in loco
Cannes em Paris 1: Young (or not so much) Americans (I Love You Philip Morris; Tetro) + La merditude des choses
por Eduardo Valente

I Love You Philip Morris, de Glen Ficarra e John Requa (EUA/França, 2009) – Quinzena dos Realizadores
Tetro, de Francis Ford Coppola (Argentina/Espanha/Itália, 2009) – Quinzena dos Realizadores

A “tendência”, se é que podemos chamar assim, está longe de ser nova (pensemos em alguns dos últimos filmes de David Lynch, de Abel Ferrara, de Brian De Palma, de Woody Allen, entre outros), mas ainda assim não deixa de ser surpreendente. Para uma cinematografia que se especializou em importar todo tipo de talentos vindos de fora, o cinema americano recente não tem sido terreno fértil para boa parte de seus melhores (ou, digamos assim, mais instigantes) talentos. E se tem algo que este dia na reprise da Quinzena dos Realizadores nos mostrou é que o fenômeno não tem idade: entre os estreantes Ficarra e Requa e o monstro sagrado ganhador de dois Oscars de direção e duas Palmas de Ouro que é Coppola, uma mesma situação – o exílio (financeiro, como local de filmagem ou do mercado exibidor) do seu país de origem.

O caso de Ficarra e Requa talvez seja o mais peculiar entre os dois porque não só I Love You Philip Morris tem como protagonista uma das grandes estrelas da Hollywood recente em Jim Carrey, como tudo que diz respeito ao filme é americano até a alma: não apenas por ser filmado em locações em três estados diferentes (Geórgia, Florida e Texas), em situações que dizem respeito profundamente aos Estados Unidos, como principalmente sua apreensão de sua certa idéia de sonho americano como um imaginário hiperpresente (mesmo que pela negação) ou ainda referências bastante específicas a situações sócio-políticas do país, como a passagem de George W. Bush pelo governo do Texas. Por isso tudo, não deixa de ser chocante pensar que o filme seja financiado por uma corporação cinematográfica internacional baseada na França (a Europacorp fundada por Luc Besson) como principalmente saber que, no mercado americano, I Love You Philip Morris foi relegado de saída ao mercado de DVD, sem passar pelas salas de cinema.

O fato é que se há uma enorme qualidade deste belíssimo primeiro filme, ela é justamente uma das que mais caracteriza o cinema americano: um impressionante domínio sobre a narrativa e sobre a empatia de seus personagens com o espectador. É realmente incrível ver como os roteiristas-diretores constroem seu filme com uma noção de ritmo interno e externo às cenas que garante que, em pouco mais de hora e meia de projeção, eles passeiem com enorme fluência por alguns gêneros bastante opostos (como a comédia maluca ou o melodrama – criando ainda alguns realmente novos como o “romance de prisão”), mantendo o espectador sempre ao lado de seus personagens. Não se trata, porém, de apenas dominar a arte da escritura segundo um modelo narrativo: Ficarra e Requa têm um olho bastante sofisticado para a montagem de sua mise-en-scène, garantindo que o sucesso da maioria de suas melhores piadas venha sempre de um posicionamento de câmera preciso, de um corte no momento certo, de um domínio da movimentação dos elementos dentro do quadro. Todas estas, sabemos, artes profundamente dominadas pelo cinema americano mais direto, que afirma a pujança dos relatos ficcionais, como é o caso aqui.

Claro que não é difícil saber que o principal motivo para o sumiço do filme das salas (ou dos financiadores) americanas é a forma pela qual o ele se coloca como uma love story gay com direito a alguns momentos de enorme frontalidade na exibição não somente de cenas de algum considerável grafismo (como Ewan McGregor cuspindo no mar o resultado de um boquete ou Jim Carrey mandando ver todo suado num moço barbudo de quatro), mas principalmente de uma sensibilidade que não pede desculpas em nenhum momento. De fato, talvez esse seja mesmo o que de mais subversivo o filme apresenta: menos a sexualidade latente (que é reservada a alguns momentos específicos, por mais diretos que sejam), do que a afirmação radical deste romance quase ideal protagonizado por duas figuras de tamanho reconhecimento público como o são Carrey e McGregor. No entanto, mesmo que isso tudo fique bem entendido, ainda assim não deixa de ser incômoda essa sensação quase século 19 (ou primeira metade de século 20) de que algo tão profundamente sensível como este filme possa ser considerado inadequado para circular abertamente.

