in loco - cobertura dos festivais

Cavalo de Duas Pernas (Asbe du-pa),
de Samira Makhmalbaf (Irã, 2008)
por Cléber Eduardo

Estimulo à interdição do critico

Não é apenas o patrão mirim sem pernas de Cavalo de Duas Pernas que trata o adolescente contratado para carregá-lo como um eqüino. A diretora Samira Makhmalbaf, que no plano final libertará esse personagem de sua condição de escravo e de homem-animal, reproduz o patrãozinho até lá. Se o pequenino senhor de seus passos coloca-arreio e ferradura em seu contratado, leva-o a participar de corridas com os cavalos e o alimenta como se ele fosse um asno, o filme faz o mesmo sob o pretexto de denunciar a exploração: trata o garoto como um asno.

Pela maneira como filma esse personagem explorado, valorizando seus tiques e caretas relacionados a alguma deficiência, Samira parece querer mostrá-lo como um animal. Quando ele não está correndo desajeitadamente ou emitindo ruídos estranhos, o rapaz sofre quedas e fica estatelado no chão, como uma mula que desaba de cansaço. Quando é demitido, humilha-se, é humilhado, agredido, sempre pelo patrãozinho sádico. Parece óbvio que, se a diretora coloca dois deficientes em condições diferentes, é porque, para além da deficiência, quer expor a maldade do poder, independentemente de por quem é exercido e sobre quem se exerce. Para isso, ela própria, Samira, torna-se uma sádica. Sua câmera está sempre nos lugares onde possamos ver com mais precisão como esse adolescente tratado como cavalo parece um cavalo.

Em alguns momentos, quando o rapaz está no chão durante uma “missão” para agradar seu patrão sem pernas, vemos imagens, paralelamente, de uma égua e seu filhote. Ela o provoca, até agressivamente, para ele levantar. Estamos em uma dinâmica de analogias visuais comuns a A Greve, de Eisenstein, pois, como no filme soviético dos anos 20, que mostra bois sendo mortos no matadouro em paralelo à repressão dos grevistas, Samira faz o mesmo com o rapaz e o cavalo recém nascido. Operação grosseira de quem viu de forma apressada as metáforas de Eisenstein ou de quem as reformulou em nome de seu sadismo estético. Isso porque não existe analogia possível entre uma égua ensinando seu filho a caminhar na vida e um patrão forçando seu escravo mal remunerado a levantar-se para se arrastar vida a fora. Os gestos podem ser os mesmos, mas as naturezas deles são opostas. O dá égua é para levantar seu filhote. O do patrão é para jogar para baixo o adolescente.

Somente quando colocam sobre sua cabeça uma cabeça de cavalo, para a transformação física se concretizar e se amalgamar com a transformação de função social, ele reagirá à situação para se afirmar como um ser humano em uma única imagem. Será essa a imagem que fica conosco quando saímos do cinema, ou será a insistência em mostrar esse personagem arrastando-se por uns trocados?

Não se trata de vetar a Samira a possibilidade de filmar essa história, esses personagens e essas situações, mas de questionar a maneira com a qual filma tudo isso, sempre de maneira sensacionalista e sem nenhuma atitude crítica. Seu interesse está em investir sem nenhuma sutileza e com operações precisas no que há de mais bizarro em situações e tipos já potencialmente vinculados a uma noção de bizarrice. Próximo do final, quando o adolescente cavalga mais uma vez com o patrão nas costas, Samira estiliza o movimento e o fundo do plano, fazendo daquela imagem atroz uma imagem supostamente bonita e poética – o que, para bom entendedor, não deixa burka sobre burka. Estamos diante de uma operação, que, ruídos culturais à parte (e eles sempre existem), quer atirar para os dois lados, para a crueldade da situação e para a poesia, mas fica com a crueldade como operação-padrão do filme (não do personagem “opressor”).

Podemos pensar na reação violenta de Jacques Rivette ao travelling de Kapó, de Pontecorvo, chamando o diretor de abjeto por enfeitar um plano de suicídio em um campo de concentração. Não nos interessa se a mulher Samira é abjeta fora do set de filmagem, mas, no filme, a cineasta Samira chega a provocar movimentos estomacais do crítico. Pode até ser apenas do crítico, até porque, em matéria de percepção, nenhuma lógica é suficiente lógica. Não há nenhuma dúvida de que, na mesma sessão, espectadores reagiram de outras maneiras: pode até ser que alguém tenha, digamos, emocionado-se com as situações. De qualquer forma e independentemente dos demais, esses movimentos estomacais do crítico, de fato, nos recolocam uma discussão crítica. Estaremos nos vinculando a uma visão moral do cinema quando questionamos as atitudes da diretora e de qualquer diretor com seus personagens? Estaremos colocando interdições a certos filmes, afirmando, assim, que certas operações não podem ser realizadas? Talvez.  

O único mérito do filme é, justamente, nos levar a essa reflexão. Seria esse um filme que, sendo como é, merecia não existir? Do ponto de vista racional, todo filme merece ser como é, os aceitamos como são ou não, ferindo-nos como proposta ou nos agredindo como execução. No entanto, todo critico, antes de ser um crítico de cinema, é um ser humano, alguém no jogo do mundo, antes de estar no jogo do cinema. Diante de certas imagens e circunstâncias, o crítico deve tomar uma posição, sob o risco de ser um colaboracionista silencioso de certos filmes. Portanto, que fique claro: Cavalo de Duas Pernas tem todo o desprezo desse crítico, que, se não se calou para ser coerente com o desprezo, foi porque certos filmes, como esse, solicitam sim um ruidoso Não.

Setembro de 2007

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