É preciso partir de um postulado: os dispositivos de vigilância
não são exteriores à dinâmica sócio-cultural contemporânea,
mas lhe são imanentes. Não são, pois, maquinações de forças
externas de dominação, mas intrínsecos ao processo de
modernização e suas práticas de gestão racional das instituições,
da produção, do governo, da saúde, da segurança dos estados
e das populações etc. Boa parte da vigilância contemporânea
é herdeira do desejo de eficiência, velocidade, controle
e coordenação da administração moderna. Mas a vigilância
também é cada vez mais imanente aos processos contemporâneos
de entretenimento, sociabilidade e comunicação. Lembremos
que a vigilância não é apenas herdeira da cinzenta maquinaria
industrial-disciplinar, da empoeirada burocracia estatal
e das luzes esclarecidas do Iluminismo. A vigilância também
herda as cores e os prazeres da cultura do espetáculo,
que floresce junto com as cidades modernas. Ao mesmo tempo
em que a sociedade moderna fez dos indivíduos um foco
de visibilidade dos procedimentos disciplinares, ela também
os incitou e os excitou enquanto espectadores de toda
uma cultura visual nascente, intimamente atrelada à vida
urbana. Observadores estimulados e excitados pelo fluxo
movente da vida e das paisagens modernas, pela aceleração
dos ritmos e deslocamentos, pela complexificação da vida
urbana, pelo advento de novos objetos e mercadorias, bem
como pelas novas tecnologias de produção e reprodução
da imagem (fotografia, cinema, estereoscópio etc).
No cruzamento dessa dupla herança, as relações
entre vigilância e espetáculo se tornam hoje ainda mais
estreitas. Basta pensar na proliferação de reality
shows em que aparatos de vigilância e confinamento
são montados a serviço do entretenimento, ou nas práticas
de exposição do eu e da “intimidade” em weblogs, fotologs,
redes sociais (Orkut, Myspace) e sites de compartilhamento
de fotografia ou vídeo (Flickr, You Tube), em que as
relações sociais se tecem atreladas a uma mistura de
voyeurismo, exibcionismo e vigilância. É certo que,
neste movimento, tanto a vigilância quanto o espetáculo
se encontram transformados, não cabendo confortavelmente
nos limites com os quais a modernidade os definiu. Das
muitas transformações em curso, tratemos de uma em especial:
a naturalização da vigilância como modo de olhar e prestar
atenção na cultura contemporânea. Dois contextos próprios
à vida urbana atual são privilegiados para apreender
tal processo: a incorporação de câmeras de vigilância
às paisagens e arquiteturas urbanas e a produção e circulação
de imagens amadoras da cidade e de seus corpos nas mídias
contemporâneas. A escolha por estes dois contextos não
é casual; eles ressaltam o duplo aspecto da naturalização
da vigilância que se deseja explorar aqui – os procedimentos
de controle, mais evidentes na onipresença das câmeras
de vigilância em espaços públicos, e os circuitos de
prazer, mais claros na profusão de imagens amadoras.
Nessa mistura de controle e prazer, reconhecemos uma
lógica e uma estética do flagrante presentes tanto no
olhar quanto na atenção vigilante sobre a cidade e os
indivíduos que nela circulam. Embora estejam aqui em
foco dois contextos particulares da vida urbana contemporânea,
o que chamamos de naturalização da vigilância, tanto
como regime de visibilidade quanto como regime atencional,
implica sua relativa incorporação ao nosso repertório
cultural, deixando de ser exercida prioritariamente
em contextos de poder e controle circunscritos espacialmente,
temporalmente, institucionalmente. Na vigilância moderna
e disciplinar tais limites eram próprios à sua lógica
e aos seus efeitos, definindo grupos específicos a serem
vigiados (prisioneiros, doentes, alunos, operários),
bem como funções, hierarquias e papéis definidos (as
fronteiras entre vigias e vigiados eram claramente inscritas
nos espaços diferenciados, nos cargos e tarefas, nas
identidades). Num cenário bastante diverso deste, vemos
hoje, particularmente no campo das imagens de vigilância,
a sua circulação tanto nos aparatos policiais quanto
na pornografia amadora, nos arquivos da indústria de
segurança e nas revistas de fofoca, na televisão e na
Internet, no entretenimento popular e na arte. Imagens
que refletem a mistura e a transformação recíproca tanto
da vigilância quanto do espetáculo, a reordenação dos
modos de ver e de ser visto, a reorientação dos focos
e práticas da atenção, o cruzamento das pulsões voyeurísticas
e exibicionistas com as modulações do controle. Imagens
que condensam boa parte das questões que trataremos
aqui.
