Revista Cinética Cultura e Pensamento
Estética do flagrante:
Controle e prazer nos dispositivos de vigilância contemporâneos
Fernanda Bruno Ensaios Críticos

É preciso partir de um postulado: os dispositivos de vigilância não são exteriores à dinâmica sócio-cultural contemporânea, mas lhe são imanentes. Não são, pois, maquinações de forças externas de dominação, mas intrínsecos ao processo de modernização e suas práticas de gestão racional das instituições, da produção, do governo, da saúde, da segurança dos estados e das populações etc. Boa parte da vigilância contemporânea é herdeira do desejo de eficiência, velocidade, controle e coordenação da administração moderna. Mas a vigilância também é cada vez mais imanente aos processos contemporâneos de entretenimento, sociabilidade e comunicação. Lembremos que a vigilância não é apenas herdeira da cinzenta maquinaria industrial-disciplinar, da empoeirada burocracia estatal e das luzes esclarecidas do Iluminismo. A vigilância também herda as cores e os prazeres da cultura do espetáculo, que floresce junto com as cidades modernas. Ao mesmo tempo em que a sociedade moderna fez dos indivíduos um foco de visibilidade dos procedimentos disciplinares, ela também os incitou e os excitou enquanto espectadores de toda uma cultura visual nascente, intimamente atrelada à vida urbana. Observadores estimulados e excitados pelo fluxo movente da vida e das paisagens modernas, pela aceleração dos ritmos e deslocamentos, pela complexificação da vida urbana, pelo advento de novos objetos e mercadorias, bem como pelas novas tecnologias de produção e reprodução da imagem (fotografia, cinema, estereoscópio etc).

No cruzamento dessa dupla herança, as relações entre vigilância e espetáculo se tornam hoje ainda mais estreitas. Basta pensar na proliferação de reality shows em que aparatos de vigilância e confinamento são montados a serviço do entretenimento, ou nas práticas de exposição do eu e da “intimidade” em weblogs, fotologs, redes sociais (Orkut, Myspace) e sites de compartilhamento de fotografia ou vídeo (Flickr, You Tube), em que as relações sociais se tecem atreladas a uma mistura de voyeurismo, exibcionismo e vigilância. É certo que, neste movimento, tanto a vigilância quanto o espetáculo se encontram transformados, não cabendo confortavelmente nos limites com os quais a modernidade os definiu. Das muitas transformações em curso, tratemos de uma em especial: a naturalização da vigilância como modo de olhar e prestar atenção na cultura contemporânea. Dois contextos próprios à vida urbana atual são privilegiados para apreender tal processo: a incorporação de câmeras de vigilância às paisagens e arquiteturas urbanas e a produção e circulação de imagens amadoras da cidade e de seus corpos nas mídias contemporâneas. A escolha por estes dois contextos não é casual; eles ressaltam o duplo aspecto da naturalização da vigilância que se deseja explorar aqui – os procedimentos de controle, mais evidentes na onipresença das câmeras de vigilância em espaços públicos, e os circuitos de prazer, mais claros na profusão de imagens amadoras. Nessa mistura de controle e prazer, reconhecemos uma lógica e uma estética do flagrante presentes tanto no olhar quanto na atenção vigilante sobre a cidade e os indivíduos que nela circulam. Embora estejam aqui em foco dois contextos particulares da vida urbana contemporânea, o que chamamos de naturalização da vigilância, tanto como regime de visibilidade quanto como regime atencional, implica sua relativa incorporação ao nosso repertório cultural, deixando de ser exercida prioritariamente em contextos de poder e controle circunscritos espacialmente, temporalmente, institucionalmente. Na vigilância moderna e disciplinar tais limites eram próprios à sua lógica e aos seus efeitos, definindo grupos específicos a serem vigiados (prisioneiros, doentes, alunos, operários), bem como funções, hierarquias e papéis definidos (as fronteiras entre vigias e vigiados eram claramente inscritas nos espaços diferenciados, nos cargos e tarefas, nas identidades). Num cenário bastante diverso deste, vemos hoje, particularmente no campo das imagens de vigilância, a sua circulação tanto nos aparatos policiais quanto na pornografia amadora, nos arquivos da indústria de segurança e nas revistas de fofoca, na televisão e na Internet, no entretenimento popular e na arte. Imagens que refletem a mistura e a transformação recíproca tanto da vigilância quanto do espetáculo, a reordenação dos modos de ver e de ser visto, a reorientação dos focos e práticas da atenção, o cruzamento das pulsões voyeurísticas e exibicionistas com as modulações do controle. Imagens que condensam boa parte das questões que trataremos aqui.

