cinemateca cinética
Cassavetes, o real e o mortal
por Paulo Santos Lima
Difícil detectar onde
foi escoar o estilo
de John Cassavetes, que é, ao lado
de Orson Welles, o grande cineasta moderno
norte-americano. Algo
de sua visão
de mundo foi parar
no cinema genial
de Scorsese. Outro tanto
virou citação e desfigurou-se no cinema indie norte-americano,
como podemos ver
na farsa Full Frontal, de Steven Soderbergh, ou
até renasceu belamente no cinema
dos irmãos Dardenne. Mas
será que precisamos achar
mesmo onde
foi parar esse
cinema que
desde o fim dos anos
50 amarrou elementos tão
modernos quanto herdeiros
da tradição da avant-garde
norte-americana e das inquietudes da nova geração
de críticos franceses? É necessário encontrarmos uma bula
que
ordene todo um
fazer, toda
uma destilação de procedimentos que foram se negando e se confirmando
ao longo de décadas, da atuação
à direção, entre
o Shadows iniciado em
1957 e o Big Trouble concluído em
1986? Não seria melhor ficarmos com os filmes,
únicos objetos que
podem trazer novos
diagnósticos e sensações, pondo à vista
(e em discussão)
elementos visuais e éticos
das filmagens, que podem ser
utilizadas em outros procedimentos cinematográficos
na produção de hoje?
O Cassavetes que interessa à humanidade está, sobremaneira,
em seus
filmes. Portanto,
bastam ao mundo os filmes
de Cassavetes, e não o homem Cassavetes. Um
encontro com
a imagem desses filmes, e não com
seus
bastidores.
Pois,
de que interessa sabermos que
Cassavetes manipulou e inseriu sons em
Shadows se o áudio, na tela, parece som
ambiente, captado in loco?
Como bem
disse o crítico Thierry Jousse, sobre a improvisação,
não faz diferença
se Cassavetes deixava seus atores improvisarem bem
menos,
largando-os à criação apenas após
devidamente encaminhados por
uma prévia leitura
de roteiro, porque
o resultado, no final
das contas, parecia o mesmo:
o de uma improvisação total.
O processo deste cinema tão
especial até
nos interessa como prólogo,
introdução, tamanha a sua
especificidade e raridade. Semelhante a um
trabalho em
família (inclusive
com
sua esposa, Gena Rowlands, e o amigo
Seymour Cassel na atuação), a fiel equipe
doava parte de seu
tempo para
cada filme,
o que significava meses de gravação e de montagem
até
terem o corte final,
anos depois. Pai
mais
esperto que
bondoso, Cassavetes deixava seus câmeras
manobrarem seus brinquedos com
total
liberdade na cena, para,
na edição, impor
sua
autoridade. Um jogo
de forças e de livres
iniciativas individuais
vigiadas por um
capataz amigo,
em clima
de filmagem que mais
parecia uma existência, um estado
de espírito.
Esse
modo de produção
tão atípico
quanto moderno resultaria, claro,
num cinema idem.
Um cinema
de encontro com
a vida, com
as discrepâncias do mundo,
e não na conformidade
artificial do drama
burguês (vulgo
cinema clássico),
que pinta
um
mundo que
sempre caminha para
a resolução, para
a justiça, para
a resposta. Os personagens
de Cassavetes buscam respostas entre
eles, amam reclamando ser amados,
lutam na escuridão, já que
não
podem operar sozinhos a engrenagem
do mundo. Em Faces, Richard
vai à amante e percebe que a felicidade
matrimonial é uma impossibilidade e tenta
voltar à sua mulher,
Maria, que já
tentou, em horas
de abandono, tapar sua
carência.
Num
horizonte de incertezas, alegrias
conectadas a frustrações, uma das grandes belezas dos filmes
de Cassavetes é registrar essa luta eterna
dos personagens para
encontrar algo
que
transcenda sua dor,
que lhes
dêem respostas sobre
o mundo incerto, onde as pessoas
digladiam-se verbal e fisicamente por amor
ou calor.
Uma busca que
alimenta a vida, que
tenta
desvendá-la. Talvez daí venha o jargão de que Cassavetes filmava a vida.
Sim, mas
com uma radicalidade sem
par, ou, talvez,
ao nível de Jean-Luc Godard e Abbas Kiarostami, o primeiro
lidando com a multiplicidade de forças da natureza
e do homem, o último
pegando o registro “realista” do plano-sequência para reencontrar
o tempo das coisas.
Já
este cineasta
americano, sabendo das inconstâncias da existência, da avalanche
de acontecimentos, das imponderabilidades do mundo ou
da ignorância do ser
humano sobre
o seu momento
último, pôs seu
cinema junto
à ação presente,
com os corpos
tateando os ambientes, esbarrando-se em outros,
sendo usados cenicamente (e politicamente?) pelo
personagem para
este tentar um
encaixe aveludado no mundo.
Um cinema
físico, tanto
pela
carnalidade captada pela câmera como
pelo
existencialismo desses corpos, que são
sobretudo aquilo
que
fazem, jamais símbolos ou
arquétipos. Corpos
narrativamente ocos,
pois a história
que
carregam será dita somente por
sua
boca ou
pela de alguém, já que
esses filmes e quase
todas as suas seqüências
começam com “o bonde andando”, com
a lente chegando a uma ação
que já
acontecia antes e saindo antes de cena,
expulsa pelo
corte da montagem.
