A
“tendência”, se é que podemos chamar assim, está longe de ser nova (pensemos em
alguns dos últimos filmes de David Lynch, de Abel Ferrara, de Brian De Palma,
de Woody Allen, entre outros), mas ainda assim não deixa de ser surpreendente.
Para uma cinematografia que se especializou em importar todo tipo de talentos
vindos de fora, o cinema americano recente não tem sido terreno fértil para boa
parte de seus melhores (ou, digamos assim, mais instigantes) talentos. E se tem
algo que este dia na reprise da Quinzena dos Realizadores nos mostrou é que o
fenômeno não tem idade: entre os estreantes Ficarra e Requa e o monstro sagrado
ganhador de dois Oscars de direção e duas Palmas de Ouro que é Coppola, uma mesma
situação – o exílio (financeiro, como local de filmagem ou do mercado exibidor)
do seu país de origem.
O caso de Ficarra e Requa talvez seja o mais peculiar
entre os dois porque não só I Love You Philip Morris tem como protagonista
uma das grandes estrelas da Hollywood recente em Jim Carrey, como tudo que diz
respeito ao filme é americano até a alma: não apenas por ser filmado em locações
em três estados diferentes (Geórgia, Florida e Texas), em situações que dizem
respeito profundamente aos Estados Unidos, como principalmente sua apreensão de
sua certa idéia de sonho americano como um imaginário hiperpresente (mesmo que
pela negação) ou ainda referências bastante específicas a situações sócio-políticas
do país, como a passagem de George W. Bush pelo governo do Texas. Por isso tudo,
não deixa de ser chocante pensar que o filme seja financiado por uma corporação
cinematográfica internacional baseada na França (a Europacorp fundada por Luc
Besson) como principalmente saber que, no mercado americano, I Love You Philip
Morris foi relegado de saída ao mercado de DVD, sem passar pelas salas de
cinema.
O
fato é que se há uma enorme qualidade deste belíssimo primeiro filme, ela é justamente
uma das que mais caracteriza o cinema americano: um impressionante domínio sobre
a narrativa e sobre a empatia de seus personagens com o espectador. É realmente
incrível ver como os roteiristas-diretores constroem seu filme com uma noção de
ritmo interno e externo às cenas que garante que, em pouco mais de hora e meia
de projeção, eles passeiem com enorme fluência por alguns gêneros bastante opostos
(como a comédia maluca ou o melodrama – criando ainda alguns realmente novos como
o “romance de prisão”), mantendo o espectador sempre ao lado de seus personagens.
Não se trata, porém, de apenas dominar a arte da escritura segundo um modelo narrativo:
Ficarra e Requa têm um olho bastante sofisticado para a montagem de sua mise-en-scène,
garantindo que o sucesso da maioria de suas melhores piadas venha sempre de um
posicionamento de câmera preciso, de um corte no momento certo, de um domínio
da movimentação dos elementos dentro do quadro. Todas estas, sabemos, artes profundamente
dominadas pelo cinema americano mais direto, que afirma a pujança dos relatos
ficcionais, como é o caso aqui.
Claro
que não é difícil saber que o principal motivo para o sumiço do filme das salas
(ou dos financiadores) americanas é a forma pela qual o ele se coloca como uma
love story gay com direito a alguns momentos de enorme frontalidade na
exibição não somente de cenas de algum considerável grafismo (como Ewan McGregor
cuspindo no mar o resultado de um boquete ou Jim Carrey mandando ver todo suado
num moço barbudo de quatro), mas principalmente de uma sensibilidade que não pede
desculpas em nenhum momento. De fato, talvez esse seja mesmo o que de mais subversivo
o filme apresenta: menos a sexualidade latente (que é reservada a alguns momentos
específicos, por mais diretos que sejam), do que a afirmação radical deste romance
quase ideal protagonizado por duas figuras de tamanho reconhecimento público como
o são Carrey e McGregor. No entanto, mesmo que isso tudo fique bem entendido,
ainda assim não deixa de ser incômoda essa sensação quase século 19 (ou primeira
metade de século 20) de que algo tão profundamente sensível como este filme possa
ser considerado inadequado para circular abertamente.