Antes de ingressar nos contextos e processos aqui em foco, é preciso ter no horizonte o caráter multifacetado da vigilância contemporânea. A paisagem é múltipla não apenas por conta da miríade de dispositivos espalhados pelos espaços públicos e privados, mas também pela multiplicidade de funções, propósitos e afetos que os atravessam. Se considerarmos uma listagem bastante incompleta dos dispositivos, temos câmeras de vigilância em lugares públicos, semi-públicos e privados, webcams pessoais ou institucionais, sistemas de controle de trânsito (câmeras, pardais, radares), sistemas de geolocalização (GPS [1] , GIS [2] , RFID [3] ), fronteiras e portões eletrônicos (senhas e cartões de acesso, scanners para pessoas e bens/produtos), mecanismos de autenticação e controle de identidade (cartões de identidade e dispositivos de identificação biométrica - impressão digital, scanner de iris, topografia facial, software de reconhecimento facial, scanner de mão), tecnologias de informação e comunicação (computadores portáteis, telefones celulares), redes de monitoramento e cruzamento de dados informacionais (compras, comunicações, trajetos, serviços), sistemas informacionais de coleta, arquivo, análise e mineração de dados (bancos de dados, perfis computacionais), entre outros. Além disso, nota-se que nem todos estes dispositivos estão diretamente ou intencionalmente voltados para o exercício da vigilância; esta, em muitos casos, é um efeito ou característica secundária de um dispositivo cuja função primeira é outra – um telefone celular com câmera, por exemplo, tem uma função primeira de comunicação e registro visual, mas pode ser apropriado como uma câmera de vigilância em certas ocasiões, tal como aconteceu no caso do enforcamento de Sadam Hussein, no atentado à bomba no metrô de Londres, entre muitos outros casos. Já se nota aqui o segundo aspecto que atesta o caráter diversificado da vigilância contemporânea - ela se exerce direta ou indiretamente misturada a diversos processos e práticas, com propósitos e funções variadas: nas práticas de consumo e nas estratégias de marketing e publicidade, nas medidas de segurança e coordenação da circulação de pessoas, informações e bens, nas formas e meios de comunicação e sociabilidade, na prestação de serviços etc. O afetos que hoje ela mobiliza não são menos plurais - se por um lado ela se justifica ou se exerce pelo medo e pela promessa de segurança, ela também mobiliza ou expressa todo um circuito de libidos, prazeres e desejos. Nesse sentido, a vigilância não deve ser entendida como uma atividade sombria, coercitiva e dominadora, orquestrada por um Big Brother [4] . Assim como a vigilância moderna era inseparável da maquinaria estatal, burocrática e disciplinar do capitalismo industrial, a vigilância contemporânea é inseparável da maquinaria informacional, reticular e modular do capitalismo pós-industrial. Não é, portanto, boa nem má por natureza, assim como seus efeitos não se medem por suas intenções.

Arquitetura da regularidade: câmeras de vigilância e controle

Dentre os inúmeros dispositivos de vigilância, as câmeras de CCTV [5] talvez sejam as mais claramente identificadas como instrumento de inspeção e controle, embora o selo “sorria, você está sendo filmado” já aponte, cinicamente, a sua fronteira tênue com pulsões exibicionistas. Sabe-se também que as administrações públicas em quase todo o mundo, incluído o Brasil, vêm ampliando fortemente sistemas de videovigilância em espaços públicos, instituindo um olhar que por sua multiplicação tende à onipresença, descortinando a cidade e os corpos passantes. Cresce também vertiginosamente a indústria da segurança, que serve um cardápio cada vez mais variado de sistemas de CCTV. Todo esse crescimento dá-se, vale notar, a despeito de evidências de que o uso de câmeras de vigilância seja efetivo na redução da criminalidade. Mas esse não é o nosso foco, e sim as modalidades de olhar, de estados atencionais e de significação social da vigilância implicados no tipo de controle exercidos pela videovigilância. Três aspectos gerais nos interessam destacar.

