Poucos pensadores contemporâneos terão exercido um impacto
mais fortemente liberador e criativo sobre o conjunto
das ciências humanas do que Michel Foucault. A amplitude
do legado de sua reflexão evidencia o caráter generoso
de suas idéias, que se disseminaram e renovaram campos
distintos da investigação das ciências humanas. No entanto,
seu legado teórico não se esgota apenas na renovação de
áreas já estabelecidas de conhecimento, mas se deixa comprovar,
e talvez de maneira ainda mais evidente, na capacidade
de formular conceitos que instigam a formação de novos
problemas e campos de investigação. Isto é exatamente
o que está ocorrendo agora, um tanto tardiamente, com
o conceito foucaultiano de biopolítica, que se tornou
uma importante ferramenta conceitual para compreendermos
e diagnosticarmos as crises políticas do presente. Como
veremos ao final desse texto, o próprio Foucault nos deixou
reservada uma surpresa analítica inusitada, expressa na
articulação inovadora entre biopolítica, biogenética e
governo econômico de populações, temas de seu último curso
a respeito do assunto, O nascimento da biopolítica,
de 1978-79. [1]
Apresentado ao grande público em 1976,
no último capítulo de História da Sexualidade I,
A vontade de saber, e desenvolvido em um curso proferido
no Collège de France do mesmo ano, publicado postumamente
como Em defesa da sociedade, o conceito de biopolítica
tardou quase duas décadas até ser devidamente compreendido,
absorvido e apropriado por outros autores.
[2] Neste texto, gostaria de estabelecer uma
brevíssima reconstituição do caminho teórico pelo qual
Foucault chegou à formulação original deste conceito
para, em seguida, apontar, nas páginas finais deste
ensaio, como o conceito da biopolítica foi retomado
e redefinido no pensamento de um dos principais teóricos
contemporâneos da política, Giorgio Agamben.
[3]
Dois motivos relacionados entre si podem
explicar porque a importância do conceito de biopolítica
para a compreensão dos dilemas políticos do presente
tardou quase quinze anos para ser reconhecida. Em primeiro
lugar, para reconhecê-lo era fundamental ultrapassar
a rigidez dicotômica da distinção ideológica tradicional
entre esquerda e direita, aspecto que já se encontrava
presente na análise foucaultiana do caráter biopolítico
não apenas do nazismo e do stalinismo, mas também das
democracias liberais e de mercado. Em segundo lugar,
penso que o fenômeno da biopolítica só poderia ser entendido
enquanto forma globalmente disseminada de exercício
cotidiano de um poder estatal que investe na multiplicação
da vida por meio da aniquilação da própria vida, a partir
do advento recente da política transnacional globalizada
e ‘liquefeita’, segundo a terminologia de Bauman. Nesse
sentido, creio que a reflexão de Deleuze sobre as transformações
sociais da última década, as quais iniciaram o processo
de substituição do modelo disciplinar de sociedade pelo
modelo de “sociedade de controle”, articulada em redes
de visibilidade absoluta e comunicação virtual imediata,
constitui o paradigma a partir do qual Toni Negri e
Michael Hardt puderam formular seu conceito de “Império”,
no centro do qual se encontra, justamente, uma apropriação
do conceito foucaultiano de biopolítica, redefinido
agora em termos da biopotência da Multidão. [4]
Os conceitos foucaultianos de biopolítica
e biopoder surgiram como o ponto terminal de sua genealogia
dos micro-poderes disciplinares, iniciada nos anos 70.
Ao mesmo tempo em que eram depositários de um conjunto
de análises e conceituações previamente estabelecidos,
tais conceitos também inauguraram deslocamentos em relação
àquilo que o autor havia pensado anteriormente, em obras
como A Verdade e as Formas Jurídicas e Vigiar
e Punir. [5] Como se sabe, o ponto de partida da genealogia
foucaultiana foi a descoberta dos micro-poderes disciplinares
que visavam a administração do corpo individual, surgidos
durante o século 17 em consonância com a gradativa formação
de todo um conjunto de instituições sociais como o exército,
a escola, o hospital, a fábrica etc. Foucault chegaria
aos conceitos de biopoder e biopolítica ao vislumbrar
o aparecimento, ao longo do século 18 e, sobretudo,
na virada para o século 19, de um poder disciplinador
e normalizador que já não se exercia sobre os corpos
individualizados nem se encontrava disseminado no tecido
institucional da sociedade, mas se concentrava na figura
do Estado e se exercia a título de política estatal
que pretendia administrar a vida e o corpo da população.