Já o caso de Coppola, ainda que um tanto inexplicável, é mais fácil de aceitar e compreender, num mundo artístico onde tantos grandes artistas já precisaram se retirar para criar. Depois de muito sofrer (e bastante conseguir criar, é fato) nas mãos dos estúdios, o que vemos elevado à enésima potência em Tetro é um cineasta absolutamente sem qualquer resquício disposição de negociar seus interesses como realizador de cinema. Por isso mesmo, Coppola abre totalmente mão de qualquer relação com o dinheiro do cinema americano, e vai filmar na Argentina a partir de financiamentos deste país, da Espanha e da Itália. Lá, seu nome permite que ele seja o roteirista original, produtor e diretor de seu próprio filme, assinado pelo sempre quase utópico nome da American Zoetrope, com direito a sua “filial” local, a Zoetrope Argentina. Realizado dentro deste sistema tão particular, Tetro é muito mais do que apenas um modelo que permite fazer um filme: de fato, o que vemos na tela aqui, numa espécie de continuação do também heterodoxamente financiado Youth Without Youth, é a expressão absolutamente idiossincrática do olhar de um cineasta que parece radicalmente rejuvenescido, filmando como se fosse um estudante universitário de novo – com muito do bom, e um tanto do ruim que vem desta idéia. A verdade inegável é que Tetro é um filme absolutamente torto, o qual pode ser tão mais apaixonante ou enervante quanto mais deixa isso claro.

No começo, a maneira como o filme parece afirmar esta sua “juventude independente” é um registro em um preto e branco marcadamente “pintado” com a luz de pequenos ambientes argentinos onde circulam quatro ou cinco personagens. O filme faz pensar neste início a uma baratíssima produção de iniciante, que vai descobrindo formas de enquadrar e posicionar personagens num espaço exíguo. Só que, na medida em que evolui a narrativa, o filme deixa de lado qualquer noção de modéstia (principalmente no sentido da construção de sua história), cada vez mais se irmanando ao teatro, à ópera, ao artifício bem radical em suma (onde os flashbacks, coloridos e em outra proporção de tela, jogam um papel essencial). Tetro vai então inchando sua história e seus significados de uma maneira que nunca deixa de ser surpreendente – e até comovente pela sua quase ingenuidade gritada em tom tão alto, tão sem limites. Se ninguém poderá jamais dizer que é um filme preciso, com domínio total sobre aquilo que pretende atingir (e, cá entre nós, com algumas opções de atuação ou de fotografia francamente equivocadas), também é difícil negar que ele possui algumas imagens e sons (e principalmente alguns cortes) que não sairão da cabeça por algum tempo. É um verdadeiro grito de liberdade tardio de um cineasta que, ao contrário de boa parte de sua carreira, já não tem mais nada a perder. E que, para atingir este espaço, precisa sair do seu próprio país.

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La merditude des choses (De helaasheid der dingen), de Felix van Groenigem (Bélgica/Holanda, 2009) – Quinzena dos Realizadores

Bem ao contrário do que acontece no filme de Coppola, onde toda sorte de ressentimentos familiares surgem como o lugar ideal para um cinema de uma pessoalidade radical e sem medo de ir a lugares bastante profundos sem nunca perder um coração enorme, este terceiro longa do belga van Groenigem é um filme de enorme cálculo para tratar mais ou menos das mesmas questões – o problema da transmissão, entre a relutância paterna e as dificuldades dos filhos de lidar com a presença dos progenitores masculinos. Sem dúvida alguma, o cineasta belga demonstra considerável capacidade de, a partir de um ambiente familiar degradado marcado por personagens bastante ultrajantes, conseguir criar uma determinada verdade deste registro que pode cativar o espectador. No entanto, é preciso notar como sua maneira de filmar (mudanças constantes na bitola do filme, câmera que balança e reenquadra a cada momento) e seu desejo de equilibrar opostos tão radicais como a caricatura cômica ridicularizante e um moralismo latente acerca de questões da realidade extra-filme, exibem uma certa sensação de vale tudo onde, tanto o choque como a condescendência com o que não se pode perdoar acabam se equivalendo como puros efeitos de retórica cinematográfica. No fundo, La merditude des choses é marcado acima de tudo por esta sensação: a de que, no fundo, o que se deseja por em evidência é mesmo uma certa esperteza do realizador (seja no trato com os personagens, seja na forma de montar seu relato), que parece por isso estar sempre acima daquele ambiente tão “bizarro” que se dedica a criar e exibir – de novo, portanto, oposto a algo como Tetro, onde Coppola parece o tempo todo enfiado até o pescoço na estranheza do seu relato.

Maio de 2009

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