in loco
Cannes em Paris 2: Fantasmas por toda parte
(Hotaru; Independencia; Tales of the Golden Age; Nymph)
por Eduardo Valente

Sabemos bem que o cinema torna palpável a eterna luta do homem contra a morte e o esquecimento através desta capacidade de registrar um pedaço de espaço-tempo para todo o sempre (ou por quanto tempo aquele suporte durar – o que é toda uma outra discussão sobre fantasmas e mortes, aliás). Mas, ao mesmo tempo, ele só consegue mesmo evidenciar a inutilidade deste esforço uma vez que, mesmo registrado, cada instante está sempre fadado a um fim. Por tudo isso, não é absurdo dizer que nenhuma arte é mais afeita a se tornar um verdadeiro desfile de fantasmas do que o cinema – e foi exatamente isso que vimos aqui nas mostras de Cannes nestes últimos dias.

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Hotaru, de Naomi Kawase (Japão, 2000-2009) – Quinzena dos Realizadores

Primeiro a explicação mais do que importante: Hotaru não é exatamente o “novo filme” de Naomi Kawase, uma vez que foi o segundo longa dirigido pela japonesa, exibido pelos festivais do mundo em 2000. No entanto, a sua versão exibida em Cannes este ano é realmente nova, pois dos 164 minutos do filme original sobram agora “apenas” 110 minutos. Não tendo podido ver a primeira versão (que estaria fadada a tornar-se ela mesma um fantasma com a circulação desta nova?), não farei considerações sobre o que motivou Kawase a esta nova versão, mas posso observar que este que agora se dá a ver é um filme que tem alguns problemas de ritmo e andamento que, muito provavelmente, se devem a um enxugamento não antes planejado. O excesso de clímaxes e de sucessivos finais que o filme parece ter, por exemplo, faz pensar na manutenção de alguns momentos fortes sem os devidos respiros provavelmente existentes antes entre eles. Da mesma forma, só podemos imaginar que venha daí também o motivo para o sumiço estranho de alguns personagens, algumas alterações de comportamento para além do normal mesmo num filme de Kawase ou ainda uma certa unidimensionalidade do protagonista masculino.

Tudo isso dito, porém, é fácil notar como já estavam no cinema de Kawase lá em 2000 várias das características que mais nos fascinaram quando ele nos deu a conhecer alguns anos depois, principalmente sua capacidade palpável de filmar com enorme simplicidade e ao mesmo tempo atingir composições de quadro e de ambiente que beiram o sublime. O primeiro plano deste filme, por exemplo, é uma destas maravilhas que Kawase atinge de vez em quando ao unir imagens de cunho documental a um relato ficcional (algo que, aliás, volta a acontecer com força mais na frente no filme), e por si só, sem maiores exageros, já vale a viagem a esta narrativa. Mas há bem mais do que isso, a começar por dois atores principais realmente acachapantes (embora, de novo, o personagem masculino nesta montagem não seja plenamente desenvolvido, ainda assim a presença de tela do seu ator cuida de nos manter ao seu lado). Mas essa dimensão incompleta do homem em cena até faz sentido, pois Kawase é uma dessas cineastas que quase consegue dar sentido à tão dúbia expressão “cineasta feminina”, principalmente pela maneira como ela lida com dilemas de fato restritos a este gênero – como, por exemplo, a maternidade.

Só que o motivo para tratarmos dela aqui num texto com o título que este tem e com os outros filmes que vêm abaixo, é que o cinema de Kawase parece sempre absolutamente nutrido pela relação com os ancestrais e a tradição (características, de resto, muito ligadas à cultura japonesa, claro). De fato, não é exagero nenhum dizer que suas personagens principais são sempre assombradas por ausências que determinam suas vidas (basta lembrarmos de Shara e A Floresta dos Lamentos, seus dois longas exibidos nos festivais brasileiros). O mesmo acontece aqui em Hotaru, cuja protagonista vive ao mesmo tempo o trauma de duas mortes violentas ligadas a ela por laços maternais: o suicídio de sua mãe e o aborto que comete logo no começo do filme. A partir daí, e com a chegada deste personagem masculino que também carrega uma ausência estruturante (a de seu avô), o que veremos ao longo de Hotaru é mais um longo ritual de superação e de entrada em harmonia com a possibilidade da transmissão sem o peso da maldição. Questão, portanto, de lidar com fantasmas – o que Kawase consegue filmar com enorme materialidade e, ao mesmo tempo, abstrações das mais belas (como são as entradas das cenas de flashback).

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Independencia, de Raya Martin (Filipinas/França/Alemanha/Holanda, 2009) – Un Certain Regard
Tales from the Golden Age (Amintiri Din Epoca de Aur), de Cristian Mungiu, Ioana Uricaru, Hanno Höfer, Razvan Marculescu e Constantin Popescu (Romênia, 2009) – Un Certain Regard

Curiosa coincidência a de ver no mesmo dia estes dois filmes exibidos na mesma seleção de Cannes, pois nos dois o que assombra os filmes é menos algo que está no relato das telas e muito mais no que motiva suas realizações: em ambos os casos, o que se afirma sem qualquer dúvida são dois países assombrados pelos fantasmas de sua própria história, especialmente marcada por alguns acontecimentos bastante específicos e traumáticos – tanto assim que nenhum dos dois é apenas um filme realizado a partir do tema, mas sim parte de um projeto necessariamente maior que busca lidar com esses fantasmas nacionais.