Antes de ingressar nos contextos e processos
aqui em foco, é preciso ter no horizonte o caráter multifacetado
da vigilância contemporânea. A paisagem é múltipla não
apenas por conta da miríade de dispositivos espalhados
pelos espaços públicos e privados, mas também pela multiplicidade
de funções, propósitos e afetos que os atravessam. Se
considerarmos uma listagem bastante incompleta dos dispositivos,
temos câmeras de vigilância em lugares públicos, semi-públicos
e privados, webcams pessoais ou institucionais,
sistemas de controle de trânsito (câmeras, pardais,
radares), sistemas de geolocalização (GPS [1]
, GIS
[2] , RFID
[3] ), fronteiras e portões eletrônicos (senhas
e cartões de acesso, scanners para pessoas e bens/produtos),
mecanismos de autenticação e controle de identidade
(cartões de identidade e dispositivos de identificação
biométrica - impressão digital, scanner de iris, topografia
facial, software de reconhecimento facial, scanner de
mão), tecnologias de informação e comunicação (computadores
portáteis, telefones celulares), redes de monitoramento
e cruzamento de dados informacionais (compras, comunicações,
trajetos, serviços), sistemas informacionais de coleta,
arquivo, análise e mineração de dados (bancos de dados,
perfis computacionais), entre outros. Além disso, nota-se
que nem todos estes dispositivos estão diretamente ou
intencionalmente voltados para o exercício da vigilância;
esta, em muitos casos, é um efeito ou característica
secundária de um dispositivo cuja função primeira é
outra – um telefone celular com câmera, por exemplo,
tem uma função primeira de comunicação e registro visual,
mas pode ser apropriado como uma câmera de vigilância
em certas ocasiões, tal como aconteceu no caso do enforcamento
de Sadam Hussein, no atentado à bomba no metrô de Londres,
entre muitos outros casos. Já se nota aqui o segundo
aspecto que atesta o caráter diversificado da vigilância
contemporânea - ela se exerce direta ou indiretamente
misturada a diversos processos e práticas, com propósitos
e funções variadas: nas práticas de consumo e nas estratégias
de marketing e publicidade, nas medidas de segurança
e coordenação da circulação de pessoas, informações
e bens, nas formas e meios de comunicação e sociabilidade,
na prestação de serviços etc. O afetos que hoje ela
mobiliza não são menos plurais - se por um lado ela
se justifica ou se exerce pelo medo e pela promessa
de segurança, ela também mobiliza ou expressa todo um
circuito de libidos, prazeres e desejos. Nesse sentido,
a vigilância não deve ser entendida como uma atividade
sombria, coercitiva e dominadora, orquestrada por um
Big Brother [4] . Assim como a vigilância moderna era inseparável
da maquinaria estatal, burocrática e disciplinar do
capitalismo industrial, a vigilância contemporânea é
inseparável da maquinaria informacional, reticular e
modular do capitalismo pós-industrial. Não é, portanto,
boa nem má por natureza, assim como seus efeitos não
se medem por suas intenções.