Evidentemente, esta descoberta pressupunha combinar
as análises desenvolvidas em Vigiar e Punir,
definidas como uma “anátomo-política do corpo”, com
o que Foucault agora denominava, no volume I da História
da Sexualidade, como a “biopolítica das populações”.
Se não há contradição entre poder disciplinar e biopoder,
os quais têm nos processos de normalização sua base
comum, não se pode deixar de notar que a introdução
da biopolítica impôs uma mutação no curso das pesquisas
genealógicas de Foucault.
A partir do momento em que passou à análise
dos dispositivos de produção da sexualidade, Foucault
percebeu que o sexo e, portanto, a própria vida, se
tornaram alvos privilegiados da atuação de um poder
que já não tratava simplesmente de disciplinar e regrar
comportamentos individuais, mas que pretendia normalizar
a própria conduta da espécie ao regrar, manipular, incentivar
e observar fenômenos que não se restringiam mais ao
homem no singular, como as taxas de natalidade e mortalidade,
as condições sanitárias das grandes cidades, o fluxo
das infecções e contaminações, a duração e as condições
da vida etc. A partir do século 19 já não importava
apenas disciplinar as condutas individuais, mas, sobretudo,
implantar um gerenciamento planificado da vida das populações.
Assim, o que se produzia por meio da atuação específica
do biopoder não era mais apenas o indivíduo dócil e
útil, mas era a própria gestão da vida do corpo social.
O sexo se tornou então um foco privilegiado para o controle
disciplinar do corpo e para a regulação dos fenômenos
da população, constituindo-se o que o autor denominou
como dispositivo da sexualidade. A sexualidade, tal
como produzida por uma rede de saberes e poderes que
agem sobre o corpo individual e sobre o corpo social,
tornou-se a chave para a análise e para a produção da
individualidade e da coletividade. A partir dessa mutação,
as figuras do Estado e do poder soberano, das quais
Foucault se afastara anteriormente a fim de compreender
o modus operandi dos micro-poderes disciplinares,
tornaram-se então decisivas, pois constituíam a instância
focal de gestão das políticas públicas relativas à vida
da população.
Foucault demonstra essa importante transformação
que afetou a forma de atuação do poder soberano no capítulo
final da História da Sexualidade. Sua tese era
a de que, a partir da virada para o século 19, deu-se
um importante deslocamento na forma de exercício do
poder soberano, que passou a se afirmar não mais como
um poder de matar a vida, mas sim como um “poder que
gere a vida”. Agora, interessava ao poder estatal estabelecer
políticas públicas por meio das quais poder-se-ia sanear
o corpo da população, depurando-o de suas infecções
internas. É justamente nesse ponto que a genialidade
analítica de Foucault se evidencia: ali onde nosso sentido
comum nos levaria a louvar o caráter humanitário de
intervenções políticas que visam incentivar, proteger,
estimular e administrar o regime e as condições vitais
da população, ali mesmo nosso autor descobrirá a contrapartida
sangrenta desta nova obsessão do poder pelo cuidado
purificador da vida. Foucault compreendeu que, a partir
do momento em que a vida passou a se constituir como
elemento político por excelência, o qual tem de ser
administrado, calculado, gerido, regrado e normalizado
por políticas estatais, o que se observa não é uma diminuição
da violência. Pelo contrário, tal cuidado da vida de
uns traz consigo, de maneira necessária, a exigência
contínua e crescente da morte em massa de outros, pois
é apenas no contraponto da violência depuradora que
se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência
a uma dada população. Não há, portanto, contradição
entre o poder de gerência e incremento da vida e o poder
de matar aos milhões para garantir as melhores condições
vitais possíveis: toda biopolítica é também, intrinsecamente,
uma tanatopolítica. Assim, a partir do momento em que
a tarefa do soberano foi a de “fazer viver”, isto é,
a de estimular calculadamente o crescimento da vida,
as guerras se tornaram mais sangrentas e os genocídios
se multiplicaram, dentro e fora da nação:
As guerras já não se travam em nome do soberano a
ser defendido; travam-se em nome da existência de
todos; populações inteiras são levadas à destruição
mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres
se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da
sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes
puderam travar tantas guerras, causando a morte de
tantos homens. E, por uma reviravolta que permite
fechar o círculo, quanto mais a tecnologia das guerras
voltou-se para a destruição exaustiva, tanto mais
as decisões que as iniciam e encerram se ordenaram
em função da questão nua e crua da sobrevivência.