Em
termos formais, o resultado
é ainda mais
moderno. Sem
apresentação de personagens,
largando-os pelos instantes
de cena, sujeitos
às mais improváveis
ações, um
filme de Cassavetes é sempre vazado por
outras tantas questões, en passant, como o feminismo
(Faces, 1968), a velhice (Opening Night,
1978), a alta arte
assassinada pelo pastiche (Shadows, 1959) ou
o dinheiro a serviço da vida
(The Killing of a Chinese Bookie, 1976/78). Os gêneros
consagrados pela história
do cinema são
visitados, mas o destino da viagem
cassaveteana é sempre o tal encontro
com
o momento, qualquer momento,
e disso vem todo esse
poupourri de assuntos humanos.
Menos
aura e mais
matéria. Daí que entra em
cena
uma câmera na mão que
precisa chegar
a esses corpos
para
exibi-los na tela. Não é uma câmera
que
observa, mas sim
uma câmera que
está. Está, simplesmente, inclusive sofrendo esbarrões
dos atores. Colando no balé de rostos,
que muito
dizem sobre os personagens,
num registro fisicamente próximo do Carl Dreyer de Joana d’Arc,
como lembra Thierry Jousse, mas jamais
sendo uma janela da alma. Como
nós,
a câmera chega
aos lugares avistando os espaços, que aqui
são
itens mais
físicos que
sociológicos, pois pouco
determinam e nada explicam sobre os personagens
de Cassavetes. Inesquecível, a fotografia p&b granulada
e filmada por esta câmera que
imita nossos olhos
investigando o mundo.
Isso
é algo quase
tão marcante
quanto a experiência de assistir
a The Killing of a Chinese Bookie, surpresa para
alguém que
julgava ter visto
o melhor de Cassavetes (no caso, a obra-prima
Faces). O diretor, aqui,
passa pelo
pornô
soft setentista e resvala nos
musicais da Hollywood clássica para
mergulhar num outro gênero
— o noir — e então revolver
tudo aquilo
que ele
agregou em sua
filmografia mais autoral, inclusive a não distinção
entre
seres bons
e maus, o que é curioso
para
um filme
policial.
Se
em Faces e Shadows,
ele havia retrabalhado o material filmado para novos
sentidos, em The Killing.temos dois
cortes que
criam sensações distintas a quem assiste, mas
que passam pelos mesmos
lugares e chegam ao mesmo destino.
A cópia de 135 minutos, lançada
em
1976, fracasso no circuito comercial,
começa com
um
soberbo plano-sequência onde veremos Cosmo
Vitelli (Ben Gazzara) chegando a uma mesa
e conversando com alguém no extracampo (outra
característica do cinema
de Cassavetes, rebelde à moldura pictórica
clássica e ao pingue-pongue
do campo/contracampo). A de 108 minutos, relançada dois
anos
depois, já parte
do fluxo de experiências
desde
o início, com Cosmo
em
vários espaços.
Cosmo
(ou Gazzara) é um
ente moderno,
agindo por impulso ou
vontade que
não
diz respeito a nós ou
à trama. Despreza
o capital, afinado à política
do seu diretor,
que certa
vez disse que
o dinheiro era
o último refúgio dos solitários.
É um artista,
dono de uma boate
de striptease que
lembra a vaudeville, mais uma peça
de resistência num mundo
de resultados, expresso
na platéia que
ignora a mise-en-scène e sóquer
a nudez das belíssimas mulheres – assistida, aliás,
por uma câmera
que
procura a composição formal
e não os peitos,
curvas e bundas.
Dândi, Cosmo
está financeiramente arruinado, mas
não perde a pose.
Pega suas
dançarinas, vai a uma partida de pôquer vestindo um
smoking e perde tudo. A dívida
lhe custará um
serviço forçado para
a máfia. Mas
o futuro nublado
não
dobra este
homem, assim como
a seqüência do assassinato
do tal bookmaker
chinês será de uma sobriedade ímpar,
não submetendo o filme aos gatilhos
do thriller. Porque, neste cinema,
é o corte quem
surpreendendo o espectador, e não o tobogã
da trama.
Nobre
e precário, vivo e morto,
Cosmo tem consciência
da condição passageira
do homem, por
isso
ele vive o instante, o presente, com
a mesma veemência com
a qual a câmera
de Cassavetes registra esses
mesmos instantes e também
os dos outros personagens da seleta
filmografia. Porque, na incerteza da vida,
a única certeza
é o momento, tempo
no qual a consciência
trabalha junto
ao tempo-espaço. E em The Killing of a Chinese Bookie, fotografado em
colorido artificialíssimo e com
a fusão (ou
confusão) ator-personagem (com Gazzara bebendo, improvisando e sendo
algo entre
Cosmo e...Gazzara) levada ao além,
o tom “realista” típico
do cinema cassaveteano se confirma. Sim, “realista”, porque o cinema
de Cassavetes se faz único menos
por uma estética
completamente consoante com
seu
projeto cinematográfico do que
pela
certeza de que está registrando algo
verdadeiro, real.
A única verdade
que
um filme
pode nos mostrar, seja ele
qual
for, do melodrama ao cinema-verdade, é o da encenação ou,
pelo menos,
o da escolha do diretor, o que
é um recorte dramático.
A busca do real,
no cinema, é a captura
da diegese
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