Cão sem Dono, de Beto Brant e Renato Ciasca (Brasil, 2007)
por Paulo Santos Lima

O corpo, sempre

Após quatro longas “ilustrativos”,Cão sem Dono surge como um filme de constatação: é um fato que vida e mundo criado pelo homem são difíceis. Seja através do predatismo selvagem entre classes de O Invasor, da inerente dinâmica de traições de Os Matadores ou ainda da violência amorosa do (auto)destrutivo crítico teatral de Crime Delicado, o cinema de Beto Brant sempre nos apresentou um mundo áspero, sobretudo violento, que funciona numa lógica indiscriminadamente impiedosa e, ironicamente, criada pelo próprio homem. Diante desse panorama, temos agora Ciro (Júlio Andrade), o protagonista de Cão sem Dono, um ser estático e de um ceticismo que o torna o mais físico dos homens. Orgânico. Lidando com a vida pelo viés físico, do corpo sendo a conexão com o mundo, existindo biologicamente, Ciro não é homem de abstrações. Nem mesmo no amor há transcendência para este jovem tradutor recém-formado: o amor é sexo.

Mas a consciência de Ciro sobre o granito pontiagudo da vida não o faz mais maduro. A maturidade, aqui, é um amálgama entre matéria e abstração, corpo e sentimento. Uma maturidade que surge, sobretudo, diante da filmografia do Brant diretor e do Renato Ciasca produtor (e que aqui divide a direção com seu parceiro de longa data). Um cinema de dramaturgia “realista”, apoiada na concretude das ações e motivações, e que agora percebe que para se viver na prosa áspera do mundo, é necessária uma dose de poesia. Ou seja, se antes havia um registro bruto do mal-estar em se estar num mundo sob constante ameaça, agora, em Cão sem Dono, a busca é pela filosofia. Encontrar a beleza no exercício existencial.

Isso, contudo, não faz este Cão sem Dono uma fita anti-brantiana. Pelo contrário, é na ordem do físico (ou da física: dos espaços, das mesas de jantar, copos d’água, comida, sexo, doenças) que estará o olhar da câmera, que será fiel apenas naquilo que é sobremaneira evidente: o instante, o momento da cena, das ações mais banais. Não é à toa que o primeiro plano do filme mostra-nos Ciro e Marcela (Tainá Muller), transando sem nenhuma aura metafísica. Mesmo Marcela sendo o grande dado teórico do filme, a chave de transcendência e possível encaixe de Ciro nesse mundo que pede razão e sensibilidade (e de uma beleza tão suprema quanto à da musa Inês, interpretada por Lilian Taublib em Crime Delicado), é junto ao rapaz e à sua caligrafia de vida que o filme seguirá do início ao fim.

Ciro funciona, assim, como um contraponto ao resto das coisas. Seu apartamento (colchão no solo, mesa e cadeira solitárias, pequena bancada em pioneira estadia na cozinha de paredes maltratadas) é a torre onde, pela evidência da imagem, percebemos a perdição existencial deste homem. Tão sem dono quanto o cão que encontra na rua e que será, também ele, uma presença mais física que simbólica graças ao tratamento que a imagem lhe dá (um corpo canídeo junto à bela carne de Marcela e o estar perdido de Ciro). O corpo, sempre: não veremos, por exemplo, Ciro repetir a sensibilidade de seu zelador, que é pintor e percebe em Marcela uma luz, algo a ser levado à contemplação, à arte e celebração.

Se o filme opta pela casca dos seres e das situações vividas por eles, apostando na paciência de planos mais alongados para mostrar o instante e recorrendo às elipses que engorduram o detalhamento das ações e reações, o suor das imagens convidará à nossa simpatia com Ciro. Construir esta simpatia é um êxito espetacular de Brant e Ciasca, pois a chave de abordagem aqui é completamente bressoniana, beirando a palidez misteriosa do personagem de A Humanidade, de Bruno Dumont. A apatia estampada no rosto de Ciro, o distanciamento que ele mantém com a apaixonada proto-namorada Marcela, sobre a qual nem mesmo num poema ele consegue sair da esfera do físico (“Marcela é gostosa”, meio que é dito no improviso dele à moça), não tirará sua humanidade. Haverá, inclusive, no melhor estilo dramatúrgico, um trajeto de mudanças, detonado pela doença de Marcela, que faz com que Ciro tome consciência da finitude do corpo (aquilo que ele mais preza do mundo), e também o quanto há de transcendência a partir do corpo (quase nada evidenciado pelo filme).

Cito, aqui, o que Inácio Araujo disse em seu texto, sobre Marcela ser o elemento que traz drama à vida de Ciro. Será através do drama, algo típico da pauta dramatúrgica de um cinema clássico, que o protagonista sofrerá o inferno para, enfim, estar apontado para a vida adulta — ou a vida, digamos, “filosófica”. Mas a forma é mais moderna, porque trabalha-se menos na simbologia e mais no estar das coisas em cena: Ciro buscará, bêbado, Marcela pelo telefone público, ou tomará uns tragos com Lárcio, do qual ele manteve-se num distanciamento quase nórdico até este instante. E será num arroubo medonho, ele tentando o decreto final à sua carne, destruindo o apartamento que, tão material que é, era uma extensão dele próprio, de seu estar perdido no mundo.

Essa tradução naturalista de situações romanescas em Cão sem Dono encontra seu primor no tratamento dramático e temporal. Ciro precisa de Marcela, seu oposto, para encontrar o engate com a vida e, consequentemente, com o mundo. Ser, portanto, seu pai, que, num belíssimo diálogo, deixa claro (ao filho e a nós) que também esteve à deriva das coisas e que “quando a gente percebe o eixo, parece que a vida ganha sentido”. É pela presença física dos atores na tela que temos o primeiro momento (Ciro), o drama motivando as mudanças (Marcela) e o futuro (o pai). Tempos, estes, que quebram a linearidade, que criam dialéticas que partem e retornam ao momento, à cena, à existência da imagem sobre todo o resto. E, como organismo, corpo físico, o pai é a fusão Ciro-Marcela, e a casa dos pais, o futuro e negação ao moribundo apartamento do rapaz.

Menos ativo que os personagens anteriores do cinema de Brant, Ciro é o que mais age em presença de cena. Como presença, como imagem, como figura livre de significados e raias narrativas, como corpo que é posto à prova, assumindo a sujeita dos espaços, tendo seus interiores radiografados e maltratados pelo álcool, abandonado ao chão de um apartamento quase inabitável. Cão sem Dono é, na verdade, a constatação de que diante desse estado de coisas, menos vale arriscar-se a compreendê-lo e mais em simplesmente viver, estar. Estar como o cão sem nome e sem dono, com sua presença ímpar em cena – ou seja, no mundo.

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