in loco - diários de cannes
Dia 4: Movimentos e paralisia
por Eduardo Valente
Le gamin au vélo, de Jean-Pierre e Luc Dardenne (Bélgica/França/Itália, 2011) – Competição
La
fin du silence, de Roland Edzard (França/Áustria,
2011) – Quinzena dos Realizadores
Dentro dessas curiosas superposições que o Festival
nos oferece, ainda que um tanto inconscientemente (já que estes
dois filmes passaram no mesmo dia por completo acaso, fazendo
parte de duas seções distintas do evento), acabou resultando especialmente
rica esta do novo filme dos irmãos Dardenne com a estréia na direção
de um jovem artista francês (que inclusive nem havia feito curtas
antes, trabalhando com pintura). Em ambos, o motor dos filmes
é um jovem personagem masculino em estado de rebeldia contra o
seu entorno (um menino abandonado pelo pai no filme dos Dardenne,
um adolescente cercado por uma estranha e problemática estrutura
familiar no filme de Edzard), e os filmes claramente irão apenas
tão longe quanto o movimento constante dos dois protagonistas
os levar.
O
novo filme dos Dardenne, como seria de se esperar de qualquer
um que venha acompanhando a carreira deles, reproduz uma série
de coisas que eles já vêm desenvolvendo, e leva adiante e para
outros lugares tantas outras (inclusive existe um sentimento real
de “retomar” figuras de seus filmes, com o pai sendo interpretado
pelo mesmo Jérémie Renier de A Promessa, A Criança
e O Silêncio de Lorna, e tendo ainda uma ponta de Olivier
Gourmet, de O Filho). Para além das questões de estilo,
que parecem já terem se tornado bastante desgastadas como argumento,
o que retomamos aqui são as narrativas de famílias quebradas,
impondo a necessidade de se refazer os laços afetivos em novas
organizações não esperadas entre as pessoas. Inclusive, o primeiro
ponto forte deste Le gamin au vélo é a maneira efetivamente
aleatória como se estabelece o laço principal entre os dois protagonistas
do filme, numa cena inicial particularmente marcante pela forma
como introduz pela primeira vez ao cinema dos irmãos uma verdadeira
estrela de cinema (Cécile de France), instada a se mesclar ao
“universo Dardenne”.
Mas
a presença dela é apenas a pedra que dá segurança ao material
(num uso muito inteligente da sua persona), já que a estrela real
do filme é mesmo o muito jovem Thomas Doret, num papel que tem
muito dos protagonistas anteriores dos filmes dos irmãos (e aí,
de novo, ele surgir como filho de Renier é uma ótima idéia). Doret
carrega quase literalmente o filme em suas costas, em mais uma
demonstração de que uma das grandes forças do cinema dos irmãos
é mesmo a forma como os corpos e suas ações físicas fazem a história
seguir adiante. E esse, aliás, talvez seja a mais impressionante
qualidade de Le gamin au vélo: a forma como os diretores
refinam seu domínio sobre a narrativa, num filme que chama a atenção
justamente pela forma como, num Festival com frequência marcado
pelas narrativas inchadas, se desenvolve com enorme precisão.
Em apenas uma hora e meia de tela uma quantidade bastante variada
de personagens surgem e atingem real peso (o exemplo do jovem
traficante é ótimo), e reviravoltas bastante fortes se sucedem
(particularmente na meia hora final), sem nunca darem a impressão
de não serem todas solicitadas pelo corpo “em estado de revolta
contra o mundo” que Doret carrega pela tela – e, claro, o filme
começa com ele no meio de um movimento e termina da mesma maneira.