(...) Se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes
modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho
direito de matar; mas é porque o poder se situa e
exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos
fenômenos maciços da população. [6]
Sob as condições impostas pelo exercício
do biopoder, o incremento da vida da população não se
separa da produção contínua da morte, no interior e
no exterior da comunidade entendida como entidade biologicamente
homogênea: “São mortos legitimamente aqueles que constituem
uma espécie de perigo biológico para os outros”. [7] É por isso que, ao longo do século 19,
se opera uma transformação decisiva no próprio racismo,
que deixa de ser um mero ódio entre raças ou a expressão
de preconceitos religiosos, econômicos e sociais para
se transformar em doutrina política estatal, em instrumento
de justificação e implementação da ação mortífera dos
Estados, como já o observara Hannah Arendt. A descoberta
da importância política do racismo como forma privilegiada
de atuação estatal, fartamente empregada ao longo do
surto imperialista europeu do século 19 e radicalizada
cotidianamente ao longo do século 20, encontrando no
nazismo e no stalinismo seu ápice, tem de ser compreendida
em termos daquela mutação operada na própria natureza
do poder soberano. Num contexto biopolítico não há Estado
que não se valha de formas amplas e variadas de racismo
como justificativa para exercer seu direito de matar
em nome da preservação, intensificação e purificação
da vida. O racismo justifica os mais diversos conservadorismos
sociais na medida em que institui um corte no todo biológico
da espécie humana, estabelecendo a partilha entre “o
que deve viver e o que deve morrer”.
[8] Na medida em que os conflitos políticos
do presente visam a preservação e intensificação da
vida do vencedor, conseqüentemente eles não expressam
mais a oposição antagônica entre dois partidos adversários
segundo o binômio schmittiano do amigo-inimigo, pois
os inimigos deixam de ser opositores políticos para
ser considerados como entidades biológicas. Já não podem
ser apenas derrotados, têm de ser exterminados, pois
constituem perigos internos à raça, à comunidade, à
população: “A morte do outro não é simplesmente a minha
vida, na medida em que seria minha segurança pessoal;
a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior
(ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar
a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura”.
[9]
A descoberta não apenas da biopolítica,
mas também do paradoxal modus operandi do biopoder,
o qual, para produzir e incentivar de maneira calculada
e administrada a vida de uma dada população, tem de
impor o genocídio aos corpos populacionais considerados
exógenos, é certamente uma das grandes teses que Foucault
legou ao século XXI. Não se tratava de descrever um
fenômeno histórico do passado, mas de compreender o
cerne mesmo da vida política contemporânea, motivo que
Foucault enuncia já de saída nas primeiras páginas do
capítulo final do primeiro volume da História da
Sexualidade: “O homem, durante milênios, permaneceu
o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso,
capaz de existência política; o homem moderno é um animal,
em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”.
Em outras palavras, ao descrever a dinâmica de exercício
do biopoder, Foucault também enunciou um diagnóstico
a respeito da política e seus dilemas no presente.
[10]
Somente agora, com a recente publicação
do curso de 1978-1970, intitulado O nascimento da
biopolítica, podemos vislumbrar a real importância
deste conceito para Foucault, assim como também sua
potência de esclarecimento propriamente visionária.