Arquitetura da regularidade: câmeras
de vigilância e controle
Dentre os inúmeros dispositivos de vigilância,
as câmeras de CCTV [5] talvez sejam as mais claramente identificadas
como instrumento de inspeção e controle, embora o selo
“sorria, você está sendo filmado” já aponte, cinicamente,
a sua fronteira tênue com pulsões exibicionistas. Sabe-se
também que as administrações públicas em quase todo
o mundo, incluído o Brasil, vêm ampliando fortemente
sistemas de videovigilância em espaços públicos, instituindo
um olhar que por sua multiplicação tende à onipresença,
descortinando a cidade e os corpos passantes. Cresce
também vertiginosamente a indústria da segurança, que
serve um cardápio cada vez mais variado de sistemas
de CCTV. Todo esse crescimento dá-se, vale notar, a
despeito de evidências de que o uso de câmeras de vigilância
seja efetivo na redução da criminalidade. Mas esse não
é o nosso foco, e sim as modalidades de olhar, de estados
atencionais e de significação social da vigilância implicados
no tipo de controle exercidos pela videovigilância.
Três aspectos gerais nos interessam destacar.
O primeiro consiste no caráter opaco, impessoal
e transinstitucional do olhar das câmeras de vigilância,
que atua como uma espécie de terceiro olho frente ao
qual não há negociação possível. Este aspecto se deve
em boa parte ao próprio dispositivo, que tem por característica
ser uma instância de inspeção cujo sujeito da ação,
ou melhor, do olhar, não está presente na cena, mas
nem por isso é neutro. O sujeito do olhar da câmera
é, antes de tudo, invisível, desconhecido e inverificável
por parte dos que são observados. Esta opacidade e esta
impessoalidade não se devem apenas ao fato de não podermos
ver quem está observando, mas também ao fato de esta
imagem ser potencialmente objeto de múltiplos olhares
de uma cadeia institucional qualquer. Um conjunto de
câmeras com sistema de monitoramento e registro dispostas
em um shopping center, por exemplo, pode ser inspecionada
tanto pelos operadores encarregados, quanto pelo pessoal
da segurança, por policiais, funcionários do shopping,
jornalistas, procuradores, pesquisadores, ou seja, qualquer
um que tenha poder e interesse de observar a imagem
registrada. Trata-se, assim, de um observador proteiforme,
distante e disperso no arquipélago institucional [6] . Eis porque, além de opaco e impessoal,
o olhar da câmera é transinstitucional. Ademais, funciona
como um terceiro olho que, embora seja em parte uma
extensão da função normativa do olhar social, exclui
qualquer intersubjetividade possível e, conseqüentemente,
qualquer negociação, sendo ao mesmo tempo emissor e
receptor da imagem.
Há, pois, um desequilíbrio entre a instância
de observação e os indivíduos observados, o qual se
dá ao menos em três níveis. No nível espacial, dado
que a imagem da ação observada não se passa necessariamente
no mesmo lugar em que a ação se dá. No nível temporal,
específico para a imagem registrada, pois não se trata
apenas de ver, mas de rever e recriar o olhar quantas
vezes se desejar, produzindo uma imagem indefinidamente
estocada para o futuro, tornando o seu “destino” e a
sua significação bem mais incertos, suspensos e sujeitos
a um olhar a posteriori. Por fim, um desequilíbrio
social que concerne à dessimetria na relação de poder
entre o observador e o observado, uma vez que a impossibilidade
de ver e negociar com o sujeito do olhar tornam o indivíduo
sob a vigilância relativamente impotente frente a sua
própria imagem, que é de algum modo confiscada pela
câmera. Não é por acaso que certas ações de contra-vigilância
destinam-se a tornar visível e perturbadora essa unilateralidade
da videovigilância. O grupo de artistas e ativistas
Surveillance
Camera Players, por exemplo, realizam performances
diante das câmeras, procurando ao mesmo tempo deslocar
e explicitar as implicações sociais e políticas desta
opacidade do seu olhar.
