in loco - cobertura dos festivais

Caos (Heya Fawda), de Youssef Chahine e Khaled Youssef (Egito/França, 2007)
por Cléber Eduardo

Ruídos entre o específico e o universal

Os quatro filmes de Youssef Chahine exibidos antes na Mostra Internacional de Cinema nos preparam para O Caos – este feito em co-direção com Khaled Youssef, seu co-roteirista e assistente de direção nos filmes mais recentes. Porque de fato ou procuramos assimilar o filme tal qual é, com suas especificidades formatadas por origem, cultura e autoria, ou não há aproximação possível com o encadeamento das imagens. É necessário esquecermos por pouco mais de duas horas os códigos e os contra-códigos de cineastas e de cinematografias mais familiares. 

Não que Chahine seja um desafio para o entendimento, nem tampouco nos soe como um alienígena – como é o caso de um Apitchatpong Weerasethakul, “o mais único” dos cineastas em atividade em 2007. Diante dos filmes de Chahine, se há uma resistência de adesão imediata, a razão está menos na ausência de códigos, como pode acontecer diante dos filmes de AW, e mais na abundância e no reconhecimento deles. O diretor trabalha dentro do estatuto do melodrama à moda árabe, à sua moda própria, com soluções dramáticas e visuais facilmente tomadas por excessivas, didáticas, maniqueístas e caricatas, dentro de uma política e de uma estética de estúdios que pode apressadamente passar por ultrapassada.

Sem uma percepção íntima da filmografia de mais de 30 longas do diretor, sem a mesma proximidade com a produção egípcia contemporânea à filmografia do cineasta desde 1949, torna-se quase uma utopia assimilar seus filmes dentro de um contexto egípcio, em relação ao  conjunto de seus filmes e em associação com outras cinematografias com códigos em conexão. Portanto, diante de um filme de Chahine, assim como no interior das narrativas de Apitchtpong Weeresethakul, temos de lidar com esses ruídos entre a emissão e a recepção. Talvez sejam esses ruídos entre contextos diferentes de cinema, entre aparentes deslocamentos de tempos históricos em uma mesma contemporaneidade,  que inviabilizam uma mais expansiva internacionalização de Chahine, que, apesar de bem quisto pelos festivais de primeira linha, não circula tanto quanto outros cineastas “singulares”, como Abbas Kiarostami, Hou Hsiao Hsien e “AW”, que são percebidos como continuadores de uma modernidade do cinema, inclusive no tanto que guardam de mistério nas imagens, de zona de nebulosidade no encadeamento de sentidos.

Pois em Chahine não há mistério, não há zona de nebulosidade. Há tão e somente uma soma de acontecimentos espetaculares, trabalhados com o empenho em se deixar tudo muito claro, para serem mostrados em seus efeitos cênicos assumidos como tal, sem nenhuma procura de efeito de real ou de naturalismo – ao menos para nossa percepção de efeito de real e de naturalismo. Em Chahine, a representação não usa disfarces. Ela é o fim, não apenas o meio. Quando nos colocamos à frente e por dentro de O Caos, resta a quem conhece apenas quatro filmes de Chahine (O Sexto Dia/1986; O Destino/1996; A Outra/1999; e Alexandria Nova York/2003) assumir o olhar curioso diante da representação, de modo a reter o que se representa, mas também a própria codificação de como se representa. Já sabemos com alguma segurança que Chahine trabalha dentro de certos protocolos, do humor ao melodrama, e os emprega para conectar dramas individuais aos políticos, tanto indo fundo na experiência particular dos sofrimentos desdobrados pela intriga quanto vinculando esses dramas a situações caracterizadores da sociedade ou do Estado egípcio.

Não é diferente em O Caos. Nos primeiros minutos, o que interessa é apresentado, com cartas baixadas, sem enrolação, personagens já dispostos em seus lugares dramáticos, nos quais se instalarão. Após imagens de manifestação na rua e repressão policial, dando-nos por recorte uma atmosfera de turbulência política, na qual Estado e sociedade se agridem, surgem os núcleos de tipos. Temos lá a mocinha apaixonada pelo filho da professora, o filho da professora às voltas com o trabalho de promotor e com o ciúme de uma noiva vulgar para os padrões locais, a mãe do promotor na função de cupido entre ele e a aluna apaixonada, e um policial corrupto, violento e patético que cerca a mocinha de todos os jeitos.

Dado esse quadro, vamos aos detalhes. Se está evidente o posicionamento do filme ao lado da mocinha e do promotor, se está explícito o repúdio à vulgaridade ocidental da noiva do promotor (por ela usar mini-saia,  fazer tatuagem e dançar sensualmente com outro homem), se está escancarado a condenação do autoritarismo do policial corrupto (mostrado como um tarado, um torturador, um voyeur e um estruprador), o confronto dicotômico entre essas representações será relativizada. Está claro para o discurso pedagógico do filme quais os lados a se defender e quais aqueles a serem atacados. A defesa é do senso de justiça e dos afetos autênticos. O ataque é dirigido à ocidentalização/vulgarização da mulher, sempre a partir da imagem e das ações que valorizam seu corpo como superfície sexualizada, e contra o emblema de um Estado corroído pela corrupção, sintetizado na figura do policial.

