in loco
Finalizando a competição: Campion, Tsai, prêmios
por Eduardo Valente

Bright Star, de Jane Campion (Inglaterra/Austrália, 2009) – Competição
Visage, de Tsai Ming-liang (França/Taiwan, 2009) – Competição

Não deixa de ser bastante curioso que, depois de uma cobertura em que pareceu-nos bastante útil a discussão dos filmes a partir de determinadas associações de idéias que eles iam permitindo sem mais esforço (especialmente na competição), os últimos dois filmes vistos em Cannes só poderiam partilhar um mesmo texto pelo movimento contrário: justamente o de serem os espécimes mais distantes entre si que o cinema pode apresentar. Essa distância se afirma com tal força em cada um deles que parece quase irresistível partir dela, logo, portanto, ainda de uma relação entre os filmes – mesmo que por oposição.

Em Bright Star, Jane Campion recua a um terreno cinematográfico não distante de alguns outros trabalhos seus como O Piano e Retrato de uma Mulher, se considerarmos que ela se centra num personagem feminino como protagonista de um filme que propõe a reconstituição de um outro momento histórico a partir dessa aproximação bem direta com um universo pessoal. Só que, ainda mais do que nos dois acima citados, o que impressiona positivamente neste novo filme da cineasta é um desejo de simplicidade bastante radical. Simplicidade, primeiro, de registro: nem no que tange à reconstituição de época (que muitas vezes é um peso para os filmes), nem muito menos no que se refere às ferramentas especificamente cinematográficas (pensamos aqui na câmera, mas também no uso do som ou na montagem), Campion quer retirar a atenção do que é o foco do seu filme: os personagens e seus sentimentos. A diretora filma de maneira frontal, quieta, como quem prefere observar algo que se dá a ver em frente à câmera com naturalidade.

Este dado leva à segunda opção pela simplicidade que talvez seja a mais arriscada do filme: a daquilo que é narrado ou que, por outra, se quer observar com tal frontalidade. Sim, porque não se pode dizer que exista realmente um entrecho dramático em Bright Star para além do mais radicalmente simples: o nascimento de um amor, e a posterior necessidade da morte deste mesmo sentimento. Da maneira como Campion se dispõe a filmar estes dois momentos na relação entre os personagens, ela faz aquela que talvez seja a mais alta aposta do filme: a de que os corpos/rostos de seus atores (e, portanto, o cinema) são capazes de filmar isso que não se dá necessariamente a ver, porque se passa dentro dos corpos/mentes/corações. A olhos apressados talvez pareça banal, talvez pareça até convencional, mas é importante se livrar destes pré-conceitos que décadas de filmes românticos de época sem sentimento e cheios de si (com reconstituições rocambolescas ou tramas hiper-trabalhadas) nos impuseram, e saber ver através disso tudo que, no que realmente importa a Campion, a um elogio enorme das capacidades do cinema de comunicar aquilo que, mesmo entre os seres, muitas vezes não se consegue comunicar. Por conseguir atingir este resultado com elegância e sutileza, Bright Star não pode, de forma alguma, ser um filme a se desconsiderar – pelo contrário, muito mais há a ser dito sobre este filme, o que faremos no devido momento.

Já Tsai Ming-liang neste seu novo filme, que nasce de uma encomenda do Museu do Louvre para que o cineasta faça uma obra “inspirada” a partir do Museu, segue caminho radicalmente oposto ao de Campion. Tudo que há de frontal e de direto no filme dela, se tornará absolutamente transversal, simbólico e onírico no filme de Tsai. É um filme que (após um breve plano fora de foco num espelho em Paris) começa em Taiwan, com imagens muito semelhantes às que associamos ao cinema do taiwanês-malasiano: seu ator-fetiche Lee Kang-cheng (que é aqui, mais do que nunca, um alter-ego de Tsai) luta contra um vazamento na pia da cozinha que alaga o apartamento onde mora com a mãe (e que, se a memória não falha, parece ser o mesmo de, pelo menos, O Rio). Depois deste começo, passamos à Paris, numa série de cenas em exteriores bastante inesperados (não só as ruas, mas logo um cemitério), onde o registro do delírio vai tomando conta de maneira definitiva: é Jean-Pierre Léaud que vaga por uma paisagem preenchida por espelhos e divide a tela com um cervo; é Fanny Ardant que encontra Jeanne Moreau e Nathalie Baye numa mesa de jantar para uma cerimônia cujo propósito desconhecemos; é Laetitia Casta que dubla uma canção em chinês usando figurinos extravagantes e cercada por outras mulheres.