O primeiro consiste no caráter opaco, impessoal e transinstitucional do olhar das câmeras de vigilância, que atua como uma espécie de terceiro olho frente ao qual não há negociação possível. Este aspecto se deve em boa parte ao próprio dispositivo, que tem por característica ser uma instância de inspeção cujo sujeito da ação, ou melhor, do olhar, não está presente na cena, mas nem por isso é neutro. O sujeito do olhar da câmera é, antes de tudo, invisível, desconhecido e inverificável por parte dos que são observados. Esta opacidade e esta impessoalidade não se devem apenas ao fato de não podermos ver quem está observando, mas também ao fato de esta imagem ser potencialmente objeto de múltiplos olhares de uma cadeia institucional qualquer. Um conjunto de câmeras com sistema de monitoramento e registro dispostas em um shopping center, por exemplo, pode ser inspecionada tanto pelos operadores encarregados, quanto pelo pessoal da segurança, por policiais, funcionários do shopping, jornalistas, procuradores, pesquisadores, ou seja, qualquer um que tenha poder e interesse de observar a imagem registrada. Trata-se, assim, de um observador proteiforme, distante e disperso no arquipélago institucional [6] . Eis porque, além de opaco e impessoal, o olhar da câmera é transinstitucional. Ademais, funciona como um terceiro olho que, embora seja em parte uma extensão da função normativa do olhar social, exclui qualquer intersubjetividade possível e, conseqüentemente, qualquer negociação, sendo ao mesmo tempo emissor e receptor da imagem.

Há, pois, um desequilíbrio entre a instância de observação e os indivíduos observados, o qual se dá ao menos em três níveis. No nível espacial, dado que a imagem da ação observada não se passa necessariamente no mesmo lugar em que a ação se dá. No nível temporal, específico para a imagem registrada, pois não se trata apenas de ver, mas de rever e recriar o olhar quantas vezes se desejar, produzindo uma imagem indefinidamente estocada para o futuro, tornando o seu “destino” e a sua significação bem mais incertos, suspensos e sujeitos a um olhar a posteriori. Por fim, um desequilíbrio social que concerne à dessimetria na relação de poder entre o observador e o observado, uma vez que a impossibilidade de ver e negociar com o sujeito do olhar tornam o indivíduo sob a vigilância relativamente impotente frente a sua própria imagem, que é de algum modo confiscada pela câmera. Não é por acaso que certas ações de contra-vigilância destinam-se a tornar visível e perturbadora essa unilateralidade da videovigilância. O grupo de artistas e ativistas Surveillance Camera Players, por exemplo, realizam performances diante das câmeras, procurando ao mesmo tempo deslocar e explicitar as implicações sociais e políticas desta opacidade do seu olhar.

O segundo aspecto geral da significação social e da forma de controle exercida pela incorporação das câmeras de vigilância às arquiteturas urbanas consiste na produção de uma indiscernibilidade entre vítimas e suspeitos, bem como entre segurança e ameaça. Diferentemente dos dispositivos de inspeção modernos, que vigiavam um conjunto predefinido de indivíduos cuja presença se devia à própria instituição que as vigiava – prisioneiros, enfermos etc – as câmeras de vigilância em ruas, metrôs, parques públicos, entre outros, são dirigidas a todos e a qualquer um, cumprindo uma função prioritariamente dissuasiva e “preventiva”. Os indivíduos aí não têm uma identidade individual nem coletiva que justifique a vigilância, sendo o acaso de transitarem num mesmo espaço inspecionado o único fato que os une. Somos todos igualmente vítimas e suspeitos potenciais, assim como a consciência da vigilância representa simultaneamente segurança e ameaça. Um exemplo bastante evidente é o das câmeras de supermercados que vigiam ao mesmo tempo seus clientes e seus funcionários, tornando ambos vítimas e suspeitos potenciais. Ainda que soe excessivamente distópica, a afirmação de que a onipresença das câmeras de CCTV refletem um estado de suspeição generalizada - todos são suspeitos, até que se prove o contrário - é em parte verdadeira. Digo em parte porque tal estado não pode designar a totalidade dos processos de vigilância, mas aplica-se especialmente às câmeras de CCTV e, mesmo neste caso, não se pode esquecer que a banalização da suspeita é aqui mais um efeito deste dispositivo do que a sua intenção primeira, sendo esta muitas vezes mobilizada por critérios de eficiência, conforto e segurança na facilitação da circulação de pessoas em lugares públicos e semi-públicos.