Após ter analisado o modus operandi do biopoder
em suas formas estatais mais evidentes, no nazismo e
no socialismo realmente existente, Foucault deu outra
guinada em sua pesquisa e começou a investigar e antecipar
como se darão as novíssimas formas de controle biopolítico,
não mais sob o eixo dos exageros do poder soberano estatal,
mas agora segundo o eixo flexível das economias de mercado
influenciadas pelo neo-liberalismo econômico da chamada
Escola de Chicago. Muito antes do florescimento da engenharia
genética, Foucault compreendeu que, sob o neo-liberalismo
econômico do pós-guerra, o homem havia sido compreendido
e mesmo fixado em termos do homo oeconomicus,
isto é, como agente econômico que responde aos estímulos
do mercado de trocas, mais do que como personalidade
jurídico-política autônoma. Neste curso, Foucault pensa
o mercado como a instância suprema de formação da verdade
no mundo contemporâneo, para muito além da velha ficção
jusnaturalista, segundo a qual o certo e o errado, o
permitido e não permitido, definem-se por meio da reconstituição
da maquinaria jurídico-política que culminou com a definição
do poder soberano. Foucault interessa-se, então, pelas
formas flexíveis e sutis de controle e governo das populações
e dos indivíduos, tal como elas se exercem por meio
das regras da economia do mercado mundializado, para
além dos domínios limitados da soberania política tradicional:
“É preciso governar para o mercado, em vez de governar
por causa do mercado”.
[11]
No centro de sua nova consideração sobre
a biopolítica na via do neoliberalismo econômico se
encontrava a fusão entre o homo oeconomicus e
a teoria do “capital humano”. A fusão entre ambos diz
respeito à concepção de que o homo oeconomicus
não é apenas um empreendedor qualquer no mercado de
trocas, mas sim um empreendedor de si mesmo, tomando-se
a si mesmo como seu próprio produtor de rendimentos.
Já no final da década de 70, Foucault compreendera que
havíamos nos transformado em agentes econômicos que
precisam valorizar e amplificar continuamente nossas
capacidades e habilidades profissionais a fim de nos
tornarmos competitivos para o mercado de trabalho. Ora,
o que ele antecipa nessas análises é justamente o fato,
hoje em vias de se tornar realidade cotidiana, de que
cada vez mais a biogenética será a via por meio da qual
o homo oeconomicus tratará de potencializar suas
capacidades e habilidades, ao mesmo tempo em que tentará
controlar os fatores potenciais de risco – como doenças
geneticamente herdadas, por exemplo – que podem colocá-lo
em situações desfavoráveis na competição pelo sustento
de sua vida. Foucault compreendera muito rapidamente
que sob condições neoliberais o mercado seria a instância
a partir da qual se decidiria a manipulação do genoma
humano, tornando irrelevante toda e qualquer discussão
ética:
... um dos interesses atuais da aplicação da genética
às populações humanas é o de permitir reconhecer os
indivíduos de risco e o tipo de risco que os indivíduos
correm ao longo de sua existência. Vocês me dirão:
quanto a isso não podemos fazer nada, nossos pais
nos fizeram assim. Por certo, mas quando se pode estabelecer
quais são os indivíduos de risco, e quais são os riscos
de que uma união de risco produza um indivíduo que
terá tal ou qual característica quanto ao risco de
que é portador, pode-se perfeitamente imaginar o seguinte:
é que os bons equipamentos genéticos – isto é, [aqueles]
que poderão produzir indivíduos de baixo risco ou
cuja taxa de risco não será nociva para eles, para
seus próximos ou para a sociedade – esses bons equipamentos
genéticos vão certamente se tornar algo raro, e na
medida em que serão algo raro podem perfeitamente
[entrar], e é normal que entrem, no interior dos circuitos
ou dos cálculos econômicos, isto é, nas escolhas alternativas.