Muito aos poucos vai se delineando um esboço de narrativa (Lee interpreta um cineasta que vai realizar um filme em Paris, do qual Léaud e Casta são os atores e Ardant é a produtora), mas isso não é nem um pouco o que importa no filme. Logo, quando em Taiwan a mãe do cineasta acaba morrendo, o filme que vemos (assim como o que o cineasta realiza) vai se dissolvendo cada vez mais em digressões oníricas que invadem os subterrâneos do Museu do Louvre. Cada vez mais vai ficando claro que importam menos os personagens e mais, como já diz o título do filme, seus rostos (e, claro, seus corpos): assim, Léaud e Ardant importam como a memória do cinema francês (mas, principalmente o de François Truffaut, personagem “presente” no filme em fotos, livros, imagens) das quais se explora acima de tudo as marcas da passagem do tempo em seus rostos (a imagem do plano final de Os Incompreendidos é usada de maneira impressionante para reforçar esta sensação – e, aliás, o personagem de Léaud se chama, claro, Antoine); Lee Kang-cheng importa como a imagem do cinema de Tsai que pode ser transportada a qualquer lugar sem perder esta indicialidade; Laetitia Casta importa como a modelo, muito mais que como a atriz, cujo corpo e rosto se prestam a um trabalho hiper-estilizado.

Na sua narrativa absolutamente episódica, Visage funcionará também no acúmulo, mas sua força é principalmente a de cada imagem que constrói. Até por isso, ao longo de suas duas horas e vinte de projeção, resulta bastante irregular e de fruição não exatamente fácil, especialmente como último filme visto numa maratona de dez dias como a do Festival de Cannes. É um destes filmes que pede revisitas (no que aliás se aproxima muito do seu objeto inicial de encomenda, o Museu do Louvre), e que pede um tempo de fruição que, de preferência, não inclua correrias pré ou pós projeção. Esta não será, aliás, a menor nem a única dos motivos pelos quais lembramos muito do cinema de Julio Bressane (especialmente de Cleópatra, mas não só) ao longo de Visage (e na medida em que 3/4 dos espectadores deixou a sala na sessão do filme de Tsai, veio muito à cabeça os discursos pré-exibição de Bressane pedindo sempre à platéia “tolerância, paciência...”). Nesta primeira visita, a maior certeza com a qual saímos é a de que Tsai faz aqui, de uma encomenda, um filme profundamente pessoal, que consegue atingir algumas das imagens mais pregnantes às quais fomos expostos em dez dias de filmes de alguns dos grandes cineastas da atualidade – talvez só comparáveis, em quantidade e ambição, às do filme de Pedro Costa.

Entre a frontalidade de Campion, que desafia o olhar apressado que só enxerga o banal (que não está na tela, porém, e sim nos olhos de quem vê – houve também considerável número de desistências na projeção que acompanhei do filme); e o delírio de Tsai, a única certeza com que saímos do cinema neste domingo de encerramento do Festival foi a de que há, nos dois, mais uma declaração de amor às potências do cinema, como tantas que acabamos vendo nestas semanas de Festival.

* * *

O próprio júri (sem muito surpreender diga-se) optou por, entre outras propostas, ignorar justamente a simplicidade radical de Campion e o onirismo sem fronteiras de Tsai. Se não foi uma premiação com uma leitura simples e direta como a da opção de Sean Penn por um sentido estrito (ainda que generoso a modelos distintos) de “cinema político” no ano passado, o júri presidido por Isabelle Huppert ainda assim optou claramente pelas propostas de cinema mais, digamos assim, “frontalmente artísticas”. Gostemos mais ou menos de cada um deles, se podemos encontrar algo em comum nos filmes de Haneke, Audiard, Mendoza, Park e Arnold (para ficarmos nos principais prêmios) é a sua clareza de propósitos: a qualquer espectador que assista um destes filmes é mais do que certo sair da sala entendendo bem o que cada cineasta esperava atingir com seus filmes. O mesmo não se poderia dizer de um Resnais (cujo prêmio de consolação soou tão mais ofensivo que o de Clint Eastwood no ano passado – sendo que Eastwood recusou-se a ir recebê-lo), de um Bellochio, de um Suleiman, de Campion ou de Tsai, cujos filmes traçam caminhos dados a experiências pessoais um tanto sutis da parte de cada espectador. Talvez seja algo natural no trabalho de um júri de muitas pessoas, que aquilo que tende a um lugar-comum de apreensão seja mais facilmente gostado por um determinado grupo. Mas não deixa de ser, mesmo com uma série de filmes premiados, um resultado bastante restritivo sob o ponto de vista da generosidade de olhar que o cinema permite e que foi, talvez, o grande destaque de fato deste festival.

Maio de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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