Por fim, o terceiro aspecto consiste no efeito normativo das câmeras, que deriva de um tipo de atenção voltado para a captura do excepcional, do irregular. Ou seja, as câmeras não se destinam tanto a instaurar uma normalidade (como no caso das instituições panópticas, que precisam criar uma ordem no seio de uma população desviante), mas antes capturar ou flagrar uma fratura na ordem corrente. Tanto os humanos por trás das câmeras quanto os softwares de identificação de movimentos suspeitos podem executar essa tarefa de flagrar uma ruptura na normalidade, ou mesmo antecipá-la. Um exemplo recente e bastante engenhoso é o Hostil Intent, projeto para o desenvolvimento e implementação de um programa computacional de análise de imagens de câmeras de vigilância, monitoradas remotamente em tempo real. O programa pretende ser capaz de descobrir pistas acerca do estado mental e das intenções futuras de indivíduos através da análise de traços comportamentais e fisiológicos, como micro-expressões involuntárias do rosto, permitindo que se evite a efetuação da intenção prevista.

Por parte dos observados, as câmeras são incorporadas a uma arquitetura da regularidade e usualmente tendem a ser quase “esquecidas” à medida que a sua presença e sua retórica dissuasiva são assimiladas e naturalizadas, mantendo-se na margem do foco de atenção e só ocupando a frente da cena quando se dá uma ruptura mais ou menos intensa da regularidade corrente. Vale contudo notar que a ordem e a regularidade são mantidas não tanto por uma interiorização de valores que orientam um projeto identitário ou biográfico, tal como previam as instâncias normalizadoras modernas. As câmeras têm um efeito normativo “formal”, “pragmático” e “utilitário”, em que “parecer normal” é mais decisivo do que “ser normal”. O sistema de observação e inspeção funda, assim, “um novo paradigma de normalidade que não se apóia sobre a interpelação subjetiva, mas sobre a incerteza das hipóteses intrasubjetivas” [7] . A normalidade é, assim, um efeito de superfície derivado da retórica dissuasiva das câmeras de vigilância. A adesão a modelos “práxicos” predominantes e o pertencimento a um “ethos” particular – o cliente de supermercado ou de banco, o passageiro de avião, o usuário de metrô etc – são mais importantes que a interiorização dos valores sociais de que tais modelos são uma das muitas expressões. Nesse sentido, podemos afirmar que o campo normativo atrelado às câmeras de CCTV é constituído por comportamentos que refletem uma norma sem valor.

Neste último aspecto já desponta uma lógica do flagrante que se vincula ao poder de “evidência” próprio às imagens de videovigilância. A ausência de uma intencionalidade suposta, o registro de uma visão sem olhar, o fortuito maquínicamente flagrado, conferem à imagem de vigilância um caráter de “prova” que está intimamente articulado às suas funções de controle. O olhar e a atenção implicados na captura do flagrante do real não estão, contudo, restritos às arquiteturas da regularidade e do controle; todo um circuito de libidos, prazeres e entretenimento também é aí mobilizado. Circulam em larga escala na Internet e em especial no You Tube, cenas “eróticas”, sexuais ou simplesmente “divertidas” flagradas por câmeras de vigilância. Tais vínculos entre vigilância, flagrante e prazer se estendem às câmeras e imagens amadoras.