Em termos claros, isso vai significar que, dado meu
equipamento genético, se quero ter um descendente
cujo equipamento genético seja pelo menos tão bom
quanto o meu, ou, na medida do possível, melhor, vou
ter que encontrar alguém com quem me casar cujo equipamento
genético também seja bom. E vocês vêem claramente
como o mecanismo de produção dos indivíduos, a produção
de filhos, pode reencontrar toda uma problemática
econômica e social a partir do problema da raridade
de bons equipamentos genéticos. E se vocês quiserem
ter um filho cujo capital humano, entendido simplesmente
em termos de elementos inatos e de elementos hereditários,
seja elevado, verão que, da parte de vocês, será preciso
todo um investimento, isto é, ter trabalhado o suficiente,
ter renda suficiente, ter um estatuto social que lhes
permitirá assumir como cônjuge ou como co-produtor
desse futuro capital humano alguém cujo capital também
será importante. Eu lhes digo isso de forma alguma
beirando a brincadeira; é simplesmente uma forma de
pensar ou uma forma de problemática que se encontra
atualmente em estado de emulsão. [12]
É bastante evidente que Foucault não estava
lançando prognósticos ao acaso, como se estivesse brincando
de ficção científica: o que ele vislumbrou foi a conexão
possível, a ponto de se tornar necessária, entre o homo
oeconomicus do neo-liberalismo, a teoria do capital
humano e a biogenética, anunciando assim o momento em
que genética e economia se fundirão determinando as
condições nas quais o processo de individuação se dará.
Foucault não nega o componente eugênico e racista implicado
na fusão entre reprodução humana e reprodução do capital,
muito embora as análises do curso de 1978-79 revelem
um deslocamento importante em relação às análises de
Em defesa da sociedade, nas quais se considerava
a biopolítica a partir da nova capacidade do poder soberano
de agir de maneira a incentivar a vida e aniquilar suas
partes consideradas perigosas por meio de políticas
estatais. Para além dessa modalidade particular de exercício
da biopolítica, o curso de 1978-79 centra a atenção
na caracterização dos sutis processos de governamentalização
do indivíduo que, por sua livre e espontânea decisão,
assume submeter-se e subjugar-se ao reger sua conduta
segundo os princípios flexíveis do homo oeconomicus
e da teoria do capital humano acoplada à biogenética,
tornando-se, assim, a presa voluntária de processos
de individuação controlada flexivelmente pelo mercado.
Em poucas palavras, Foucault descobriu nessas lições
a gênese do indivíduo que estamos prestes a nos tornar,
ou seja, o indivíduo plenamente governável e manipulável
por meio das leis econômicas de mercado associadas às
determinações científicas da biogenética.
***
Para concluir este texto, gostaria de apresentar,
sinteticamente, algumas transformações conceituais sofridas
pelo conceito foucaultiano de biopolítica, tal como
apresentado no volume I da História da Sexualidade,
ao se converter em tema diretor do pensamento político-filosófico
de Giorgio Agamben. Inspirando-se em Foucault, mas também
nas reflexões de Walter Benjamin, Hannah Arendt e de
Carl Schmitt, Giorgio Agamben pensa a biopolítica no
entrecruzamento de quatro conceitos diretivos da política
ocidental: poder soberano, vida nua (homo sacer),
estado de exceção e campo de concentração, os quais
perpassam toda a política ocidental e encontram, na
modernidade, sua máxima saturação. Sua reflexão político-filosófica
estabelece uma nítida correlação entre o caráter rotineiro
dos assassinatos em massa ocorridos ao largo dos séculos
19 e 20 e a normalização do “estado de exceção,” que
também se pode observar durante esse mesmo período de
tempo. No âmago dessa correlação se encontra o princípio
político da soberania, identificado por Agamben como
a instância que, ao traçar o limite entre vida protegida
e vida exposta à morte, politiza o fenômeno da vida
ao incluí-la e excluí-la simultaneamente da esfera jurídica,
motivo pelo qual um regime biopolítico pode garantir
tanto o incentivo quanto o massacre da vida, não sendo
casual a multiplicação das instâncias contemporâneas
de seu extermínio. Para Agamben, “o estado de exceção,
no qual a vida nua era, simultaneamente, excluída da
ordem jurídica e aprisionada nela”, constitui a regra
e o próprio fundamento oculto da organização soberana
dos corpos políticos no Ocidente. Distintamente de Foucault,
portanto, Agamben refere a biopolítica não à modernidade,
mas à tradição do pensamento político do ocidente, argumentando
que a instituição do poder soberano é correlata à definição
do corpo político em termos biopolíticos:
A ‘politização’ da vida nua é a tarefa metafísica
por excelência na qual se decide sobre a humanidade
do ser vivo homem, e ao assumir esta tarefa a modernidade
não faz outra coisa senão declarar sua própria fidelidade
à estrutura essencial da tradição metafísica. O par
categorial fundamental da política ocidental não é
o de amigo-inimigo, mas antes o da vida nua–existência
política, zoé-bios, exclusão-inclusão.