No entanto, essa figura tratada nos mínimos detalhes como asquerosa, uma célula maligna da sociedade egípcia, que goza com o sádico exercício de poder, ganha uma porção de humanização sob o uniforme e acima de sua condição de força/poder. O policial é vidrado na mocinha e, se tortura nos porões os jovens envolvidos com política, também chora pela não-posse dela. Na impossibilidade de exercer poder sobre suas ações e sentimentos, ele prega na parede um pôster dela de biquíni, imagem do rosto dela montada com o corpo de uma modelo. Uma imagem para fetiche, uma imagem-fantasia apenas.

Se é apresentado como o vilão em cima de quem o filme vai sapatear, o policial, sem jamais deixar de manifestar sua tirania, ganha contornos patéticos e humanos em sua obsessão sexual-amorosa, que pode ser a extensão de sua sede de poder, mas traz consigo algo aquém ou além dessa relação (sexo = poder). Existe uma franja na construção do personagem que vai inflacionando sua importância, deixa-o na linha de frente da narrativa e faz de sua figura a única verdadeira questão de O Caos, seja porque age como age com todos ao redor, seja porque será o alvo de uma reação popular nas ruas.

Cabe destacar que, os traços políticos em O Caos sejam obviamente presentes, o contexto é ignorado. Não sabemos contra ou a favor do que é a manifestação no começo do relato, assim como ignoramos o tipo de envolvimento político dos torturados pelo policial. Uma rara informação de contexto nos chega discretamente por meio de um diálogo no qual se informa sobre a censura aos beijos nos filmes egípcios. Pois essa operação parece-nos bastante funcional para os supostos propósitos de Chahine, que, em vez de ir ao esqueleto social, opta por se concentrar na essência das forças em conflito. Ou seja: interessa apenas colocar em quadro situações representativas de uma turbulência política e de um aparelho estatal repressor sem limites em seus desmandos.

È o Chahine dos quatro filmes conhecidos pelo crítico? Apenas em parte. Desde os primeiros momentos, os únicos com o efeito de real tal qual conhecemos, percebe-se uma dinâmica, digamos assim, mais palatável para os não egípcios, com cortes curtos, câmera mais instável, que pode ser opção autoral ou marca da presença dos co-produtores franceses. A relação da câmera com os atores também dá a impressão de estar menos suave, mais leve, sem um certo peso do aparato cinematográfico e de sua mobilidade nos filmes anteriores.

No entanto, sim, é o mesmo Chahine, ao menos na célula-mãe. Se em alguns momentos parece compromissado apenas com o humor e com o insólito, na verdade logo vemos o diagnóstico do estado das coisas a se manifestar em uma aparente zona de escape. Pode-se localizar isso na seqüência do ritual erótico das detentas para os detentos da cela vizinha. Por meio de um buraco, os homens olham as mulheres dançando, algumas bem decotadas, constituindo um ponto de fuga da cadeia. Prazer em meio ao confinamento. Porém, trata-ds negócio. Só pode observar o show quem pagar. As mulheres se comportam como mercadorias físicas e os homens assim a consumirão (como imagens-mercadorias).

Em outros dois momentos, Chahine, filmando o sangue, nos dá dois registros. Ao mostrar a mancha de sangue no vestido branco da mocinha, sangue também a escorrer por suas coxas após ser estuprada pelo policial, o diretor nos dá informação na imagem, mas logo nos põe em dúvida. O sangue é do hímen rompido, informação que salienta a pureza, sobretudo a contrastando com a vulgaridade da noiva do promotor, ou é uma hemorragia interna, conforme o diagnóstico de um médico?

Em outro momento, esse puramente poético, o policial atira no pôster da mocinha, um tiro em cada olho, e os olhos começam a sangrar. A imagem sangra. É a própria vida. Mas está cega, olhos sangrando.  Uma imagem que é uma vida em si, como reivindica Chahine, mesmo quando reproduz, como no caso do pôster e como no caso da corrupção policial, algo anterior a existência dela. No entanto, uma imagem cega, cegada pela força policial, do Estado. São muitas as considerações a serem feitas sobre as operações de Chahine. E ainda muitas os deslizamentos de nossa percepção diante de suas especificidades. De qualquer forma, os olhos do pôster sangrando, com quase certeza, é dos signos mais fortes do cinema contemporâneo. Mesmo ficando com seu sentido nas franjas.

Outubro de 2007

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