A Caverna dos Sonhos Perdidos
(Cave of Forgotten Dreams), de Werner Herzog (Canadá/EUA/França/Alemanha/Inglaterra,
2011)
por Rafael Castanheira Parrode
O
cinema, 32.000 anos atrás
Numa leitura apressada, Caverna dos Sonhos Perdidos pode
ser tomado por um documentário um tanto formal e acadêmico
do gênio louco Werner Herzog, uma espécie de programa
televisivo produzido pelo History Channel sobre um dos maiores
tesouros da História da humanidade – a caverna de
Chauvet, localizada no sul da França, onde se encontram
as mais antigas e misteriosas representações artísticas
produzidas pela humanidade, há cerca de 32.000 anos. Herzog,
diferente de trabalhos mais experimentais como Fata Morgana,
Além do Azul Infinito ou Lições
na Escuridão parece seguir a cartilha do documentário
clássico, intercalando o registro da caverna com entrevistas
e depoimentos de pesquisadores, historiadores e cientistas, que
tentam reconstruir e desvendar aquele passado obscuro e remoto
da humanidade. A narração em off de Herzog
continua presente, levantando uma série de questionamentos
acerca das imagens por ele produzidas, do impacto daquela projeção
documental de um passado inalcançável, uma cápsula
do tempo que transporta o homem para os primórdios de sua
existência.
Entretanto, se há uma radicalização a que
Herzog se propõe, em Caverna dos Sonhos Perdidos,
é a de construir toda a diegese do filme através
do 3D. O efeito torna-se parte orgânica e essencial dentro
desse projeto já antigo do diretor, de filmar a Caverna
de Chauvet. Nesse processo de utilização
de uma tecnologia que surgiu como uma promessa de revolução
para o cinema (e já se prevê obsoleta em alguns anos),
Herzog faz de seu filme o próprio reflexo da gestação
da arte na civilização humana, quando ainda se pintava
com carvão e sangue, colocando frente a frente reflexos
separados pelo abismo do tempo, que se convergem pela necessidade
que o homem sentiu - e ainda sente – de se expressar, de
criar, de refletir o mundo, seu tempo. O uso do 3D se faz extremamente
efetivo ao dar a dimensão claustrofóbica da caverna,
das estalactites e estalagmites, da profundidade infinita dos
salões da caverna, das formas dos fósseis calcificados.
O efeito do movimento criado pela da topografia das paredes é
levado as últimas consequências, provocando no espectador
essa sensação de estar, de fato, em meio a uma imensa
sala de cinema, cujo filme se calcificou na tela.
Nesse
fluxo do tempo, Herzog parece desenhar o princípio da criação
do próprio cinema, que começa a ser concebido como
imagem, como desenhos que simulam o movimento, criando efeitos
de ilusão, de profundidade. Da luz e das sombras como catalisadores
desse movimento, que emprestam vida ao inanimado. Ao filmar a
história contada pelos desenhos, a câmera parece
captar uma espécie de documentário épico
sobre a vida selvagem daquele tempo, sobre a relação
daquele homem com a natureza, que ganha vida nas paredes disformes
e irregulares da caverna. Refletido nesse espelho temporal, Herzog
encontra o seu duplo, reflexo de si mesmo, do artista que, assim
como ele, documentou seu mundo e seu tempo, e que com ele pareceu
dividir preocupações e reflexões semelhantes
acerca de sua contemporaneidade, de sua percepção
diante do mundo. Uma cena que parece essencial nesse sentido se
dá fora da caverna, quando o diretor filma dois jacarés
albinos na água, afundando, como se fossem um reflexo do
outro. Ali, Herzog se pergunta se, assim como aqueles jacarés,
que sofreram mutações genéticas devido à
presença de uma usina de energia atômica na região,
não seríamos também reflexos de nossa própria
existência, ao olharmos para aquelas pinturas, para aquela
cápsula onde se calcificou o tempo, as memórias
do mundo.
O
cinema, que nasce na caverna pelas mãos de um artista anônimo,
e percorre um longo caminho até se materializar no cinematógrafo
criado pelos irmãos Lumière, e seus filmes que registravam
o fluxo, o movimento da vida, das pessoas, do mundo, se convergem
no 3D utilizado por Herzog, que dá corpo a esse anacronismo
deflagrador do mundo, da arte, do cinema. O que move esse artista
das cavernas a dar movimento a um momento, a um tempo, a uma transitoriedade,
é o mesmo que move os Lumière a buscar a ilusão
do movimento para aprisionar a duração do tempo,
e o mesmo que move Herzog a confrontar o mundo com suas imagens
desbravadoras. Os desenhos dos animais que parecem correr pela
infinitude da escuridão da caverna são os trabalhadores
que saem das fábricas em A Saída da Fábrica
Lumière em Lyon,na infinitude da escuridão
da sala de cinema. São os astronautas que partem para o
espaço a procura de um novo planeta para se viver em Além
do Azul Infinito. Caverna dos Sonhos Perdidos é,
assim, um espelho temporal que, a cada ângulo, reflete uma
faceta de tempos em que o cinema ainda tentava se encontrar.
Novembro de 2011
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