Câmeras e imagens amadoras: flagrante e prazer

Juntamente com as câmeras de CCTV, webcams, câmeras de telefones celulares, fotográficas e de vídeo, embora não estejam diretamente voltadas para o exercício da vigilância, participam ativamente da construção de um regime escópico sobre a cidade e seus corpos que se passa não tanto nos circuitos de controle, mas sim nos circuitos de prazer, entretenimento e voyeurismo, onde vigoram uma atenção vigilante e a captura do flagrante. As câmeras fotográficas e de vídeo, cada vez mais portáteis e presentes no cotidiano dos indivíduos, especialmente a partir da difusão dos telefones celulares com câmeras integradas, multiplicam os olhares sobre a cidade, fazendo dos corpos passantes olhos que não apenas vêem, mas registram e transmitem à distância cenas da cidade. Olhos eletrônicos locais com alcance e conexão global, olhares simultaneamente privados e públicos, individuais e coletivos. Recentemente, vemos crescer o número de episódios e de imagens capturadas por câmeras privadas em espaços públicos circulando tanto na Internet (weblogs, fotologs, Youtube) como na televisão e na imprensa. Casos célebres como o vídeo “erótico” da Daniela Ciccarelli com seu namorado numa praia na Espanha, o enforcamento de Saddam Hussein, imagens do atentado à bomba no metrô de Londres e cenas do recente acidente com o avião da TAM em São Paulo circularam em diversos meios de comunicação, da grande mídia a Internet. Ao lado deles, inúmeras outras imagens de fotografia e vídeo capturadas por indivíduos nos espaços públicos circulam cotidiana e profusamente em sites de compartilhamento de vídeo e fotografias, weblogs, fotologs. Estas imagens constituem um repertório diversificado e relativamente desordenado dos inúmeros olhares sobre a cidade e seus sentidos e efeitos são múltiplos. Há, contudo, em algumas delas, um traço comum que as tornam imagens de vigilância – uma estética do flagrante resultante de um olhar amador que reúne aspectos simultaneamente policiais, libidinais e jornalísticos. No que concerne o espectador, essas imagens têm um efeito de vigilância na medida em que supõem – com mais ou menos intensidade – um olho que vê sem ser visto, incitando o voyeurismo.

Em alguns casos, tal estética do flagrante pende mais para o policial e/ou o jornalístico, buscando cenas de suposto interesse público em tom de denúncia e motivados por uma atitude “cidadã”. O chamado jornalismo “cidadão” e “participativo” nos dá inúmeros exemplos, tanto na Internet quanto na grande mídia, convocando amadores a enviarem as imagens disparadas por suas câmeras. A campanha “Oi Cidadão, Flagrantes de Cidadania”, do A Voz do Cidadão, por exemplo, convida os internautas a flagrarem cenas de descaso público e político nas cidades. A chamada da campanha explicita os nexos entre o jornalístico e o policial, convocando o telefone celular como uma “câmera-arma”:

Faça do seu celular uma arma a favor da plena cidadania! Fotografe situações de cidadania exemplar como estas que estão aqui embaixo e envie para nós com um relato sobre o flagra e a lição que você acha que pode tirar e passar adiante. Se aprovadas, você terá suas imagens divulgadas aqui nesta página e ainda receberá um certificado de Cidadão Exemplar da Voz do Cidadão [8] .

A grande mídia também convoca o “olhar cidadão” em colunas como o “Eu repórter”, de O Globo Online, ou o “Foto Repórter”, do Estadão. Sabe-se que a novidade não reside no uso do flagrante capturado por câmeras amadoras, já há muito comum no jornalismo. A “novidade” consiste na intensificação desta prática e no “efeito de real” [9] que tais imagens hoje produzem, como veremos adiante.

