Cavalo de Guerra (War
Horse),
de Steven Spielberg (EUA, 2011)
por Luiz Soares Júnior
A besta deve viver
“De agora em diante, as fronteiras
dos Estados Unidos passarão para o interior das cidades”.
Delegado de Filadélfia, início dos anos 60, no auge
do movimento de resistência negra.
“Da estética das aparências,
fundada sobre uma imagem estável - presente como
um aspecto de sua natureza estática - às
estéticas da desaparição de uma
imagem instável - presente em seu cinemático e cinematográfico
vôo de escapada - testemunhamos uma grande transmutação
de representações. A emergência de formas
como volumes destinados a persistir até o ponto limítrofe
que lhes fosse permitido por suas matérias deu lugar a
imagens cuja duração é puramente retiniana”.
Paul Virilio, A dimensão perdida
“Quem sonda o símbolo assume todos
os riscos.”
Oscar Wilde.
Em
uma cena de Cavalo de Guerra, um avô fala para
a neta – que não viverá para ver o que ele
lhe descreve – sobre a superioridade da França na
Guerra (estamos na borrasca da Primeira Guerra Mundial). A França
detém o poder, sub-reptício e flutuante, de uma
armada que nenhum outro povo lhe pode emular: os pombos correios.
“Eles são soltos na frente de batalha. São
mandados de volta para casa. Mal fazem idéia de que terão
de atravessar toda uma guerra, o horizonte do horror e da morte,
para reencontrar os seus”.Mais adiante, Spielberg nos dará
uma imagem literalmente (ma non troppo) ilustrativa desta
potência aérea alimentada de sangue, nervos e sobretudo
pelo ethos da auto-superação: um moribundo
cavalo sobrevoa um tanque que se dirige contra ele; mas não
só: trincheiras, soldados atônitos, destroços
e horizontes, tudo é rasantemente ultrapassado pelo cavalo-Siegfried.
Este movimento acelerado para frente – este pathos
da distância e da velocidade irresistíveis –
que alimenta os alucinados travellings de Cavalo de
Guerra fazem do filme uma experiência sinérgica
e cinemática muito particulares. No voluntarismo self-made
nation de Spielberg, a velocidade e a impulsão para
a frente representam um certo conjunto de virtudes éticas
e estratégicas necessárias para afirmar a potência
do indivíduo sobre o mundo (a despeito do mundo), do trabalho
sobre as adversidades do Acaso, do ethos do indivíduo
sobre a Hybris aniquiladora da Natureza (aqui, substituída
pela História). Mas de que indivíduo se trata?
De alguma forma, pode-se dizer que a estrutura clássica
do bildungsroman alemão se concentra no personagem
do cavalo. Bildungsromans eram “romances de formação”
(cujo modelo emblemático foi estabelecido pelo Goethe de
Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister) em que se
narrava o desenvolvimento de um adolescente que, à medida
de seus encontros com personagens e situações arquetípicos
– ou seja: fecundado pela alteridade –, ia ‘aprendendo”
a crescer, ética e afetivamente. O campo e contracampo
entre o rapaz e os cavalos dos 10 minutos iniciais do filme nos
mostram um enamoramento, um enlevamento recíproco que dá
as cartas deste fenômeno de substituição:
ao menino caberia viver esta aventura radical de desterritorialização
de si – mesmo que para reencontrar-se mais adiante, agora
homem (como em todo Bildungsroman) no contato áspero
com a História e seus revezes, com seus próximos
tão distantes. Mas o jogo da câmera efetiva uma troca
(possessão?), invertem-se as posições: o
cavalo, ontem meio (de locomoção para o
reconhecimento do mundo - pensemos na Mocidade de Lincoln
de John Ford) ou companheiro impassível/testemunha estóica
(não esqueçamos A Grande Testemunha de
Robert Bresson), agora é entronizado como a consciência
da obra, o núcleo a partir do qual a experiência
vai se cristalizar numa percepção (os planos subjetivos)
e numa ação (todas as idiossincrasias do animal
estudadas pela câmera, o contracampo insistente –
ou seríamos nós agora o contracampo?).
Inspiremo-nos no aforismo do jovem Marx no 18 Brumário
de Luis Napoleão: A História se repete; a primeira
vez como tragédia, a segunda como farsa. O herói
só pode voltar como um cavalo? Aquiles já ferido
no calcanhar... A consciência como força? A experiência
como Physis? A questão é relevante, mas não
por me aferrar de forma fetichista a um modelo metafísico,
ideal e ad aeternum, do homem como medida de todas as coisas.
Não; cada coisa tem a sua justa e plena medida, todo ente
seu circuito de espaço, tempo, rememoração
e epifania – devires, atrações e repulsas.
Mas trata-se justamente disto: o idealismo viscoso de Spielberg,
seu humanismo rasteiro, sua épica arrasa-quarteirão
permanecem lá, e impossibilitam a crença em
qualquer experiência que nos seja apresentada na tela –
a do cavalo, a do rapaz imberbe e um tanto tatibitati, ou dos
soldados milagrosamente irmanados no interstício das trincheiras.