No caso do filipino Raya Martin, Independencia é o segundo filme numa trilogia projetada, cuja primeira parte (A Short Film about the Indio Nacional) circulou por festivais e circuitos como o francês em 2008, mas continua inédita no Brasil. Nestes três filmes, Martin se propõe a lidar com as três ocupações que marcaram a história das Filipinas: no primeiro, era a espanhola; neste segundo, a americana; no futuro terceiro filme, a japonesa. Para cada filme, Martin projeta ainda um outro tipo de assombração, de ordem estética: cada um deles segue modelos bem distintos de cinema, de alguma maneira associados com o período que se retrata. Em Independencia, Martin busca recriar a estética de um cinema associado à ocupação americana do país, com o uso bastante estilizado de filmagem em estúdios, e uma certa decupagem e forma de atuar dos atores que remete a um tempo mais “inocente”, por assim dizer, da realização cinematográfica.

Tudo isso poderia ser teoricamente muito interessante e resultar num trabalho puramente fetichista ou calculadamente frio, mas não é o caso aqui porque Martin demonstra no filme uma capacidade bastante acentuada de construir seu artificialismo com uma boa dose de emoção claramente sincera. Sua opção ao lidar com o ocupante americano é radical: usurpa-se uma maneira de filmar, mas praticamente se deixa fora de quadro este elemento externo que, no entanto, é o que motiva todas as principais ações e reviravoltas numa narrativa bastante simples e condensada (não só o filme dura apenas uma hora e quinze, como se passa quase todo em torno de um espaço bastante exíguo de floresta totalmente recriado em estúdio com uso muitas vezes acachapante de fotografia em preto e branco estilizadíssima e de pinturas de paisagem de fundo). Como não poderia deixar de ser, em meio a sua enorme beleza e considerável generosidade na atenção ao humano, Independencia é um filme duríssimo, especialmente no seu ato final que é dos grandes momentos de realização de cinema no festival deste ano.

À dureza de Martin na relação com o passado do país contrapõe-se a ironia afiada e o franco desejo de comunicação com o espectador que perpassa os episódios do romeno Tales from the Golden Age. Como anuncia o título, o filme se divide em alguns “contos”, todos se referindo ao período em que a Romênia esteve sob o julgo de Ceausescu (a auto-proclama Era de Ouro) – período o qual, já havíamos percebido nos recentes filmes romenos que têm recebido bastante destaque pelo mundo, mais do que domina o imaginário coletivo desta nova geração de realizadores. Neste sentido, Tales from the Golden Age é uma espécie de ritual de expiação do momento através da comédia e da ridicularização – embora, seja preciso dizer, o filme seja tão melhor nos momentos em que justamente vai além da gozação (as piadas sobre burocracia comunista já estando um tanto velhas a essas alturas), e consegue usar o clima de paranóia e de quase surrealismo reinantes para urdir algumas relações humanas que conseguem atingir momentos de enorme força (onde se destaquem o “Conto do Entregador de Galinhas” e o “Conto dos Vendedores de Ar”, sem dúvida os pontos altos do filme).

É preciso se destacar, porém, que no meio de um filme tão ácido com o julgo de um regime comunista, talvez a mais interessante discussão que o filme permite vem, ela mesma, de uma característica cuja herança ironicamente remete às utopias (senão à prática) da ideologia comunista (uma ironia, note-se, que não escapou a seus realizadores). É o fato de que os cinco curtas que efetivamente compõem o filme não são assinados por cada um dos realizadores responsáveis por eles, embora tenham sido sim dirigidos individualmente. Os diretores fazem questão mesmo de assinar coletivamente a obra, alegando que nos tempos comunistas estas “lendas” circulavam como que por si mesmas, sem autores – e, aliás, eles também propõem não só que os contos/curtas sejam projetados a cada sessão numa ordem diferente, como na Romênia há ainda um sexto curta que será adicionado ao grupo, mas apenas cinco (escolhidos a esmo) sendo exibidos por sessão. Claro que tudo isso pode até parecer um grande golpe de marketing para chamar discussão ao filme, mas há que se considerar que existe aí um gesto bastante corajoso principalmente da parte de Cristian Mungiu, ganhador da Palma de Ouro há dois anos, e que por isso mesmo poderia no momento estar planejando toda uma carreira de sucesso individual para si no meio do cinema de autor. Ao invés disso, nesta primeira realização após o prêmio, ele não só se coloca em igualdade com seus outros colegas, como renega mesmo a importância da idéia de autoria dentro do filme – coisas nada desprezíveis de se fazer, ainda mais no festival mais obcecado com os autores, que é Cannes.

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Nymph (Nang Mai), de Pen-Ek Ratanaruang (Tailândia/Holanda, 2009) – Un Certain Regard

Curioso perceber que, dos quatro filmes “assombrados” que filmes nestes dias, de longe o menos interessante é aquele que incorpora à sua narrativa a idéia de fantasmas da maneira mais direta. Mas talvez isso se deva ao fato de que Nymph, mais do que pela personagem de uma fantasma encarnada numa floresta, talvez seja assombrado mesmo é pelo primeiro plano do filme, um plano-sequência tour de force que, de fato, praticamente poderia ter vida própria como um curta-metragem bastante bem resolvido. Mas o fato é que, depois desse começo que é ao mesmo tempo um prodígio de sensorialidade num mergulho pela floresta e um primor de concisão narrativa, nada que acontece no filme tem o mesmo interesse. Talvez porque, ao sair do terreno da abstração simultaneamente fantástica e muito material deste espaço selvagem, o filme caia numa dramaturgia da relação amorosa em frangalhos absolutamente capenga. A partir daí, ao voltar para a floresta, Nymph até construirá um ou outro momento de interesse (embora comprove de novo como o cinema de gênero é ele sim um fantasma que alguns diretores tentam enfrentar, sem resultados necessariamente satisfatórios), mas no geral seus personagens não conseguem cativar em todo o tempo de tela que têm nem um décimo da força dos primeiros cinco a dez minutos do filme, em seu plano inicial.

Maio de 2009

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