[13]
Estado de exceção e soberania política
são figuras políticas indissociáveis, portanto. Na exceção
trata-se de uma situação jurídica paradoxal na qual
a lei suprime a lei, na medida em que se abolem, por
meio da lei, certas garantias e direitos individuais
e coletivos, expondo os cidadãos ao risco iminente da
morte violenta e legalmente justificada. O soberano,
por sua vez, na medida em que é aquele que pode decidir
a respeito do estado de exceção, como o pensou Schmitt,
está simultaneamente dentro e fora do ordenamento legal,
pois, ao mesmo tempo em que o institui, também se exime
dele, instaurando o estado de exceção como um estado
de indiferenciação entre fato e direito: “o soberano
é o ponto de indiferença entre violência e direito,
o umbral em que a violência se torna direito e o direito
se torna violência”. Ao centrar sua reflexão na figura
ambígua do soberano, que está simultaneamente dentro
e fora do ordenamento legal, visto possuir o poder de
declarar o estado de exceção no qual se instaura uma
indiferenciação entre fato e direito, Agamben chega
à caracterização da figura simetricamente inversa à
do soberano, a figura também ambígua do homo sacer.
Ela definia no antigo direito romano o homem que se
incluía na legislação na exata medida em que se encontrava
totalmente desprotegido por ela, pois homo sacer
era aquele indivíduo que poderia ser morto por qualquer
um sem que tal morte constituísse um delito, bastando
apenas que tal morte não fosse o resultado de um sacrifício
religioso ou de um processo jurídico: “A vida insacrificável
e à qual, não obstante, se pode matar, é a vida sagrada”. [14] Para Agamben, portanto, não se pode pensar
a figura do soberano sem pensar a figura correlata do
homo sacer, de modo que enquanto houver
poder soberano haverá vida nua e exposta ao abandono
e à morte. Soberano é aquele com respeito ao qual todos
os homens são sagrados, isto é, podem ser mortos sem
que se cometa homicídio ou sacrifício, ao passo em que
o homo sacer, por sua vez, é aquele em relação
ao qual qualquer homem pode se comportar como se fosse
soberano, pois qualquer um pode matá-lo.
A diferença especificamente moderna da
estrutura biopolítica que perpassa os corpos políticos
do ocidente se encontra no fato de que, a partir da
virada do século 18 para o século 19, cada vez mais
o estado de exceção vem se tornando a regra, tanto pela
multiplicação das ocasiões em que ele é declarado, quanto,
mais recentemente, pela sua própria duração. Em outras
palavras, cada vez mais vem se tornando tênue e instável
a linha divisória que desde sempre demarcou a fronteira
entre a vida qualificada (bios politikos), isto
é, a vida que merece ser vivida e que, portanto, deve
ser protegida e incentivada, e a mera vida (zoe),
a vida nua desprovida de garantias e exposta à morte.
Seguindo uma inspiração benjaminiana, Agamben observa
que, se em nosso tempo, o estado de exceção se tornou
a regra, então não devemos nos espantar pelo fato de
nossa política comportar fenômenos como o totalitarismo,
campos de extermínio, campos de concentração, campos
de refugiados, favelas como depósito de cadáveres-vivos
à espera do abate, prisões secretas etc. Segundo o autor,
vivemos sob um regime biopolítico cada vez mais intenso
e saturado, no qual a dinâmica da proteção e destruição
da vida por meio de sua inclusão e exclusão do aparato
jurídico regulado pelo poder soberano ameaça chegar
ao ponto máximo:
Se é verdade que a figura que nosso tempo nos propõe
é a de uma vida insacrificável, mas que se converteu
em algo eliminável em uma medida inaudita, a vida
nua do homo sacer nos concerne de maneira particular.
