Caótica Ana (idem), de Julio Medem (Espanha, 2007)
por Cléber Eduardo

Diluição das obsessões

Para quem faz seu primeiro contato com o universo do basco-espanhol Julio Medem, Caótica Ana pode causar um estranhamento positivo, uma sensação de se estar conhecendo um cineasta único, que parece ter algo de muito importante a nos mostrar e dizer, algo de transcendente, de misterioso, de sagrado, uma revelação qualquer, com inevitável atmosfera de esoterismo intelectualizado e chique. Para quem tem acompanhado a filmografia de Medem, porém, mesmo se observando e apreendendo todas as características e sensações acima colocadas, Caótica Ana pode causar um estranhamento familiar, uma sensação de se estar diante de um cineasta único, sim, se comparado a outros contemporâneos seus, mas um cineasta que, em sua provável ou suposta obsessão por certas questões e certos modos de operar o cinema, parece acomodado em uma auto-formatação, deixando de ser único em relação à sua filmografia para se tornar um diluidor dela.

É a velha questão crítica. Até onde algumas repetições de procedimentos e preocupações na filmografia de um cineasta é um mérito em si mesmo? Até onde é um aprofundamento de uma obsessão ou de uma questão estética? Até onde é uma fórmula gerada pelo êxito de uma marca de estilo e de olhar legitimada em certo circuito de exibição e de festivais? Uma vez com sua autoralidade reconhecida (com Vacas, Esquilo Vermelho, Terra e os mais conhecidos no Brasil, Os Amantes do Círculo Polar e Lúcia e o Sexo), Medem não estaria apenas atendendo a demanda do freguês? Não estaria apenas confirmando características esperadas de seus filmes? Talvez seja o caso – como talvez seja o de Tsai Ming-liang, o de Carlos Reygadas, mesmo o de Pedro Almodóvar.

Esse universo nos tem mostrado uma visão para o ser humano como parte integrante, nem só sujeito, nem só marionete, de uma (des)ordem cósmica manifestada pela relação homem/mulher/natureza. Medem trabalha sempre com acontecimentos sintomáticos de uma força superior, que interfere no conjunto dos acontecimentos ao redor dos personagens, que produz o conflito e as ansiedades deles, que gera uma incapacidade de compreensão das coisas como elas se mostram aos olhos e a percepção em geral.

Há sempre um enigma em seus filmes, algo a ser desvendado e entendido, que vai tirando os personagens de seus centros, jogando-os em abismos, impulsionando-os para quedas dentro de si mesmos, para seus labirintos internos, até um gesto ou uma soma de acasos recolocar a desordem nos trilhos e abrir-se uma chance de harmonia, nem que uma harmonia, eventualmente, um tanto ambígua como tal.

Medem planta alguns sinais desse engima. Em um primeiro momento, uma aula sobre a precisão dos falcões durante a caça, a crueldade da natureza, sua beleza selvagem e desconfortante, sua lógica determinista. Não veremos mais aquelas pessoas desse primeiro momento. O que é aquela seqüência? O que se pretende com ela? Os falcões não serão uma questão em si, mas outras aves aparecerão, também em imagens de violência, sem a mesma beleza selvagem do começo. Natureza hostil

A noção do determinismo com a qual a natureza se equilibra em seu jogo de forças é extensiva à protagonista, quando, em uma sucessão de hipnoses, após ataques de pânico geradas por imagens e sensações intensas, enxerga e revive os momentos finais e violentos de suas vidas passadas. Prisão a um ciclo que se repete em cada vida. Medem parece obcecado por essa questão, mais religiosa que filosófica, sobre o espaço de ação do humano, limitada pela força invisível que exige menos racionalismo para se perceber.

Caótica Ana parece ser um desdobramento ou uma repetição de Lúcia e o Sexo. Temos uma jovem espanhola, Ana, doente de amor por um jovem árabe de um povo do deserto. Temos a separação deles causada por um recuo dele. Temos ainda, surtos, memórias de traumas, um aparente descontrole. É difícil não ver Medem como um metafísico – não no sentido de um Carl Dreyer ou de um Andrei Tarkovski, que procuram o mistério das coisas nelas próprias, no plano, no tempo da imagem diante de nossos olhos. A metafísica de Medem manifesta-se no fluxo, na combinação entre os planos e os acontecimentos, sem preocupação com a composição, com o tempo de uma imagem, com a maneira de colocá-la na tela.

Embora esteja evidente a inserção de um cineasta no “circuito de arte ou de autores”, embora haja uma preocupação em ter um estilo chique em sua plasticidade etérea, Medem já havia mostrado em Lúcia e o Sexo, e de forma mais discreta em Esquilo Vermelho, uma recorrente atmosfera de erotismo sem filtros de sofisticação, tentando sujar a plasticidade de sua textura e de seu fluxo com atentados ao alto gosto cinematográfico. Em Caótica Ana, nesse sentido, nada se compara ao momento em que, nas preliminares sexuais com um político de alto escalação dos EUA, comandante político dos ataques ao Afeganistão e ao Iraque após 11 de setembro de 2001, Ana defeca em seu rosto.

Esse é o momento em que a jovem Ana, sempre morta nas vidas passadas em gestos de opressão contra sua figura ou em ataques contra seus povos, encontra espaço para reagir e depois sobreviver. É o momento ainda que o letreiro lá do começo, instalando a história em setembro de 2001, faz sentido dentro do percurso da personagem, mas um sentido forçado, enfiado, ligando as opressões em suas vidas passadas à caça a árabes suspeitos. Um mundo como tribo, como choque e como perseguição, como traumas e emancipações. Parecem claras quais são as questões de Medem. Mas como ele pode agir, uma vez tornadas claras essas questões, para transcendê-las? Aqui, parece ter se sentado na poltrona e acendido o charuto dentro de seu projeto único e de risco.

Outubro de 2007

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