Tudo é uma única e mesma coisa: herói,
cavaleiro Confederado, ET carente ou menino andróide com
fixação na fase oral (que jamais conhecerá),
tudo é a mesma coisa. Spielberg não animaliza o
humano ou humaniza o cavalo (ou o robô); ele objetiviza
tudo: tudo vira tropo e autômato, tela de projeção
autista onde o menino decalca o mundo segundo o oligopólio
de seus fantasmas. Tudo existe (e serve) a um a priori
que fechará o círculo do chá das cinco (com
umas gotas de gim surrupiadas) entre a boa-consciência e
as ótimas intenções, a crônica pastoral
e o pitoresco historicista (o making of das trincheiras), o autômato
1 e o ganso mecânico 24.
A
rigor, o cavalo (ou o rapaz; ou todo o filme) só existe
em Cavalo de Guerra para selar e justificar a seqüência
em que os soldados de fronts inimigos se reconciliam para ajudar
o cavalo ferido. Esta, aliás, é apenas o clímax
de outras cerimônias de reconciliação: entre
classes e regiões, no caso o campesinato e o Exército
(a afabilidade demonstrada pelo oficial para com o rapaz, ao prometer
que cuidaria bem do cavalo, em que evidentemente se elide o interesse
erótico evidente na sub-texto da cena); entre hierarquias
(o capitão que completa o “soldo” arrecadado
pela tropa para o leilão do cavalo); até finalmente
a História e os homens de boa vontade apertarem-se as mãos
por cima de uma trincheira. Para arredondar e “fechar o
círculo” de seu credo edificante dos poderes manipuladores
da narrativa, Spielberg não hesita em edulcorar com sedas
e fronhas da Henri Maupiou o leito de Procusto da Guerra!, velho
e conhecido demônio por todos nós. Isto sem falarmos
na reconciliação entre a Natureza e o homo faber,
na identificação imposta pelo contracampo entre
o menino ou o cavalo. Em Cavalo de Guerra, personagens
se defrontam, trincheiras se elevam e se arrasam, campos são
arados e mortos tombam, mas haverá sempre mais adiante
um contracampo – ou inflexão narrativa – que
servirá para “justificar” ou corrigir a intrusão
do mundo, em todo o seu esplendor ou horror. Assim, de supetão,
surge sempre um personagem providencial (como o Figaro de Beaumarchais)
para solucionar o imbróglio, salvar o cavalo, redimir a
Alemanha pré-Versalhes, tapar os buracos que a alteridade
ou a finitude abriram na cratera do plano.
Não sou um crítico que tem interesse particular
em narrativa, e sim em mise en scène, mas é
impossível não encarar ela e seus truques diante
de um cineasta que levou o gênio ficcionista do americano
(sublinhado por Serge Daney num artigo sobre o grande Fuller)
às raias do cromo miserabilista. Como em A Grande Testemunha,
de Bresson, temos uma parábola alegórica em que
um animal sofre – Paixão cristã:
não apenas sofrer como massacre, mas no sentido de ser
passivo, objeto de – a pegada do Destino e das paixões
humanas. Mas no filme de Bresson, a premissa é niilista:
a gloriosa linha reta da via-crucis – que conduz o homem
da imanência à transcendência, do domínio
das paixões ao horizonte da Graça – converte-se
num círculo trágico (sim, de bicho comendo bicho)
que condena irremissivelmente o divino à expiação,
mas sem a nota de rodapé da salvação: Balthazar
roda de mão em mão, de acaso em acaso, de paixão
em paixão para acabar numa cova. O que triunfa em Bresson,
cineasta muito mais materialista do que se propaga, é a
Natureza, lamaçal ontológico: o Mal, a corrupção,
a desonra. É a vitória das paixões tristes
de que falava Spinoza.
No
cartoon idealista de Spielberg, dá-se justamente o contrário:
o cavalo vira uma moeda de troca redentora, em que as diferenças
são anuladas e finalmente subsumidas sob a identidade maior
do “Homem Humano”. O
círculo volta a se abrir, e vira esta reta lancinante que
os travellings de Cavalo de Guerra atravessam num aguilhão
desesperado em busca da porta de saída: da guerra, da Morte,
da História...Spielberg não descreve indivíduos,
em sua carne e seu osso, seu opróbrio e sua glória,
porque ele, como todo fetichista, só consegue se deixar
afetar pelos indivíduos vistos como coisas (brinquedos,
em sua maioria). Ou encenados enquanto tais. Não por acaso,
Freud designava o fetiche como uma tela de substituição
do mundo, que nos veda e vela o acesso ao mundo real. O universo
rose bombom de Spielberg (ou cor de fúcsia, quando
filma guerras de game Manhunt) oculta na verdade uma grande e
inenarrável misantropia. Spielberg não
pode filmar um “ser humano demasiado humano”, pois
lhe falta colhão dramatúrgico e senso de chiraoscuro.