(...) Se hoje não há uma figura determinável de antemão
do homem sagrado é, talvez, porque todos somos virtualmente
homines sacri.
[15]
Na modernidade, política e vida nua se
entrelaçam e se tornam fenômenos correlativos, não podendo
ser compreendidos senão em sua correlação: a vida e
seus fenômenos vitais se politizam, ao passo em que
a política versa exatamente sobre a vida e seus fenômenos
(sexualidade, necessidade etc.). Por isso, o debate
político contemporâneo se tornou o debate sobre “que
forma de organização resultaria mais eficaz para assegurar
o cuidado, o controle e o desfrute da vida nua”, aspecto
que, por sua vez, torna obsoletas as “distinções políticas
tradicionais (como as de direita e esquerda, liberalismo
e totalitarismo, público e privado)”. [16] Evidentemente, não se trata de identificar
democracia e totalitarismo, ou de negar os avanços,
as diferenças e as conquistas da democracia em relação
aos governos totalitários, mas sim de demonstrar o fundamento
da crescente convergência entre estes regimes distintos.
Se, como o afirma Agamben, o campo de concentração se
tornou o “paradigma oculto do espaço político da modernidade”,
então é preciso apreender os seus disfarces e variações,
pois ele não se encontra ausente das democracias liberais.
Pense-se, por exemplo, nas prisões do terceiro mundo:
não são elas um espaço ambíguo de inclusão (no sistema
jurídico formal) e de total exclusão do prisioneiro
da legislação e da cidadania? Não é esta situação ambígua
que permite que o preso, além de ser considerado como
um cidadão portador de direitos temporariamente limitados,
seja também considerado como a encarnação excessiva
– há sempre um excedente de prisioneiros nestas prisões
– da vida que não merece viver, que pode ser descartada
e assassinada sem que se cometa delito? Ou então, pense-se
nas periferias das grandes cidades, sobretudo naqueles
casos em que o confronto entre duas forças soberanas,
a polícia e o crime organizado, gera um duplo espaço
de indistinção em que a autoridade (seja ela legal ou
pára-legal) se encontra puramente diante da vida nua
que pode ser descartada sem mais a qualquer momento.
Não estamos aí diante de novos campos de extermínio?
O preso, o favelado, o migrante e o imigrante, em suma,
o pobre e o miserável das modernas democracias liberais
ou dos velhos redutos autoritários constituem outras
tantas figuras que confirmam o caráter biopolítico e
aporético da política contemporânea: eles constituem
o elemento “que não pode ser incluído no todo de que
formam parte [isto é, o Povo como instância política
constituinte da soberania] e o que não pode pertencer
ao conjunto em que já está sempre incluído”. [17] O campo de concentração é o espaço de
politização da vida enquanto mera vida nua entregue
ao sacrifício, enquanto vida sagrada, matável, supérflua,
descartável.
Para Agamben, portanto, de nada adianta
apelar ao caráter sagrado da vida como o núcleo de um
direito humano fundamental, visto que o poder soberano
se constitui justamente ao traçar a partilha entre a
vida que merece viver e aquela que pode ser exterminada.
Em outras palavras, a atual sacralidade da vida não
constitui o pólo oposto ao do poder soberano, mas é
sua própria criação, de sorte que tal vida sagrada nunca
poderá se dissociar do processo pelo qual o poder soberano
instaura o corte entre a vida protegida e a vida abandonada,
a vida entregue ao bando, relegada àquela esfera marginal
que cai fora do núcleo mesmo da comunidade política
e que, estando banida, pode ser capturada e morta –
exceção provém de ex-capere, capturar fora. Agamben
recorda que, atualmente, é quase sempre em nome dos
direitos humanos e da preservação da vida que se decretam
e se impõem intervenções bélicas, ditas humanitárias,
reforçando-se assim o núcleo paradoxal da biopolítica,
segundo o qual a manutenção da qualidade de vida de
uns implica e exige a destruição da vida de outros.