Já
o caso de Coppola, ainda que um tanto inexplicável, é mais fácil de aceitar e
compreender, num mundo artístico onde tantos grandes artistas já precisaram se
retirar para criar. Depois de muito sofrer (e bastante conseguir criar, é fato)
nas mãos dos estúdios, o que vemos elevado à enésima potência em Tetro
é um cineasta absolutamente sem qualquer resquício disposição de negociar seus
interesses como realizador de cinema. Por isso mesmo, Coppola abre totalmente
mão de qualquer relação com o dinheiro do cinema americano, e vai filmar na Argentina
a partir de financiamentos deste país, da Espanha e da Itália. Lá, seu nome permite
que ele seja o roteirista original, produtor e diretor de seu próprio filme, assinado
pelo sempre quase utópico nome da American Zoetrope, com direito a sua “filial”
local, a Zoetrope Argentina. Realizado dentro deste sistema tão particular, Tetro
é muito mais do que apenas um modelo que permite fazer um filme: de fato, o que
vemos na tela aqui, numa espécie de continuação do também heterodoxamente financiado
Youth Without Youth, é a expressão absolutamente idiossincrática do olhar
de um cineasta que parece radicalmente rejuvenescido, filmando como se fosse um
estudante universitário de novo – com muito do bom, e um tanto do ruim que vem
desta idéia. A verdade inegável é que Tetro é um filme absolutamente torto,
o qual pode ser tão mais apaixonante ou enervante quanto mais deixa isso claro.
No
começo, a maneira como o filme parece afirmar esta sua “juventude independente”
é um registro em um preto e branco marcadamente “pintado” com a luz de pequenos
ambientes argentinos onde circulam quatro ou cinco personagens. O filme faz pensar
neste início a uma baratíssima produção de iniciante, que vai descobrindo formas
de enquadrar e posicionar personagens num espaço exíguo. Só que, na medida em
que evolui a narrativa, o filme deixa de lado qualquer noção de modéstia (principalmente
no sentido da construção de sua história), cada vez mais se irmanando ao teatro,
à ópera, ao artifício bem radical em suma (onde os flashbacks, coloridos
e em outra proporção de tela, jogam um papel essencial). Tetro vai então
inchando sua história e seus significados de uma maneira que nunca deixa de ser
surpreendente – e até comovente pela sua quase ingenuidade gritada em tom tão
alto, tão sem limites. Se ninguém poderá jamais dizer que é um filme preciso,
com domínio total sobre aquilo que pretende atingir (e, cá entre nós, com algumas
opções de atuação ou de fotografia francamente equivocadas), também é difícil
negar que ele possui algumas imagens e sons (e principalmente alguns cortes) que
não sairão da cabeça por algum tempo. É um verdadeiro grito de liberdade tardio
de um cineasta que, ao contrário de boa parte de sua carreira, já não tem mais
nada a perder. E que, para atingir este espaço, precisa sair do seu próprio país.
Bem
ao contrário do que acontece no filme de Coppola, onde toda sorte de ressentimentos
familiares surgem como o lugar ideal para um cinema de uma pessoalidade radical
e sem medo de ir a lugares bastante profundos sem nunca perder um coração enorme,
este terceiro longa do belga van Groenigem é um filme de enorme cálculo para tratar
mais ou menos das mesmas questões – o problema da transmissão, entre a relutância
paterna e as dificuldades dos filhos de lidar com a presença dos progenitores
masculinos. Sem dúvida alguma, o cineasta belga demonstra considerável capacidade
de, a partir de um ambiente familiar degradado marcado por personagens bastante
ultrajantes, conseguir criar uma determinada verdade deste registro que pode cativar
o espectador. No entanto, é preciso notar como sua maneira de filmar (mudanças
constantes na bitola do filme, câmera que balança e reenquadra a cada momento)
e seu desejo de equilibrar opostos tão radicais como a caricatura cômica ridicularizante
e um moralismo latente acerca de questões da realidade extra-filme, exibem uma
certa sensação de vale tudo onde, tanto o choque como a condescendência com o
que não se pode perdoar acabam se equivalendo como puros efeitos de retórica cinematográfica.
No fundo, La merditude des choses é marcado acima de tudo por esta sensação:
a de que, no fundo, o que se deseja por em evidência é mesmo uma certa esperteza
do realizador (seja no trato com os personagens, seja na forma de montar seu relato),
que parece por isso estar sempre acima daquele ambiente tão “bizarro” que se dedica
a criar e exibir – de novo, portanto, oposto a algo como Tetro, onde Coppola
parece o tempo todo enfiado até o pescoço na estranheza do seu relato.