Este
mesmo “estado de revolta” é, sem dúvida, a fonte também da força
considerável que atinge o filme de estréia na direção de Roland
Edzard – como já mencionamos, ainda mais impressionante por ser
de fato uma primeira experiência como cineasta. Ainda mais que
o filme dos Dardenne, La fin du silence é um exercício
de cinema absolutamente físico, onde chama a atenção tanto a interação
entre os atores, como também destes com a câmera, mas principalmente
dos dois elementos com a paisagem onde o filme se passa – parte
essencial do que o filme pretende. O filme começa com um café
da manhã entre uma família numerosa (pai, mãe e quatro filhos),
e ao longo de um plano-sequência logo somos apresentados a uma
completa indisposição entre Jean (Franck Falise) e todos no entorno
do seu lar. O que parece uma pequena cena de pirraça adolescente
escala rapidamente para o confronto físico, com uma força que
nos pega completamente de surpresa, e que deixa claro o quanto
existe de profundo nos subterrâneos daquelas relações – algo que
o filme vai trabalhar um pouco, mas sem nunca nos dar detalhes
ou explicações maiores.
Estabelecido
o seu tom seco, duro, agressivo mesmo, o filme parte então para
uma cena de caçada nas florestas que cercam as duas únicas casas
que veremos ao longo do filme (e que parecem existir num universo
paralelo), e a entrada em cena das armas de fogo logo dá um tom
distante de western a tudo – principalmente a esta figura
solitária e irreconciliável que é Jean. Daí por diante, o filme
vai se resolver de forma também incrivelmente sucinta (tudo se
passa em três dias e duas noites), com uma escalação física e
emocional de conflitos absolutamente essenciais (mães/filhos,
irmãos, pais diferentes de filhos distintos, etc), onde nunca
conseguimos imaginar quem será capaz de ir até qual limite – mas
sabemos apenas que tudo aquilo não pode terminar bem. Edzard segura
o filme com rédeas seguras, usando muito bem um elenco formado
antes de tudo por rostos marcantes (que ele explora em inteligentes
closes), e por uma paisagem dura e punitiva, que vai determinar
boa parte do que acontece na tela. Ao fim, são ambos filmes que
nos relembram aquela velha verdade inegável do cinema: o movimento
e os corpos, com apenas isso se faz muita coisa.
* * *
Trabalhar Cansa,
de Marco Dutra e Juliana Rojas (Brasil, 2011) – Un Certain Regard
Bé Omid É Didar (Au revoir), de Mohammad Rasoulof (Irã, 2011) – Un Certain
Regard
No entanto, o cinema (como dizíamos ontem) pode
tudo, e assim como simplesmente o movimento pode construir por
si mesmo um grande filme, a paralisia também pode ser extremamente
cinematográfica – como nos lembram estes dois filmes exibidos
na seção Un Certain Regard. Ambos nos relembram como também é
forte e potente a capacidade do cinema, ao misturar formatos e
gêneros estabelecidos, e dar a eles novos sentidos, recriando
aqui, com motivos bem distintos, a idéia de um horror do cotidiano.
Trabalhar
Cansa vai ser muito discutido, diga-se,
a partir da chave do gênero. Afinal, ainda é curiosamente raro
no cinema brasileiro que cineastas se aventurem por este terreno
onde o sobrenatural e o inexplicável se somam ao banal e comum,
e permitem criar essa “realidade ampliada”, à qual o cinema serve
tão bem. No entanto, o que o filme tem de mais forte não passa
por nada disso, necessariamente. A verdadeira força do filme está
na capacidade precisa de colocar na tela, como poucos filmes brasileiros
conseguiram até hoje, um estado incrivelmente tenso e duro das
relações entre classes, e das distintas pressões modernas exercidas
pelo capitalismo em diferentes classes, e em indivíduos que sentem
a necessidade de desempenhar papeis específicos. Afinal, existe
ainda a lenda de que o Brasil é terra sem conflitos, e o que Marco
Dutra e Juliana Rojas expõem aqui de maneira tão dolorosamente
dura (e doce, ao mesmo tempo) é o tamanho dessa mentira – os conflitos
existem e abundam, apenas estão todos sublimados e naturalizados
em gestos os menores (seja no mercado de trabalho, seja nas relações
domésticas, seja na dinâmica entre as gerações).
