O
Casamento de Rachel (Rachel Getting Married), de Jonathan Demme (EUA, 2008)
por Julio Bezerra Entre
o caos e o controle
Vindo de dois bons documentários
(Neil Young: Heart of Gold e Jimmy Carter Man from Plains), Jonathan
Demme havia confessado, após o remake de Sob o Domínio do Mal (2004),
ter perdido o interesse por filmes de ficção. Esse dado nos ajuda entender um
pouco melhor o ponto de partida (e chegada) deste O Casamento de Rachel.
No longa, Kym (Anne Hathaway continua telegrafando as emoções de sua personagem,
embora essa seja de longe sua melhor atuação), depois de um longo período numa
clínica de reabilitação, retorna a sua cidade natal para o casamento de Rachel
(Rosemarie DeWitt), sua irmã mais velha. A chegada de Kym reabre uma antiga ferida,
abalando a harmonia da família Buchaman. A trama poderia
render um drama sombrio e melancólico, mas Demme aposta num atrelamento à vida,
à naturalidade dos comportamentos, e faz de seu filme uma celebração. Não por
acaso, vemos um primo de Demme interpretando um padre, e temos um dos grandes
mentores (Roger Corman) e um amigo notável (Robyn Hitchcock) do cineasta entre
os convidados do casamento. Mas trata-se também de uma celebração de uma determinada
visão e proposta para o mundo. Estamos em um terreno multicultural: o noivo é
negro, a noiva é branca; ela e suas madrinhas estão vestidas em Saris indianos.
A trilha da cerimônia vai da música eletrônica ao samba genuinamente brasileiro,
passando pelo jazz. Tudo muito over, beirando mesmo o exagero, é verdade,
mas sempre ciente desse risco. Filmado
em HD, O Casamento de Rachel foi claramente orquestrado como se fosse um
filme caseiro. A câmara segue os movimentos dos atores, suas decisões mais repentinas.
Na seqüência do casamento, uma câmara de vídeo parece passar de mão em mão. A
idéia é imprimir ao filme um sentido espontâneo de coisas se desdobrando no momento
mesmo das tomadas. O cineasta e a roteirista Jenny Lumet (filha do grande Sidney)
empreendem uma narrativa anárquica, que mais parece interessada no momento do
que na seqüência. Há uma forte sensação de caos. Um caos que domina a ação narrativa,
mas sobre o qual o cineasta demonstra exercer controle. Mas a idéia nem sempre
funciona, pois O Casamento de Rachel não parece ter muito de acidental
em sua realização, embora suas imagens não sejam exatamente rigorosas e precisas
em seus ritmos, objetivos e eficiência. Quanto mais grita "Verdade!",
menos verdadeiro ele se torna, como na seqüência em que pai e genro fazem uma
aposta na cozinha, em um momento em que essa estratégia parece por demais auto-consciente
e acaba saindo pela culatra. O que Demme busca (e nisso
nos faz lembra de certa maneira Jean Renoir) é retomar uma estrutura em que a
história não é narrada exatamente a partir dos personagens, mas através deles.
Demme se mostra devedor de Robert Altman e seu Cerimônia de Casamento (1978),
um filme que põe em questão a família e seus procedimentos. Ambos se refugiam
em um sentido de humor deveras agressivo e se detêm na anarquia galopante das
relações familiares. O tema de Demme é a família, não apenas no sentido de agrupamento
de pessoas do mesmo sangue e sobrenome, mas seu próprio papel na conformação dos
indivíduos. A família de Rachel não é o que poderíamos chamar de disfuncional.
Ela gira em torno de uma grande perda. As irmãs vivem em conflito, entre ataques
envenenados. Mas elas sempre recuam em belas demonstrações de carinho alguns fotogramas
antes da explosão. A família não é neste filme um espaço para lições fechadas
de moral e bons costumes, mas um terreno em que podemos nos compadecer, debochar,
chocar com o comportamento humano, do mais nobre ao mais mesquinho. Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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