O segundo aspecto geral da significação
social e da forma de controle exercida pela incorporação
das câmeras de vigilância às arquiteturas urbanas consiste
na produção de uma indiscernibilidade entre vítimas
e suspeitos, bem como entre segurança e ameaça. Diferentemente
dos dispositivos de inspeção modernos, que vigiavam
um conjunto predefinido de indivíduos cuja presença
se devia à própria instituição que as vigiava – prisioneiros,
enfermos etc – as câmeras de vigilância em ruas, metrôs,
parques públicos, entre outros, são dirigidas a todos
e a qualquer um, cumprindo uma função prioritariamente
dissuasiva e “preventiva”. Os indivíduos aí não têm
uma identidade individual nem coletiva que justifique
a vigilância, sendo o acaso de transitarem num mesmo
espaço inspecionado o único fato que os une. Somos todos
igualmente vítimas e suspeitos potenciais, assim como
a consciência da vigilância representa simultaneamente
segurança e ameaça. Um exemplo bastante evidente é o
das câmeras de supermercados que vigiam ao mesmo tempo
seus clientes e seus funcionários, tornando ambos vítimas
e suspeitos potenciais. Ainda que soe excessivamente
distópica, a afirmação de que a onipresença das câmeras
de CCTV refletem um estado de suspeição generalizada
- todos são suspeitos, até que se prove o contrário
- é em parte verdadeira. Digo em parte porque tal estado
não pode designar a totalidade dos processos de vigilância,
mas aplica-se especialmente às câmeras de CCTV e, mesmo
neste caso, não se pode esquecer que a banalização da
suspeita é aqui mais um efeito deste dispositivo do
que a sua intenção primeira, sendo esta muitas vezes
mobilizada por critérios de eficiência, conforto e segurança
na facilitação da circulação de pessoas em lugares públicos
e semi-públicos.
Por fim, o terceiro aspecto consiste no
efeito normativo das câmeras, que deriva de um tipo
de atenção voltado para a captura do excepcional, do
irregular. Ou seja, as câmeras não se destinam tanto
a instaurar uma normalidade (como no caso das instituições
panópticas, que precisam criar uma ordem no seio de
uma população desviante), mas antes capturar ou flagrar
uma fratura na ordem corrente. Tanto os humanos por
trás das câmeras quanto os softwares de identificação
de movimentos suspeitos podem executar essa tarefa de
flagrar uma ruptura na normalidade, ou mesmo antecipá-la.
Um exemplo recente e bastante engenhoso é o Hostil
Intent, projeto para o desenvolvimento e implementação
de um programa computacional de análise de imagens de
câmeras de vigilância, monitoradas remotamente em tempo
real. O programa pretende ser capaz de descobrir pistas
acerca do estado mental e das intenções futuras de indivíduos
através da análise de traços comportamentais e fisiológicos,
como micro-expressões involuntárias do rosto, permitindo
que se evite a efetuação da intenção prevista.
Por parte dos observados, as câmeras são
incorporadas a uma arquitetura da regularidade e usualmente
tendem a ser quase “esquecidas” à medida que a sua presença
e sua retórica dissuasiva são assimiladas e naturalizadas,
mantendo-se na margem do foco de atenção e só ocupando
a frente da cena quando se dá uma ruptura mais ou menos
intensa da regularidade corrente. Vale contudo notar
que a ordem e a regularidade são mantidas não tanto
por uma interiorização de valores que orientam um projeto
identitário ou biográfico, tal como previam as instâncias
normalizadoras modernas. As câmeras têm um efeito normativo
“formal”, “pragmático” e “utilitário”, em que “parecer
normal” é mais decisivo do que “ser normal”. O sistema
de observação e inspeção funda, assim, “um novo paradigma
de normalidade que não se apóia sobre a interpelação
subjetiva, mas sobre a incerteza das hipóteses intrasubjetivas” [7] . A normalidade é, assim, um efeito de
superfície derivado da retórica dissuasiva das câmeras
de vigilância. A adesão a modelos “práxicos” predominantes
e o pertencimento a um “ethos” particular – o cliente
de supermercado ou de banco, o passageiro de avião,
o usuário de metrô etc – são mais importantes que a
interiorização dos valores sociais de que tais modelos
são uma das muitas expressões. Nesse sentido, podemos
afirmar que o campo normativo atrelado às câmeras de
CCTV é constituído por comportamentos que refletem uma
norma sem valor.
Neste último aspecto já desponta uma lógica
do flagrante que se vincula ao poder de “evidência”
próprio às imagens de videovigilância. A ausência de
uma intencionalidade suposta, o registro de uma visão
sem olhar, o fortuito maquínicamente flagrado, conferem
à imagem de vigilância um caráter de “prova” que está
intimamente articulado às suas funções de controle.
O olhar e a atenção implicados na captura do flagrante
do real não estão, contudo, restritos às arquiteturas
da regularidade e do controle; todo um circuito de libidos,
prazeres e entretenimento também é aí mobilizado. Circulam
em larga escala na Internet e em especial no You Tube,
cenas “eróticas”, sexuais ou simplesmente “divertidas”
flagradas por câmeras de vigilância. Tais vínculos entre
vigilância, flagrante e prazer se estendem às câmeras
e imagens amadoras.
Câmeras e imagens amadoras: flagrante
e prazer
Juntamente com as câmeras de CCTV, webcams,
câmeras de telefones celulares, fotográficas e de vídeo,
embora não estejam diretamente voltadas para o exercício
da vigilância, participam ativamente da construção de
um regime escópico sobre a cidade e seus corpos que
se passa não tanto nos circuitos de controle, mas sim
nos circuitos de prazer, entretenimento e voyeurismo,
onde vigoram uma atenção vigilante e a captura do flagrante.
As câmeras fotográficas e de vídeo, cada vez mais portáteis
e presentes no cotidiano dos indivíduos, especialmente
a partir da difusão dos telefones celulares com câmeras
integradas, multiplicam os olhares sobre a cidade, fazendo
dos corpos passantes olhos que não apenas vêem, mas
registram e transmitem à distância cenas da cidade.
Olhos eletrônicos locais com alcance e conexão global,
olhares simultaneamente privados e públicos, individuais
e coletivos. Recentemente, vemos crescer o número de
episódios e de imagens capturadas por câmeras privadas
em espaços públicos circulando tanto na Internet (weblogs,
fotologs, Youtube) como na televisão e na imprensa.
Casos célebres como o vídeo “erótico” da Daniela Ciccarelli
com seu namorado numa praia na Espanha, o enforcamento
de Saddam Hussein, imagens do atentado à bomba no metrô
de Londres e cenas do recente acidente com o avião da
TAM em São Paulo circularam em
diversos meios de comunicação, da grande mídia a Internet.
Ao lado deles, inúmeras outras imagens de fotografia
e vídeo capturadas por indivíduos nos espaços públicos
circulam cotidiana e profusamente em sites de compartilhamento
de vídeo e fotografias, weblogs, fotologs. Estas imagens
constituem um repertório diversificado e relativamente
desordenado dos inúmeros olhares sobre a cidade e seus
sentidos e efeitos são múltiplos. Há, contudo, em algumas
delas, um traço comum que as tornam imagens de vigilância
– uma estética do flagrante resultante de um
olhar amador que reúne aspectos simultaneamente policiais,
libidinais e jornalísticos. No que concerne o espectador,
essas imagens têm um efeito de vigilância na medida
em que supõem – com mais ou menos intensidade – um olho
que vê sem ser visto, incitando o voyeurismo.
Em alguns casos, tal estética do flagrante
pende mais para o policial e/ou o jornalístico, buscando
cenas de suposto interesse público em tom de denúncia
e motivados por uma atitude “cidadã”. O chamado jornalismo
“cidadão” e “participativo” nos dá inúmeros exemplos,
tanto na Internet quanto na grande mídia, convocando
amadores a enviarem as imagens disparadas por suas câmeras.
A campanha “Oi Cidadão, Flagrantes de Cidadania”,
do A
Voz do Cidadão, por exemplo, convida os internautas
a flagrarem cenas de descaso público e político nas
cidades. A chamada da campanha explicita os nexos entre
o jornalístico e o policial, convocando o telefone celular
como uma “câmera-arma”:
Faça do seu celular uma arma a favor da plena cidadania!
Fotografe situações de cidadania exemplar como estas
que estão aqui embaixo e envie para nós com um relato
sobre o flagra e a lição que você acha que pode tirar
e passar adiante. Se aprovadas, você terá suas imagens
divulgadas aqui nesta página e ainda receberá um certificado
de Cidadão Exemplar da Voz do Cidadão
[8] .
A grande mídia também convoca o “olhar
cidadão” em colunas como o “Eu
repórter”, de O Globo Online, ou o “Foto
Repórter”, do Estadão. Sabe-se que a novidade
não reside no uso do flagrante capturado por câmeras
amadoras, já há muito comum no jornalismo. A “novidade”
consiste na intensificação desta prática e no “efeito
de real”
[9] que tais imagens hoje produzem, como
veremos adiante.
Num outro conjunto de imagens, a estética
do flagrante é carregada de uma libido do instante
cuja atenção recai sobre o inesperado e o incomum no
fluxo mesmo da vida regular, ordinária e comum. O gozo
do instante não é apenas o do clique e da captura do
agora, já familiar desde a fotografia instantânea, mas
também, e talvez até principalmente, o da distribuição
e divulgação imediatas, fazendo do instante capturado
um instante partilhado, ubíquo, conectado. Aqui, os
olhares são mobilizados por um tipo de atenção que visa
flagrar cenas picantes da vida urbana, sacando suas
câmeras ágeis em registrar e distribuir. O flagrante
é carregado de um erotismo e de um voyeurismo que se
mesclam a uma atitude policial e/ou jornalística
[10] . O ciberespaço e em especial a Internet
são o território privilegiado de circulação dessas imagens
que não se endereçam a um espectador coletivo nem trazem
consigo nenhum interesse público maior. Estas imagens
que visam flagrar pequenas idiossincrasias urbanas voltam-se
para o espectador individual ou privado e seu gosto
particular pelo insólito da vida cotidiana – uma roupa
íntima flagrada entre um movimento e outro de um corpo
passante, uma ligeira transgressão comportamental em
um lugar público, o pequeno vexame de um corpo que cai
inesperadamente etc. Imagens muito similares àquelas
que os paparazzi, as câmeras escondidas, os reality
shows, as pegadinhas e as vídeo-cassetadas nos habituaram
a ver. Eis porque estas imagens reúnem ao mesmo tempo
vigilância e espetáculo – são imagens em que o fortuito
capturado se torna matéria de um testemunho e uma observação
que convocam o voyeurismo do espectador. São imagens
que têm um efeito de vigilância (mais que uma intencionalidade)
e que também divertem, entretêm, dão prazer. Imagens
que promovem uma reversibilidade jocosa entre o anônimo
e o célebre, o público e o privado, pois aplicam à vida
corrente e às pessoas comuns o mesmo procedimento escópico
e atencional usualmente reservado às celebridades da
grande mídia ou ao interesse do grande público.
Ainda que estas práticas sejam de algum
modo “menores”, na medida em que nem sempre são coordenadas
por instituições ou atores sociais organizados, mas
muitas vezes exercidas de modo relativamente disperso
por inúmeros indivíduos, elas não são pouco significativas
nem isoladas. Elas compõem um cenário multifacetado,
expressando e testemunhando a tendência à naturalização
e banalização da vigilância como modo de olhar e prestar
atenção na cultura contemporânea e, em particular, nas
cidades.
Muitos dos elementos presentes neste olhar
e nesta atenção vigilantes, bem como o que estamos chamando
aqui de estética do flagrante, não são novidades
absolutas do nosso tempo. O registro fotográfico ou
fílmico de flagrantes criminais, sexuais, jornalísticos
e seu uso como prova irrefutável do “real” foram amplamente
aplicados tanto nos processos policiais e judiciais,
quanto na imprensa, no cinema documental ou ficcional
e na literatura. Sabe-se o quanto o testemunho fotográfico
gozou, na modernidade, de um poder de evidência tal
que fazia da imagem uma prova visual e irrefutável do
ato criminoso, o que fez da fotografia um importante
instrumento de vigilância e controle policial e criminal [11] . O caráter maquínico da fotografia conferia
ainda mais veracidade à imagem, destituindo-a de potenciais
interferências humanas. A suposição de que “o aparelho
não pode mentir” [12] dotava o culpado de uma visibilidade
inextirpável. O flagrante conferia à imagem uma pontualidade
que ampliava ainda mais o seu poder de prova na medida
em que nela se fixava o instante da culpa. Além disso,
a história da fotografia tem inúmeros exemplos de imagens
de vigilância, em que o desejo de ver sem ser visto
é central. Uma série de fotógrafos usou câmeras escondidas
para capturar cenas da vida urbana em seu estado mais
“natural”, fazendo da vigilância um elemento importante
da estética fotográfica. Sintomaticamente, uma das primeiras
câmeras portáteis com tempo de exposição rápida era
chamada “detective camera” [13] .
Também não é recente a presença dessas
imagens e dessa estética da vigilância na indústria
do entretenimento e na arte. Segundo Tom Gunning [14] , a presença da câmera como testemunha
dá-se inclusive primeiro no teatro, na literatura e
no cinema modernos do que na justiça criminal. Os vínculos
deste olhar e desta atenção vigilante com a sexualidade
e o erotismo tampouco são novidade. O mesmo autor suspeita
de que, no início do cinema e também na vida real, a
vigilância fotográfica tenha sido mais usada para flagrantes
sexuais e suspeitas conjugais do que para crimes. A
excitação do flagrante fotográfico rendeu a Freud uma
interpretação muito particular de uma paciente que sofria
de paranóia, convencida de estar sendo fotografada,
tendo mesmo ouvido a batida ou o clique que supunha
vir do obturador da câmera. Freud atribui a alucinação
de sua paciente a um deslocamento auditivo da vibração
de seu clitóris excitado
[15] .
Além de ser um modo de exercer a atenção,
o flagrante é, também na modernidade, um meio de atrair
e capturar a atenção do espectador. Em sua análise da
dimensão “neurológica” da modernidade, Ben Singer [16] mostra como os sentidos modernos são
submetidos a uma hiperestimulação na qual vigorava uma
“estética do espanto”. Seja na imprensa ou nos meios
de entretenimento popular sensacionalista, as representações
dos acidentes urbanos ressaltavam o que eles continham
de mais grotesco e extremo, sendo comum a representação
da vítima no instante do choque, acompanhada de uma
testemunha surpresa e assustada.
Apontar e reconhecer a anterioridade histórica
desses processos não implica, contudo, descartar qualquer
especificidade contemporânea. Algumas dessas diferenças
já foram mencionadas e destacamos agora apenas as que
concernem ao tópico em questão. A estética
do flagrante ainda guarda hoje a excitação pela
surpresa e pelo espanto de outrora em diversos setores
do entretenimento popular, mas, no que diz respeito
aos flagrantes da vida urbana atual, há um reposicionamento
do observador que merece ser considerado. Este não apenas
assiste ao espetáculo da dinâmica urbana e suas representações
visuais como um ponto na massa, mas produz e distribui
com suas câmeras portáteis e conectadas um micro-espetáculo
do cotidiano, sendo ao mesmo tempo testemunha individual
e difusor global da vida urbana. O olho munido do clique
instantaneamente disparado e conectado é, ao mesmo tempo,
um ponto de observação e de difusão. Eis porque, dentre
outros fatores já apontados, as imagens que daí derivam
podem não ser apenas o registro de um olhar que casualmente
testemunha algo, como podem se tornar ou ter o efeito
de uma imagem de vigilância, não muito diferente das
imagens policiais ou midiáticas.
E o apelo destas imagens na captura da
atenção de outros espectadores espalhados diante de
diferentes telas (de computador, de celular, de televisão)
parece residir não somente no seu conteúdo, mas também
naquilo que, na sua forma, indica as condições de sua
produção, tornando-as ainda mais efetivas como imagens
de vigilância. Os ruídos das imagens amadoras indicam
uma casualidade, uma urgência, um ar não intencional,
improvisado e não retocado que amplia o seu efeito de
real e de vigilância. Além disso, a excitação do flagrante
presente na imagem supõe um observador oculto, colocando
o espectador na condição de voyeur. A circulação virótica
dessas imagens [17] incita um voyeurismo distribuído e nos
dá mais uma mostra de como os circuitos da vigilância
não estão apenas se fazendo nos sistemas relativamente
fechados do “closed circuit television”, mas também
nas vias abertas das câmeras amadoras, da Internet e
do espaço urbano.
Um último exemplo desse processo, fora
do campo das imagens amadoras, reside nos sistemas de
visualização do espaço urbano atrelado a mapas, como
o Google
Street View, o MapJack
e o EveryScape.
Os três programas são sistemas de visualização das cidades
a partir de imagens no nível da rua com um panorama
de 360 graus, vários níveis de zoom e boa resolução.
As imagens são vinculadas a mapas, permitindo ao usuário
visualizar em detalhes e com nitidez trajetos, prédios,
placas, pessoas transitando nas ruas etc. Para além
do uso funcional de localização e orientação nas cidades,
tais sistemas vêm suscitando discussões sobre violação
de privacidade, uma vez que algumas dessas imagens apresentam
uma nitidez que permitem identificar pessoas nas ruas,
carros, janelas etc [18]
. Paralelamente, surgem também sites na Internet,
como o Streetviewr.com,
GeoTrotter.com,
que brincam de coletar, receber e disponibilizar os
"flagrantes" capturados inadvertidamente pelas
câmeras destes serviços, em particular do Google
Street View, o mais popular deles. A brincadeira
consiste em descobrir na imagem detalhes risíveis, curiosos,
constrangedores ou picantes, casualmente e involuntariamente
capturados. Simulando a perspectiva do pedestre e do
passante, o sistema permite que se opere, pelo comando
do zoom, um voyeurismo controlado sobre a imagem em
busca de detalhes que revelem algo escondido, produzindo
uma espécie de strip-tease do espaço urbano.
Conjuga-se, mais uma vez, um olhar erótico e policial
a uma postura jornalística à procura de flagrantes.
A mistura de voyeurismo e vigilância, de policial e
libidinal, se atualiza aqui num curioso regime de atenção
e observação da cena urbana, em que o campo perceptivo
é a própria imagem.
Estes “flagrantes” são mais um exemplo
de como a vigilância, em vez de ser um regime de visão
e de atenção circunscrito a momentos e espaços de controle
específicos, é incorporada ao repertório cultural, social,
tecnológico, subjetivo e estético contemporâneo. Esta
incorporação não implica a sua presença por toda parte,
nem uma homogeneidade em sua forma; vimos aqui apenas
alguns aspectos de um processo que é múltiplo e com
sentidos e efeitos diversos. É preciso ainda afirmar,
mais por necessidade estratégica do que por respeito
a alguma ordem “natural”, que o efeito-vigilância que
testemunhamos resta aberto a apropriações e desvios
imprevistos.
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