A
inteligência do filme começa por um roteiro cuidadosamente trabalhado,
que não se contenta com criar uma trama de poucos ecos e personagens
simples. A cada novo personagem que entra em cena (depois do casal
principal e sua filha pequena, vão se somando os empregados do
supermercado que ela abre, a nova doméstica que chega para trabalhar
na casa deles, a mãe da dona da casa, a irmã do marido, etc etc),
soma-se uma camada deste jogo de relacionamentos que atinge o
raro feito de passar por todas as chaves (social, étnica, doméstica,
etc) sem com que nenhum deles se torne apenas um “representante
de algo”. Todos os atores emprestam vida interna a seus personagens,
sem com isso precisarem se tornar apenas indivíduos desvinculados
do contexto específico que é morar num grande centro urbano brasileiro
em determinado momento da história. Muito precisa ser dito e analisado
sobre o filme ainda, pois ele é inundado de cenas que pedem detalhamento,
discussão, questionamento, impressões fortes – mas não será em
Cannes o momento para isso, com a “maratona crítica” pela qual
passamos (e com o filme ainda inacessível para a maior parte dos
leitores). Por enquanto o que basta anotar é como Trabalhar
Cansa é objeto raro e impressionante (ainda mais como um primeiro
longa), e que sua capacidade de filmar um Brasil que se pretende
diferente, mas que ao mesmo tempo corre em falso, é algo a se
reter.
Na
verdade, se seria exato dizer que Trabalhar Cansa é um
filme sobre a paralisia, tanto quanto ele é sobre a tentativa
de se mover, a mesmíssima descrição serviria para o iraniano Au
revoir, exibido na mesma seção de Cannes. Como no filme brasileiro,
aqui temos o pulso preciso retirado do estado de coisas de um
país num momento histórico, ainda que encarnados quase exclusivamente
numa personagem (a partir da qual todo um entorno se constrói,
mas sempre respondendo diretamente a ela). Temos uma mulher iraniana
urbana e contemporânea, cujos detalhes da vida nos vão sendo passados
bem gradativamente ao longo da narrativa: ela está grávida a partir
de um plano ao qual vamos tendo acesso bem aos poucos; é formada
em Direito com especialização em direitos humanos e não consegue
exercer seu trabalho, precisando ganhar dinheiro de outras maneiras;
seu marido é um jornalista que se encontra distante, praticamente
exilado dentro do próprio país. Vamos acompanhando sua rotina
em pequenos e preciosos detalhes, e aos poucos entendendo que
a trama que se forma em torno dela como uma teia não terá outra
opção que não terminar por enforcá-la na corda que tece.
Como
no filme brasileiro, Mohammad Rasoulof realiza aqui um pequeno
prodígio de rigor cinematográfico (construção dos quadros, atores,
uso do espaço e do som), que vai montando um sentimento de thriller
a partir do que é pouco mais que um drama pessoal. Também como
em Trabalhar
Cansa, chama a atenção a capacidade de construir
cenas pregnantes e firmes como blocos isolados, ao mesmo tempo
em que vai-se estruturando uma narrativa precisa. Cenas como a
da retirada da TV a cabo da casa, ou a chegada dos policiais no
elevador são assustadoramente precisas e eficazes. Algo aqui (que
vai bem além do fato de que o aborto acaba surgindo na
narativa) nos lembra bastante de 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias,
com um essencial detalhe decisivo de diferença: no filme romeno
reconstituía-se um sentimento de mundo já seguramente ancorado
no passado como forma de iluminar o presente. Já aqui se trata
de um filme sobre o Irã de hoje, feito no calor da hora, por um
cineasta impossibilitado de viajar e de trabalhar. Tudo isso poderia
servir apenas de discurso fora do filme para legitimá-lo, mas
Au revoir não precisa desses subterfúgios: é um grande
filme, e é isso realmente o que importa.
Maio de 2011
editoria@revistacinetica.com.br
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