalmente pelo ótimo uso do elenco infantil). O que para mim não dá muito vontade de habitar esta “casa Haneke” é o simples fato de que, por mais bem resolvido que seja um filme seu (como este é), aos vinte minutos de projeção sentimos que sabemos exatamente onde tudo aquilo vai levar – e inevitavelmente ele leva. Não é um problema de previsibilidade simplesmente, mas sim que não há, para mim, no trajeto desta estrada conhecida, um prazer possível na espera pelo que se quer deixar claro: que o homem é um ser fadado à crueldade, covardia, culpa.

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The Imaginarium of Doctor Parnassus, de Terry Gilliam (Inglaterra/Canadá, 2009) – Fora de Competição
Panique au village, de Stéphane Aubier e Vincent Patar (Bélgica/Luxemburgo, 2009) – Sessão de meia-noite

Se acima falamos em “universos autorais”, a poucos cineastas a expressão se aplica tanto quanto a Terry Gilliam, porque no cinema dele deixa-se de lado um pouco o significado metafórico do termo e fica valendo um sentido mais direto mesmo, porque o cinema de Gilliam sempre foi um de criação de mundos. Neste sentido, claro que o título deste seu novo filme já indica se tratar de uma narrativa absolutamente próxima do diretor – algo que se confirmará logo num começo em que uma carroça de teatro mambembe retirada de séculos passados circula pela Londres atual, numa cena que nos lembra simultaneamente de Time Bandits e de alguns planos do Pescador de Ilusões, com os delírios do personagem de Robin Williams pelas ruas de Nova York naquele filme. Logo, um homem adentra um espelho no palco que há na carroça, e emerge num universo completamente onírico (como descobriremos, um reflexo do imaginário daquele que adentra este espelho) – universo este que tem muito a ver com as vinhetas animadas que Gilliam começou criando para os programas de TV e filmes do Monty Python.

Embora seja de fato uma sensação confortável para os que gostam dos delírios mais bem resolvidos de Gilliam (pensamos em Brazil ou em Barão Munchausen, por exemplo), é preciso dizer que a primeira hora do filme mais tropeça sobre si mesma do que caminha. Expondo de maneira bem firme aquele que sempre foi o ponto fraco de Gilliam (a pequena capacidade de sustentar narrativamente o interesse que sua prodigiosa imaginação visual promete), o filme neste começo parece um tanto preso ao excesso de diálogos explicativos e de uma encenação pouco inspirada ao precisar lidar com o espaço apertado da carroça e com a Londres moderna (ainda que estilizada num ambiente, como diz um personagem, “à margem”). Acaba sobressaindo neste momento algumas características menos felizes do imaginário gilliamniano, como uma certa tendência a um tom quase new age bastante cafona e uma maneira de olhar para o mundo à sua volta com um certo desdém redutor e incômodo, como se para afirmar a força do sonho precisasse sempre ser bem óbvio na sua “denúncia” da realidade.

No entanto, lá pela metade da projeção, o filme finalmente encontra um equilíbrio mais adequado, a partir de um fio narrativo bem simples (uma aposta entre o Diabo – ninguém menos que Tom Waits – e o Dr. Parnassus) que acaba permitindo que passemos bem mais tempo no mundo dentro do espelho – que, afinal, é um onde Gilliam claramente se sente à vontade. Ali, seu imaginário surrealista pode aflorar de maneira livre, sem tantas amarras narrativas ou morais, e finalmente decola. A diferença entre os dois espaços, aliás, permite o jogo em que o personagem de Heath Ledger se transforma em Johnny Depp, Colin Farrell e Jude Law com surpreendente sentido conceitual – difícil acreditar, inclusive, que não fosse algo previsto no roteiro, segundo se especulou, e sim um resultado da morte do ator. Ledger que, por acaso, neste que será seu último papel, não está particularmente bem no filme, embora tenha um personagem bem difícil de defender. Vale notar, aliás, que em seu primeiro plano no filme ele está morto, sendo trazido à vida pela “magia do Dr. Parnassus” – o que, se tem um tanto de imagem mórbida no começo, ganha um poético sentido no fim das contas.

Pensando nessa segunda hora do filme e neste “mundo imaginário”, é interessante notar como um outro filme da seleção oficial parecia se passar completamente dentro dele. Trata-se de Panique au village, animação belga baseada em personagens já explorados por seus diretores em curtas e uma série de filmes para a TV. Os dois diretores orgulham-se particularmente de sua técnica de animação que, se não é exatamente tosca (até porque certamente depende de muito domínio pra ser concretizada), adora parecer ser, quase como uma posição política. Panique au village na verdade tem boa parte de seu charme na junção desta técnica (que usa bonequinhos de brinquedo vintage) com um universo narrativo marcado pela mais absoluta falta de lógica. O filme tem uma história, muita ação e relações entre personagens, mas de um jeito absolutamente particular, que faz pensar quase numa escritura automática, como se a cada idéia nova tida equivalesse uma mudança no caminho da narrativa. Tudo isso faz com que ele mantenha certo interesse ao longo da duração, mas é inegável que dá para compreender porque os personagens e o seu ambiente surgiu com filmes de 5 minutos ou menos: provavelmente é neste formato que eles ainda encontram sua maior força.

Maio de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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