Num outro conjunto de imagens, a estética do flagrante é carregada de uma libido do instante cuja atenção recai sobre o inesperado e o incomum no fluxo mesmo da vida regular, ordinária e comum. O gozo do instante não é apenas o do clique e da captura do agora, já familiar desde a fotografia instantânea, mas também, e talvez até principalmente, o da distribuição e divulgação imediatas, fazendo do instante capturado um instante partilhado, ubíquo, conectado. Aqui, os olhares são mobilizados por um tipo de atenção que visa flagrar cenas picantes da vida urbana, sacando suas câmeras ágeis em registrar e distribuir. O flagrante é carregado de um erotismo e de um voyeurismo que se mesclam a uma atitude policial e/ou jornalística [10] . O ciberespaço e em especial a Internet são o território privilegiado de circulação dessas imagens que não se endereçam a um espectador coletivo nem trazem consigo nenhum interesse público maior. Estas imagens que visam flagrar pequenas idiossincrasias urbanas voltam-se para o espectador individual ou privado e seu gosto particular pelo insólito da vida cotidiana – uma roupa íntima flagrada entre um movimento e outro de um corpo passante, uma ligeira transgressão comportamental em um lugar público, o pequeno vexame de um corpo que cai inesperadamente etc. Imagens muito similares àquelas que os paparazzi, as câmeras escondidas, os reality shows, as pegadinhas e as vídeo-cassetadas nos habituaram a ver. Eis porque estas imagens reúnem ao mesmo tempo vigilância e espetáculo – são imagens em que o fortuito capturado se torna matéria de um testemunho e uma observação que convocam o voyeurismo do espectador. São imagens que têm um efeito de vigilância (mais que uma intencionalidade) e que também divertem, entretêm, dão prazer. Imagens que promovem uma reversibilidade jocosa entre o anônimo e o célebre, o público e o privado, pois aplicam à vida corrente e às pessoas comuns o mesmo procedimento escópico e atencional usualmente reservado às celebridades da grande mídia ou ao interesse do grande público.

Ainda que estas práticas sejam de algum modo “menores”, na medida em que nem sempre são coordenadas por instituições ou atores sociais organizados, mas muitas vezes exercidas de modo relativamente disperso por inúmeros indivíduos, elas não são pouco significativas nem isoladas. Elas compõem um cenário multifacetado, expressando e testemunhando a tendência à naturalização e banalização da vigilância como modo de olhar e prestar atenção na cultura contemporânea e, em particular, nas cidades.

Muitos dos elementos presentes neste olhar e nesta atenção vigilantes, bem como o que estamos chamando aqui de estética do flagrante, não são novidades absolutas do nosso tempo. O registro fotográfico ou fílmico de flagrantes criminais, sexuais, jornalísticos e seu uso como prova irrefutável do “real” foram amplamente aplicados tanto nos processos policiais e judiciais, quanto na imprensa, no cinema documental ou ficcional e na literatura. Sabe-se o quanto o testemunho fotográfico gozou, na modernidade, de um poder de evidência tal que fazia da imagem uma prova visual e irrefutável do ato criminoso, o que fez da fotografia um importante instrumento de vigilância e controle policial e criminal [11] . O caráter maquínico da fotografia conferia ainda mais veracidade à imagem, destituindo-a de potenciais interferências humanas. A suposição de que “o aparelho não pode mentir” [12] dotava o culpado de uma visibilidade inextirpável. O flagrante conferia à imagem uma pontualidade que ampliava ainda mais o seu poder de prova na medida em que nela se fixava o instante da culpa. Além disso, a história da fotografia tem inúmeros exemplos de imagens de vigilância, em que o desejo de ver sem ser visto é central. Uma série de fotógrafos usou câmeras escondidas para capturar cenas da vida urbana em seu estado mais “natural”, fazendo da vigilância um elemento importante da estética fotográfica. Sintomaticamente, uma das primeiras câmeras portáteis com tempo de exposição rápida era chamada “detective camera” [13] .

Também não é recente a presença dessas imagens e dessa estética da vigilância na indústria do entretenimento e na arte. Segundo Tom Gunning [14] , a presença da câmera como testemunha dá-se inclusive primeiro no teatro, na literatura e no cinema modernos do que na justiça criminal. Os vínculos deste olhar e desta atenção vigilante com a sexualidade e o erotismo tampouco são novidade. O mesmo autor suspeita de que, no início do cinema e também na vida real, a vigilância fotográfica tenha sido mais usada para flagrantes sexuais e suspeitas conjugais do que para crimes. A excitação do flagrante fotográfico rendeu a Freud uma interpretação muito particular de uma paciente que sofria de paranóia, convencida de estar sendo fotografada, tendo mesmo ouvido a batida ou o clique que supunha vir do obturador da câmera. Freud atribui a alucinação de sua paciente a um deslocamento auditivo da vibração de seu clitóris excitado [15] .