Ademais, as organizações humanitárias se dirigem sempre
e apenas à vida nua, e nunca problematizam, politicamente,
a proliferação desta mesma vida nua da qual se alimentam.
Concomitantemente à expansão do caráter biopolítico
das intervenções bélicas promovidas pelas democracias
liberais, outro fenômeno notável da atualidade é a rápida
e suave colonização neoliberal dos antigos ideais e
valores da velha esquerda, os quais, devidamente despolitizados
e domesticados, podem orientar a gestão burocrática
e pacífica de populações: chegamos à noite contemporânea
em que todos os gatos são pardos, em que ninguém mais
é de direita ou de esquerda, já que toda política hegemônica
agora se autodenomina de centro, como observou Chantal
Mouffe.
Nas poucas oportunidades em que se dedica
a transcender o diagnóstico biopolítico do presente,
Agamben reflete sobre a noção de “forma-de-vida”, isto
é, de uma vida que não pode dissociar-se de sua forma,
que não pode jamais ser apreendida como vida nua, pois,
em seu viver, em seus atos e comportamentos, nunca se
trata simplesmente de meros “fatos”, mas sempre de “possibilidades
de vida, sempre e antes de tudo de potências”:
Nenhum comportamento e nenhuma forma de vida humana
jamais são prescritos por uma vocação biológica específica,
nem alocados por uma necessidade qualquer, mas, ainda
que habituais, repetidos e socialmente obrigatórios,
sempre conservam o caráter de uma possibilidade, ou,
dito de outra forma, eles sempre põem em jogo o próprio
viver. É por isso que, enquanto um ser de potência,
que pode fazer e não fazer, fracassar ou ser bem sucedido,
perder-se ou reencontrar-se, o homem é o único ser
na vida do qual sempre se trata da felicidade, o único
ser cuja vida está designada à felicidade, irremediável
e dolorosamente. Mas isto constitui, de saída, a forma-de-vida
como vida política. [18]
Esta vida política entendida como forma-de-vida
orientada para a felicidade só é concebível para além
da cisão biopolítica instaurada pelo poder soberano,
capaz de instaurar o estado de exceção e, assim, traçar
o limite instável entre vida qualificada e vida nua.
Isto quer dizer que a consideração da vida política
como forma-de-vida destinada à felicidade, visto que
entregue à sua potencialidade, à sua capacidade de atualizar-se,
depende em primeira instância da consideração de uma
política pára-estatal, que escape de uma vez por todas
ao jogo e ao jugo biopolítico da soberania. Agamben
encontra a instância de uma tal política não-estatal
em que vida e forma-de-vida não se dissociam, isto é,
em que a vida é assumida como vida em potência, no que
chamou de experiência de pensamento. Pensamento, não
certamente enquanto exercício individual, mas como “um
experimentum que tem por objeto o caráter potencial
da vida e da inteligência humana”.
[19] Trata-se do pensar como experiência de
uma “pura potência de pensamento” em cada pensamento.
O que Agamben parece querer dizer – aparentemente, sob
inspiração de Heidegger – é que é preciso experimentar
o pensamento como um engajamento absoluto daquele que
pensa em seus pensamentos, de tal maneira que, a cada
momento, a vida esteja totalmente engajada no viver
de uma vida que se afirme como possibilidade e não como
mero fato ou coisa dada, pois só pode haver uma verdadeira
comunidade política em se tratando de seres que não
são em ato, que não são já de saída isto ou aquilo,
que não possuem uma identidade que lhes tenha sido pré-designada:
“A experiência de pensamento de que se trata aqui é
sempre experiência de uma potência comum. Comunidade
e potência se identificam sem resíduo, pois a inerência
de um princípio comunitário em cada potência é função
do caráter necessariamente potencial de toda comunidade”.
[20] Sem dúvida, tais considerações podem
parecer vagas e abstratas, talvez até mesmo frágeis.
De todo modo, antes de abandoná-las apressadamente caberia
interrogar se elas não contêm a tradução atualizada
da intuição foucaultiana segundo a qual, em face do
biopoder, só nos resta lutar pela realização da vida
em suas “virtualidades”, pela vida como “plenitude do
possível”. [21]
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