Se filma humanos, é para convertê-los em bichos de
pelúcia ou Olympias (a boneca ventríloca de Hoffman)
em 3D. Ou seja: é um grande punheteiro, apegado apenas
a seus fantasmas de Playmobil. Bresson é um cineasta; ou
seja: um materialista; alguém que vai às coisas
e aos campos e filma as coisas e os campos. E se, a partir de
Um Condenado à Morte Escapou, recorta-as em retângulos
e transforma os filmes num verdadeiro quebra cabeças de
coisas, é para intensificar a plenitude de sua presença;
sobretudo, sua presença junto a nós, em nós
– miniaturizá-las para que as possamos tornar nossas;
ou antes: minha.
É muito curioso que seu modelo aparente
seja a progressão narrativa harmoniosa e conseqüente
clássica, os fondus! (desenterrados), o plano geral
“vista panorâmica”, e sobretudo as contra
plongées... curioso e um tanto quanto mórbido,
pois se trata de jogar a pá de cal num cinema que desde
sempre acreditou em presenças – em um espaço
absoluto que preserva a mim e aos meus no plano-relicário,
em um tempo que se concentra no meu gesto como se este fosse o
último, o elo definitivo da cadeia que me integra ao cosmo
- e agora, na iminência de ser enterrado pelo próximo
plano, soçobra; então, neste cinema dos 30/40 que
se emula aqui, todo batente de porta ou reunião tribal
(o Tourneur de Stars on My Crown, o Ford de How Green...)
era o limiar da Eternidade; trazia impresso o selo do litúrgico
e do numinoso – do irremediável e do intempestivo
–, pois se apresentava fixa e integralmente (os
visíveis tetos dos estúdios nas composições
destes clássicos indicavam justamente esta restituição
íntegra, inclusive vertical, de um mundo que podia acabar
no próximo plano, pois a existência da sequência
era um espada de Dâmocles sobre a cabeça do plano,
que insistia/resistia em apresentar-se como autônomo;
o plano, escrínio fascinatório estático
herdado da pintura e do teatro, ameaçado de morte pela
temporalidade radical da sequência).
... Mas o uso do classicismo em Spielberg é
decorativo. Seus travellings violadores e gruas intempestivamente
paranóicas não nos deixam espaço para o habitar
de uma paisagem ou a intensificação de um
mood; eles a rasuram ou o desintegram porque o que lhe
importa é o efeito, a silhueta enquanto silhueta. O que
era índice de presença vira tropo retórico.
Lembro do meu coração baqueando na hora em que o
bordado da mãe do Albert vai se convertendo na fímbria
animada de um cortejo de vermes sobre a montanha...E definitivamente
não estamos falando de um maneirista, de um cineasta que
retoma criticamente uma história do cinema do
passado – acerta as contas com os Pais –, como
Syberberg ou Argento, pois estes aprofundam/radicalizam figuras
de estilo que designam esta diferença, este tempo enorme
que passou desde então. A anamorfose em Argento ou Abel
Ferrara (Blackout), os espelhos em Fassbinder (mise
en abyme que coloca o fora de quadro no quadro e des-vela
os truques da cena), ou seus zooms achatadores, desfigurando
a belle image, a imagem adorada. Spielberg se fia no
efeito pelo efeito, na intensificação do que um
dia já foi criado, pervertido e morto. Apenas. Ele é
um clássico que chegou tarde demais, que perdeu o bonde
da História e foi atropelado por ela; ou seja: um cineasta
acadêmico. Alguém que reproduz imagens que lhe foram
caras, paisagens que lhe são inacessíveis e mitos
que lhes suscitaram poluções noturnas, mas de forma
perversa: como um embalsamador ou cultor necrófilo para
adolescentes de péssimo trato – como alguém
que permanece no regaço dos pais, e morde o colo da mãe.
Para encerrar, gostaria de encarecer a questão
das contra plongées. As contra plongées
foram usadas durante o cinema clássico para imprimir uma
aura mítica às figuras visadas por elas; segundo
um viés mais expressionista (Orson Welles), retrato de
família carnívoro (Anthony Mann) ou idealização
bovina (Wyler, aliás o que me parece especialmente próximo
do caso aqui). Mas elas eram um meio de elevação
e suprassunção humanista; figura retórica
que sintetizava o domínio pelo personagem daquela experiência
que o filme descrevia – não exatamente daquela paisagem
ou dos outros corpos: Ergo Cogito sum. A sobranceria
de uma consciência sobre o tempo que me arrasa e o pathos
que me ulcera. Um filme era a testemunha de que finquei pé
e ainda estou presente – mesmo que como imagem,
superfície superfluida no celulóide. A contra plongée
atesta em cartório de ser esta altivez – no plano.
Ao menos nos domínios mais classicistas (Welles é
caso à parte, sempre). Mas o pobre órfão
bolinado Spielberg espalha contra-plongés por um arrazoado
de vales, reuniões de família, trincheiras, e sobretudo
canhões de guerra – Krupp certamente! Cultua a espoliação,
o opróbrio, mitifica a Guerra e a pastoral, indiscriminada
e desajeitadamente, como um adoecido diante do game... Dá
o tiro fatal – ideológico e estilístico (pois
muitas vezes precedidas e reatropeladas por aqueles travellings-trânsfugas,
que me centuplicam o astigmatismo) no mundo e na graça
que um dia esperara celebrar.
Março de 2012
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