Além de ser um modo de exercer a atenção, o flagrante é, também na modernidade, um meio de atrair e capturar a atenção do espectador. Em sua análise da dimensão “neurológica” da modernidade, Ben Singer [16] mostra como os sentidos modernos são submetidos a uma hiperestimulação na qual vigorava uma “estética do espanto”. Seja na imprensa ou nos meios de entretenimento popular sensacionalista, as representações dos acidentes urbanos ressaltavam o que eles continham de mais grotesco e extremo, sendo comum a representação da vítima no instante do choque, acompanhada de uma testemunha surpresa e assustada.

Apontar e reconhecer a anterioridade histórica desses processos não implica, contudo, descartar qualquer especificidade contemporânea. Algumas dessas diferenças já foram mencionadas e destacamos agora apenas as que concernem ao tópico em questão. A estética do flagrante ainda guarda hoje a excitação pela surpresa e pelo espanto de outrora em diversos setores do entretenimento popular, mas, no que diz respeito aos flagrantes da vida urbana atual, há um reposicionamento do observador que merece ser considerado. Este não apenas assiste ao espetáculo da dinâmica urbana e suas representações visuais como um ponto na massa, mas produz e distribui com suas câmeras portáteis e conectadas um micro-espetáculo do cotidiano, sendo ao mesmo tempo testemunha individual e difusor global da vida urbana. O olho munido do clique instantaneamente disparado e conectado é, ao mesmo tempo, um ponto de observação e de difusão. Eis porque, dentre outros fatores já apontados, as imagens que daí derivam podem não ser apenas o registro de um olhar que casualmente testemunha algo, como podem se tornar ou ter o efeito de uma imagem de vigilância, não muito diferente das imagens policiais ou midiáticas.

E o apelo destas imagens na captura da atenção de outros espectadores espalhados diante de diferentes telas (de computador, de celular, de televisão) parece residir não somente no seu conteúdo, mas também naquilo que, na sua forma, indica as condições de sua produção, tornando-as ainda mais efetivas como imagens de vigilância. Os ruídos das imagens amadoras indicam uma casualidade, uma urgência, um ar não intencional, improvisado e não retocado que amplia o seu efeito de real e de vigilância. Além disso, a excitação do flagrante presente na imagem supõe um observador oculto, colocando o espectador na condição de voyeur. A circulação virótica dessas imagens [17] incita um voyeurismo distribuído e nos dá mais uma mostra de como os circuitos da vigilância não estão apenas se fazendo nos sistemas relativamente fechados do “closed circuit television”, mas também nas vias abertas das câmeras amadoras, da Internet e do espaço urbano.

Um último exemplo desse processo, fora do campo das imagens amadoras, reside nos sistemas de visualização do espaço urbano atrelado a mapas, como o Google Street View, o MapJack e o EveryScape. Os três programas são sistemas de visualização das cidades a partir de imagens no nível da rua com um panorama de 360 graus, vários níveis de zoom e boa resolução. As imagens são vinculadas a mapas, permitindo ao usuário visualizar em detalhes e com nitidez trajetos, prédios, placas, pessoas transitando nas ruas etc. Para além do uso funcional de localização e orientação nas cidades, tais sistemas vêm suscitando discussões sobre violação de privacidade, uma vez que algumas dessas imagens apresentam uma nitidez que permitem identificar pessoas nas ruas, carros, janelas etc [18] . Paralelamente, surgem também sites na Internet, como o Streetviewr.com, GeoTrotter.com, que brincam de coletar, receber e disponibilizar os "flagrantes" capturados inadvertidamente pelas câmeras destes serviços, em particular do Google Street View, o mais popular deles. A brincadeira consiste em descobrir na imagem detalhes risíveis, curiosos, constrangedores ou picantes, casualmente e involuntariamente capturados. Simulando a perspectiva do pedestre e do passante, o sistema permite que se opere, pelo comando do zoom, um voyeurismo controlado sobre a imagem em busca de detalhes que revelem algo escondido, produzindo uma espécie de strip-tease do espaço urbano. Conjuga-se, mais uma vez, um olhar erótico e policial a uma postura jornalística à procura de flagrantes. A mistura de voyeurismo e vigilância, de policial e libidinal, se atualiza aqui num curioso regime de atenção e observação da cena urbana, em que o campo perceptivo é a própria imagem.

Estes “flagrantes” são mais um exemplo de como a vigilância, em vez de ser um regime de visão e de atenção circunscrito a momentos e espaços de controle específicos, é incorporada ao repertório cultural, social, tecnológico, subjetivo e estético contemporâneo. Esta incorporação não implica a sua presença por toda parte, nem uma homogeneidade em sua forma; vimos aqui apenas alguns aspectos de um processo que é múltiplo e com sentidos e efeitos diversos. É preciso ainda afirmar, mais por necessidade estratégica do que por respeito a alguma ordem “natural”, que o efeito-vigilância que testemunhamos resta aberto a apropriações e desvios imprevistos.

Referências bibliográficas

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GUNNING, T.. “O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema” In: Leo Charney; Vanessa R. Schwartz. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
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SINGER, B. “Modernidade, hiperestímulo e início do sensacionalismo popular”. In: Leo Charney; Vanessa R. Schwartz. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.



[1] Sistema de posicionamento global por satélite.

[2] Sistema de informação geográfica: sistema informatizado para captura, armazenamento, verificação, integração, manipulação, análise e visualização de dados relacionados a posições na superfície terrestre.

[3] Identificação por radio freqüência: sistema de identificação automática através de sinais de rádio, capaz de recuperar e armazenar dados remotamente por meio de etiquetas RFID. Tais etiquetas são chips atrelados a antenas que podem ser colocados em produtos, animais ou pessoas, permitindo que estas sejam rastreadas e identificadas remotamente.

[4] ORWELL, G. 1984. Rio de Janeiro: Nacional, 2003.

[5] Closed Circuit Television: câmeras de vídeo cujos sinais são transmitidos a um conjunto limitado de monitores. Recentemente, há modelos de CCTV que utilizam sistemas de conexão sem fio (wireless).

[6] LIANOS, M. Le nouveau controle social. Paris: L'Harmattan, 2001.

[7] LIANOS, op.cit., p. 126.

[9] BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

[10] O vínculo entre esses termos também é visível nos sites e imagens pornográficas na Internet, amadores ou não. Seus nomes são em si reveladores: “Cidade Amadora”, “Blitz erótica”, “Planeta Amadoras”, “Flagras&Amadoras”, “00 Sexte”, entre outros. Devo a Ilana Feldman o insight sobre as relações entre o libidinal e o policial nas imagens amadoras. Tal relação está apontada pela autora em sua dissertação de mestrado, “Paradoxos do visível: reality shows, estética e biopolítica” (UFF, 2007), embora num contexto distinto, o do reality show Big Brother Brasil.

[11] SEKULA, A. The Body and the Archive. In: October 39: 3-64, 1986.

[12] GUNNING, T. “O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema” In: Leo Charney; Vanessa R. Schwartz. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

[13] BATCHEN, G. “Guilty Pleasures” in Levin, T. Y.; Frohne, U.; Weibel, P. (Orgs.) CTRL Space: Rethorics of surveillance from Bentham to Big Brother. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.

[14] GUNNING, T. op.cit

[15] FREUD, S. Um caso de paranóia que contraria a teoria psicanalítica da doença, in ESB XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

[16] SINGER, B. “Modernidade, hiperestímulo e início do sensacionalismo popular”. In: Leo Charney; Vanessa R. Schwartz. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

[17] BRASIL, A. & MIGLIORIN, C. Saddam e Cicarelli: nossas imagens. In: revista Cinética. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/saddamcicarelli.htm.

[18] Após uma série de protestos em defesa da privacidade, a Google “apaga” os rostos de pessoas nas imagens disponibilizadas no Street View, mediante solicitação das mesmas.

Fernanda Bruno é doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ), professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e do Instituto de Psicologia (UFRJ). Pesquisadora e autora de diversos artigos sobre as tecnologias da comunicação e da cognição, os dispositivos de visibilidade e vigilância e a produção de subjetividades na cultura moderna e contemporânea. Editou recentemente o livro Limiares da imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea.